PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

LAMENTO DAS GÓRGONAS

Designa o teu campônio,
míseras e rútilas misérias,
calcinado de têmpera e pastel.

Urge o brio da urze, cada raiz
à rés-do-chão
                 para o limo que finca
                     a palavra
                     nódoa
                     no ventre
                     explosivo
                     do gozo,
qual a funda trama de um pênis ereto
apontando à fênix dormida em órion,
ônix ventral de vestal, dura foda
dos olhos que caem no dorso do atlântico,
borrasca e aurora boreal
                              das cavidades múltiplas
                                      do corpo,
aranha-mestra de teia funérea,

Desnuda o campônio malgrado o tempo,
como um grão-vizir
                        de tua anca e boceta
                        na noite náutica
                        do grito do gozo
                        do mistério elevado
                        do cosmos.

Elenca tua coleção de fúrias,
eríneas naiades contempladas,
furiosas fúrias ígneas,
lancinantes esbórnias,
                e cata o rosto na fera do gesso,
como os escultores
                   que alojam suas pedras
                               na rota figura
                                       de copos vítreos
                            em que a paixonite
                                           murmura
                                     uma estátua
                                           como o trauma
                                     que paralisa as veias
                                     ao vento do mormaço dizendo:
                               estibordo, bombordo, transbordo.

Vai e dá fé ao teu corpo à tua boca:
                 cada ventre sabe de sua história
                       na barafunda azáfama ao lupanar de barregãs.
                     
                      outrossim ... eu estive no inferno
                      das mulheres lá,
                                   e me foi permitido
                                   saber da mentira
                                   numa alma e num corpo.

24/07/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

HISTÓRIA DE UM PIRATA

Eu bebo rum, eu sou pirata!
Minha ciência exata
é ser pirata.

Um olho de vidro,
uma perna de pau.
Assim eu vivo,
no mar infernal.

O horizonte tomo por esposa,
e meus pertences eu roubei.

Caio da prancha na boca do jacaré,
com as minhas sereias
vou com fé.

Eu bebo rum, eu sou pirata!
Minha ciência exata
é ser pirata.

Oh, capitão, meu capitão!
Meu dente de ouro
é a minha razão!

Sou pirata do olho de vidro
e da perna de pau!
Na marinha vejo mar
com um oceano para roubar!

21/07/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PLANETA AZUL

Oh, dessa carcomida ondina a vestal está nua?
Donde nadir aos nenúfares
campeia de sua alga o plâncton das nódoas.

Sempre-viva, com a flora no peito inerme,
faz das suas o cântico, sob o velho monte,
do estuário ao delta em vigor.

Oh sempre-fúria dos nervos tóxicos e atávicos,
com o neurônio cavilar de minhas reentrâncias,
sumo do norte à morte de minha sorte,
fumo ao beleléu de que Caronte faz noite.

Débil, os mais ou menos das fúrias,
olhos de pedra na pedraria do penedo,
uma pedra-sabão de sensaboria,
o corpo petrificado da goiva
em seu surto escultórico.

Oh, dessas danças tuas xotas estão lá?
Veio em vento ao barravento ventilar
teu útero em carnavais,
e lembrar da minha mnemônica que a matéria
sofre vilipêndio com as catacumbas
de um semi-morto como afogado
das oceânides, que lembram ao Todo-Poderoso
sua tábua sua lei sua modernosa
revolução de lápis-lazúli
que emana diamante e terra virgem.

Pois, do átrio à opereta,
ventre grita carcomido,
como um vão e prurido,
uma ferida auri-química,
d`oiro esteta alambicado,
furioso nefelibata
das pedantes
latitudes
em longitudinais fadigas,
o trópico do ócio,
câncer e capricórnio,
como uma linha do Equador
de divisa de nuvens,
pranto e redemoinho
dos mares nostrum
de circunavegações
ao sem fim dos olhos
que lacrimejam
o azul do planeta.

