PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 5 de março de 2016

MAIAKÓVSKI, OS POEMAS DE SOM E FÚRIA – PARTE II

“gente é pra brilhar/ que tudo o mais vá pro inferno,/este é o meu slogan/e o do sol.”

Vladimir Maiakóvski (1893-1930) é o maior poeta russo moderno, expressão em poesia do que foi a Revolução de Outubro, colocando sua poesia a serviço de seu próprio tempo (época), mergulhando nas contradições da guerra, expressando, nos caminhos de Velimir Khlébnikov, o “Colombo de novos continentes poéticos”, as novas formas que este tempo (época) demandavam. A invenção é seu norte, da pesquisa de seus primeiros poemas, aos largos haustos de seus últimos poemas, o brilho de sua caminhada pode ser dita por ele mesmo: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.
No poema “A Vocês!”, que abre esta segunda parte de seus poemas que coloco aqui, a crítica se dirige a Sievieriânin e aos czaristas, a chamada arte em forma revolucionária, de acordo com Maiakóvski, não larga para trás, contudo, o fervor do conteúdo crítico, também, e que tem vezes na poesia que não quer ser apenas um jogo de linguagem, mas também um processo histórico das demandas de seu tempo, como uma inscrição ou marca ou até cicatriz das representações possíveis e impossíveis (pois o poeta também faz coisas impossíveis) que encarnam os corpos e espíritos que fazem a História, e a literatura tem muito com o que ver nisso, pois não há nada mais relevante que a poesia crítica que não se preocupa o tempo todo em ser agradável, forma de adequação que eu julgo, muitas vezes, como um suicídio literário deliberado, por inocência, e neste poema temos o inverso: a relevância que expressa seu tempo e suas contradições.
Em “Hino ao Juiz”, poema seguinte, o norte é o mesmo, ter relevância para além de uma expressão agradável, coisa que os grandes poetas sabem, por sinal, de ser um incômodo antes de ser standards. Poema de crítica, incômodo, que se autodenuncia, positivamente, por sinal: “Nem os meus versos escapam à censura:/São interditos, sob pena de tortura./Classificaram-nos como bebida/Espirituosa: “venda proibida”.” Pois o poeta conflita com o interdito, e combate a censura com suas letras livres, não há limite ao sonho humano, e ao poeta cabe elencar este grande cabedal de anseios do qual os interditos tentam escapar. O poeta está em guerra na sua expressão, está em guerra também para além de sua expressão, na sua responsabilidade de denúncia, na sua ironia e crítica que enfrenta o mundo decifrando-o.
No poema “Nossa Marcha”, por sua vez: “Troa na praça o tumulto!” e vemos versos como: “Que metal será mais santo?/Balas-vespas nos atingem?/Nosso arsenal é o canto.” E que podem voltar aos versos iniciais, ainda: “Águas de um novo dilúvio/lavando os confins da terra.” O poeta, e seu poema, neste caso, como forma revolucionária, muito além de uma mera expressão política, põe o mundo no seu laço, em que, diante do tumulto, que é o dilúvio, em que, contra o metal das balas-vespas, temos o metal do canto, nosso arsenal contra as balas que tentam lavar os confins da terra, esta terra que de tumulto e dilúvio tem seu salvamento na letra metálica do poeta, seu arsenal do canto que fura a bala, e não pede beneplácito nenhum, pois o poema é livre, e é combate, sobretudo. A marcha, pois.
Em “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha”, este poema é um dos clássicos do poeta, em que o cânon aparece, em todo o seu esplendor, nestes versos: “Brilhar pra sempre,/brilhar como um farol,/brilhar com brilho eterno,/gente é pra brilhar,/que tudo o mais vá pro inferno,/este é o meu slogan/e o do sol.” Aqui temos Maiakóvski cumprindo o seu destino, quando ele diz que gente é pra brilhar, a sua chave de ouro de toda a sua obra está posta, sem mais, o brilho vira palavra de ordem, e ai de quem ficar no caminho, a marcha passará, Maiakovski brilha, pra sempre, e sua marcha do poema anterior se cumpre aqui neste poema com a palavra brilho como o sentido da marcha e da revolução, a política e o panfleto se colocam agora, no sonho humano, no desejo ilustre da poesia de brilhar, tanto como slogan, assim como gente, e este espírito concreto é o do sol, e quem ficar entre a marcha e o destino, que vá para o inferno!

A VOCÊS!

Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a cruz de São Jorge nos diários?

Sabem vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranca as pernas ao tenente Pietrov? ...

E se ele, conduzido ao matadouro,
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievieriânin!

Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás.

1915