05/07/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PRAIA DORMENTE

Todos dormem agora,
o calmo lago ancora
no sonho.

Sei que todos são fantasmas,
espectros de respiração.

Todos calmos no lago da fantasia,
dormem aos montes
na selva da caverna,
dormem intactos
no silvo das eras.

Eu, poeta iridescente,
com o mar à lua rente,
durmo como um monge,
afugento o cão mordaz
dos pesadelos de morte,
durmo com vocês
sem poesia ou casco
de proa,
durmo com o silêncio
na miragem
de um feroz campo
de ardor sem fim,
durmo sozinho na praia vermelha
dos limos verdes de uma
pedra cinza.

30/06/2014 Êxtase (Gustavo Bastos)

domingo, 20 de julho de 2014

MANOEL DE BARROS

"mais do que criar poesia, Manoel de Barros cria seu próprio mundo"
   Manoel de Barros, poeta brasileiro, nascido em Cuiabá em 1916, ainda vivo, tem a sua pessoa ligada no tempo histórico à Geração de 45. Mas, a sua obra pode ser melhor situada, quanto à forma poética, a uma herança que vai das vanguardas europeias do início do século XX, até a Poesia do Pau-Brasil, além da Antropofagia de Oswald de Andrade.
   Sua obra mais conhecida é "Livro sobre Nada" de 1996. Ainda bebê, ele foi com sua família viver em Corumbá, e ainda criança mudou-se para Campo Grande, e depois, no Rio de Janeiro, formou-se bacharel em Direito em 1941. Depois de morar na Bolívia, Peru, e passar um ano em Nova York, volta para Campo Grande na década de 1960, aonde passa a viver como criador de gado, e cultivando seu ofício de poeta.
   Manoel de Barros ganhou vários prêmios literários desde a década de 1960. Mas, por sua postura discreta, já que não frequentava os meios literários e editoriais, só ficou conhecido nacionalmente a partir da década de 1980, depois que Millôr Fernandes o divulgou, tendo, então, ganhado o Prêmio Jabuti, em 1987, com "O guardador de águas". Pelo próprio Manoel de Barros, temos a definição de sua poesia como "vanguarda primitiva".
   Com o lançamento de sua obra completa, compilada no livro Poesia Completa, que teve sua primeira edição pela editora Leya em 2010, sendo reimpresso em 2013, já com uma versão ainda mais completa, incluindo seus últimos trabalhos de poesia, com esta reimpressão temos sua obra desde "Poemas concebidos sem pecado" de 1937, até seus últimos trabalhos como "Menino do Mato" de 2010.
   No livro Poesia Completa, a abertura dos trabalhos vem com o poema "Entrada". Aí, já temos sua poesia na direção do que ele coloca como a sua chave filosófica, o que vai montar toda a sua obra. Ele dá a dica, falando de desenhos verbais de imagens, ele coloca o seu centro: os impossíveis verossímeis do mestre Aristóteles. "Dou quatro exemplos: 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua." E Manoel de Barros ainda faz mais, nada: "Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades."
    Já, com sua criação de personagens, ele começa a sua brincadeira com Cabeludinho, e aí faz a sua graça, com palavras de protesto idiota, dá uma bufada: "Como o vento leva as palavras!". Dá o tema, em busca da ação: "Levante desse torpor poético, bugre velho." Era a palavra para Cabeludinho tomar tento. Na sua depuração de linguagem, já que Manoel de Barros queria o mundo nu, compreender as coisas por elas mesmas, sem a mediação de intelectos ou conceitos, ele, com isso, e também, dava a sua birra com verbos engalanados ou literatices e pedantismos, ou ainda a afetação livresca, combatendo os nefelibatas de português castiço, dando o seu protesto idiota, acusando: "Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial."
   Mais um personagem surge: "Meu amigo Sabastião/Um pouco louco/Corria divinamente de jacaré." Temos aí, já, a relação da poesia de Manoel de Barros com os elementos naturais. Podemos dizer que sua poesia tem uma aderência direta e orgânica com a natureza, longe do lirismo comum em que se dá a relação do poeta com a natureza. Pois aqui, Manoel de Barros passa além do idílio, e vai às coisas da natureza como uma mistura essencial entre poeta e natureza. Manoel de Barros faz mais uma experiência material com a natureza do que um elã idílico, na qual a poesia ainda se encontra separada da natureza, buscando nela seu ideal. Em Manoel de Barros não há ideal, não há idílio, ele se funde às coisas das quais ele diz.
   Com sua musa, ele não vai mais uma vez ao ideal, coloca logo seu confronto de humor nas mãos de seu poema de cavalo: "Minha musa sabe asneirinhas/Que não deviam andar/Nem na boca de um cachorro!/Um dia briguei com Ela/Fui pra debaixo da Lua/E pedi uma inspiração:/__ Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel principal, não quero nem pra meu cavalo; e até logo, vou gozar da vida; vocês poetas são uns intersexuais ...". Ele briga com a musa, vai à lua, e a musa dá de ombros. A relação de Manoel de Barros tem na discussão sua asneira, em que o ideal, já que não há idílio  com a natureza, e nem romantismo dramático, se perde, e o amor aparece, aqui, como mais uma pequena peça de ironia, em que tudo faz sentido quando não se é levado à sério.
   No poema Os Girassóis de Van Gogh, a poesia fala do extremo: "Hoje eu vi homens ao crepúsculo/Recebendo o amor no peito./Hoje eu vi homens recebendo a guerra/Recebendo o pranto como balas no peito." Para a estrofe final, um dístico, ele fecha: "E, como a dor me abaixasse a cabeça,/Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh." A ideia de morte, a tragédia da guerra, o amor no peito com balas a alvejar o poeta, culminam na visão extática dos girassóis de Van Gogh como a própria convulsão do pintor, biografia trágica do gênio perdido do século XIX.
   Manoel de Barros também é boêmio: "Vadio e evadido/Vagabundeio só." Segue na estrofe seguinte: "Amo a rua torta/E do mar o odor." Ele junta a nostalgia boêmia da rua, e desemboca no mar e seu cheiro de maresia, como se fosse um bêbado na madrugada, que termina na praia ao amanhecer. E aí temos um exemplo da fusão que Manoel de Barros faz entre a sua poesia e a natureza: "Corpo em árvore feito/Serei como talha de pedra/Na terra, com molduras de fresco/E hortênsias ...". O poeta vira árvore, este é o seu corpo. A poesia da árvore, de Manoel de Barros, é sua experiência de poesia como sendo uma árvore; tudo aqui é um, poeta e natureza.
   Daí, se tem um conhecimento produzido a partir da fusão: "Aqui: ardo e maduro./Compreendo as azinheiras./Compreendo a terra podre e fermentada/De raízes mortas." É o que ele diz no poema Olhos Parados: "Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas." E, na sua poesia do ínfimo, a qual norteará a sua obra, afirma neste mesmo poema: "Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,/E descobrir em todas uma razão de beleza." Temos, aqui, o olhar atento, numa condição especialíssima, em que tudo brilha originalmente, tendo no mínimo, o mundo inteiro. Como numa monadologia (citando aqui Leibniz), em que cada semente fermenta e está grávida da existência em sua totalidade, nada escapa ao olho de Manoel de Barros; sua natureza está cheia de deuses, como diria Heráclito. Há, aqui, um taoísmo radical em forma de poesia. O universo do ínfimo contém tudo em si, reafirmando que tudo é um, o que nos coloca bem distante da distinção cartesiana, e mistura tudo, em que pessoa e ser são uno com a natureza. E, aqui, Manoel de Barros é poeta, e é também árvore, seu corpo é o corpo da natureza.
   A fusão, embora real, na razão é insuficiente. Tal fusão sobrevive na intuição, e se faz construção com a poesia, numa tentativa vã, de realizar no verso, o que é incomensurável pelas vias da lógica, o que aparece no poema Zona Hermética : "O poeta procura compor esse inconsútil jorro;/ Arrumá-lo num poema; e o faz. E ao cabo/Reluz com a sua obra." Ou seja, Manoel de Barros consegue tal intento de fusão, com sua obra poética. E tal obra, para o poeta Manoel de Barros, será a única via possível de encaixe de todas as coisas em todas as coisas. A poesia, aqui, tenta arrumar ou organizar a totalidade numa fruição que se torna palavra. É uma tentativa que deveria caber à razão, mas que, na poesia, se torna algo orgânico, mais em harmonia com o intuito da poética que se realiza em Manoel de Barros, uma vez que o corpo do poeta não pode virar natureza ou todas as coisas a partir de discernimentos racionais, que os separam. Temos aí o embate nevrálgico do poeta com o que se chama "desencantamento do mundo."
   O anelo de Manoel de Barros com a natureza, com uma poesia que vai muito mais longe do que o idílio clássico, é fusão total, desejo de ser as coisas, e não cantos em homenagem à natureza, como deve supor um olhar desatento: "Bom era ser bicho/que rasteja nas pedras;/ser raiz de vegetal/ser água." O anelo de Manoel de Barros soa, neste trecho, algo nostálgico, é como se sua intuição fosse uma metempsicose ao contrário, em que o homem volta a ser bicho e volta a ser planta, até virar musgo e daí pedra ou água.
   E, como Manoel de Barros fala do nada ou de nada, sua poesia do ínfimo é bem fundamentada, por sinal, e ele percorre com a sua obra, neste nada, como um verdadeiro tratado de atenção às coisas que passam por nada: "As coisas que não levam a nada/têm grande importância". Então, ele conclui, no verso seguinte: "Cada coisa ordinária é um elemento de estima". O extraordinário passa bem longe de Manoel de Barros, suas coisas se simplificam e, ainda assim, são relevantes, apesar de, aparentemente, bobas. Mas, o que se tem, nas asneirinhas de sua musa, é poesia bem construída, com o elemento forte que torna uma existência do suposto vão, como o sentido do que seja todas as coisas que vemos e tocamos.
   A objetividade da poesia de Manoel de Barros é exatamente lidar diretamente com o mundo nu de conceitos. O estar-no-mundo de Manoel de Barros é uma perfeição do que, em Filosofia, se dá com Heidegger em seu Da-Sein. A poesia do ser-aí de Manoel de Barros vai até mais longe do que um anelo de ser, ele é o poeta da fusão para além dum anelo idílico, seu desejo não é mais um desejo, Manoel de Barros está nas coisas, ele é o isto de sua poesia,  e nela ele é tudo como uma coisa só: bicho, árvore, natureza. Physis (natureza) ganha potência humana, como um resgate do sentido da terra, do Zaratustra de Friedrich Nietzsche, com a radicalidade da experiência pré-socrática, que tem em Heráclito seu profeta. Salvo que, em Nietzsche, o homem se coloca para além, e o que Manoel de Barros procura é um "aquém-do-homem".
   Manoel de Barros responde fielmente ao que significa a poesia, depois de todo o seu caminho de retorno ao ínfimo, como um sintoma do que é atávico até a medula: "Poesia é a loucura das palavras." Sua experiência junta a liberdade à loucura segura da poesia, uma arte que é jogar com as palavras, para criar um novo mundo, uma linguagem nova, um ir à frente do que se entende, e compreender o desconhecido. E, nada mais bruto como a incógnita que dança na loucura das palavras que viram poesia. Seu saber é este, ou melhor, isto: "Só sei por emanações por aderência por incrustações." Seu saber é orgânico, não formal. Manoel de Barros não se coloca como ente de razão. Ele, na verdade, se desmonta como ente de natureza, e na poesia, ele se descobre, e alcança o conhece-te a ti mesmo: "A poesia me desbrava/Com águas me alinhavo." Seu saber é o saber de si que se desmancha para um fora de si. Manoel de Barros, mais uma vez, está nas coisas de que fala. Seu cogito cartesiano desaparece, e ele é, aqui, a coisa própria, na sua extensão.
   Na poesia de Manoel de Barros não há pensamento mais. Sua experiência com a poesia é estar na inconsciência mineral, vegetal e animal. Manoel de Barros não é homem civilizado enquanto poeta. Na sua poesia, ele é um isto sem pensamento. A fusão, aqui, é a desconstrução de sua herança civilizatória. Ele cai no ínfimo, e lá fica. Dando sentido à sua poesia: "O poema é antes de tudo um inutensílio." É como ele diz do que faz: "Uma teologia do traste." Mais uma vez aí, os deuses estão presentes nos restos que ninguém vê, sua teologia faz do ordinário o próprio Deus que habita as coisas. Com isso, ele busca o som inaugural (ecos aí dos filósofos pré-socráticos), em que: "Nos resíduos das primeiras falas/eu cisco meu verso/A partir do inominado." Isto é, o sentido originário, em Manoel de Barros, é tão radical, que vai da palavra às coisas, para nomear, ou melhor, para dar o nome do sem nome, para dizer o indizível. E, agora, falamos de Poesia, e não de Filosofia. Pois, o nomear do filósofo amarra tudo, e aqui, na poesia, a fruição está a serviço do sem nome, e não como laço para capturá-lo. A apreensão na poesia do sem nome não se dá, ela nunca teve esta pretensão, cabendo apenas sugeri-la, como a última potência que resta ao poeta na sua intuição. Ou seja, o insuficiente da linguagem poética denuncia seu limite, embora seja nesta falta que tudo se instaura, e é por isso que existe poesia ou arte; talvez, não para nomear as coisas, mas para lhe dar apelidos.
   Seguindo em sua obra, Manoel de Barros resolve falar do Pantanal, sua estadia, sua morada, e a legitimação de sua história, e aí, cria seu outro personagem, chamado Bernardo, homem do Pantanal, homem da terra, seu ideal. E, agora, em sua obra poética, Manoel de Barros começa a sua história com o oeste do Brasil: "Pantanal é muito propício a assombrações. Principalmente lobisomens, que são uma espécie de assombração que bebe leite." Aqui, Manoel de Barros entra no folclore, e sua poesia ganha mais um elemento, a realidade fantástica, a qual nosso país tem de sobra, as lendas pululam no mundo ordinário, e agora, o ínfimo ordinário ganha contorno sobrenatural e extraordinário, ainda com o homem-raiz Bernardo, este mesmo, lobisomem, daqueles que são de "rondar cozinha". O mundo particular do oeste pantaneiro do Brasil aparece com todos os detalhes na poesia de Manoel de Barros, sua poesia também é um documento de uma cultura desconhecida da metrópole. A natureza reaparece do ínfimo, e vira manifestação cultural, antropológica. Seu povo é este: "Pois foi este povo ladino, sensual e andejo que um dia atravessando o rio Taquari encheu de filhos e de gado o que se chama hoje, no Pantanal, a zona da Nhecolândia."
   E, no seu caminho pelo Pantanal, Manoel de Barros tenta, através de seu personagem Bernardo, dar o nome, ou melhor, apelido às coisas. Pois só haveria um homem capaz de fazê-lo melhor que ele, Bernardo. Pois: "Bernardo escreve escorreito, com as unhas, na água/O Dialeto-Rã." Isto é, Manoel de Barros diz que, com o Dialeto-Rã, Bernardo é capaz de "Sem mexer com a boca tirar ardor de pétalas!" E o poeta deixa claro: "Mas isso não tem metafísica - como fechar um rio com trinco." Então, o Dialeto-Rã é o verdadeiro apelido de toda a fusão da poesia de Manoel de Barros. Esta fusão se dá com Bernardo e não com ele. Ou melhor, o que tentara como poeta, ele decide então usar Bernardo para fazê-lo melhor. A intensidade da fusão de Manoel de Barros com a natureza se dá mais fielmente ao colocar isto nas mãos de seu personagem Bernardo, através de uma linguagem adequada para tal objetivo: o Dialeto-Rã.
   Com mais um personagem, o Seu França, bem rapidamente, Manoel de Barros reafirma seu compromisso com o nada, e lhe dá seu sentido como arte ou poesia, ao falar de Seu França: "Disse que precisa de não ser ninguém toda vida./De ser o nada desenvolvido./E disse que o artista tem origem nesse ato suicida." Ou seja, a visão de Manoel de Barros sobre seu ofício é bem clara, muito bem resolvida, ele não tem dúvidas do que deve fazer, e sabe como fazer. Então, Manoel de Barros constrói uma obra toda própria com este ato de independência. Seu nome, seja como poeta, ou como Bernardo, tem seu dialeto. E, mais do que criar poesia, Manoel de Barros cria seu próprio mundo, e renova o mundo existente.
   Manoel de Barros também reafirma um compromisso com uma linguagem que pode ser chamada de linguagem de transformação. Isto é, a mesma que ele vê no livro Metamorfoses, do poeta latino da Antiguidade, Ovídio. Ele explica: "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema./Há que se dar um gosto incasto aos termos./Haver com eles um relacionamento voluptuoso./Talvez corrompê-los até a quimera./Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los./Não existir mais rei nem regências./Uma certa liberdade com a luxúria convém." E sua alusão a Ovídio aparece: "Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,/Ovídio mostra seres humanos transformados em/pedras, vegetais, bichos, coisas./Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um/dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem/madruguenta, adâmica, edênica, inaugural -/ Que os poetas aprenderiam - desde que voltassem às crianças que foram/ Às rãs que foram/Às pedras que foram." Aqui, temos que o projeto literário de Manoel de Barros tem um mestre, o poeta Ovídio. A obra poética de Manoel de Barros é um eco que mora nas Metamorfoses de Ovídio. E, com o trecho citado acima, o próprio poeta Manoel de Barros dá o seu testemunho. Ou seja, sua ideia anímica foi herdada do latino Ovídio.
   Outra influência que se pode depreender dos escritos de Manoel de Barros fica evidente em algumas passagens, como esta: "Escuto a cor dos peixes." Isto nada mais é que a mesma mistura dos sentidos que temos em Arthur Rimbaud, poeta francês do século XIX, que em seu poema Alquimia do Verbo, afirma categoricamente: "inventei a cor das vogais." Tal mágica anímica que Manoel de Barros descobre, tanto em Ovídio como em Rimbaud, passa à sua poesia. E temos, aqui, a mística da linguagem, a qual   nos dá um animismo incomum ou invertido. Não são as coisas que se animam dos homens ou de espíritos da natureza. São os homens que, na poesia de Manoel de Barros, se animam e ganham o espírito da natureza e das coisas. A alquimia do verbo, quando se escuta a cor dos peixes, ou se inventa a cor das vogais, é então a poesia como linguagem anímica. A arte poética, ao dar apelidos às coisas, se serve da quimera para transgredir o comum do verbo, e torná-lo vivo.
   Por fim, o que se pode concluir da obra poética de Manoel de Barros, e do livro que reune grande parte desse trabalho, Poesia Completa, é que este poeta refunda a linguagem com um sonho, um delírio. Manoel de Barros anima de espírito sua poesia, e faz o caminho de retorno do que anima o Homem civilizado, e o coloca de volta ao espírito das coisas. Como diria Rimbaud: "Nós vamos ao Espírito! É certo, é oráculo o que eu digo. E sem saber pronunciar-me sem palavras pagãs, preferiria calar-me." A profecia está na boca dos poetas, estes vão ao espírito das coisas, e o trabalho poético empreendido por Manoel de Barros é mais um reflexo desta busca.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/17876/14/manoel-de-barros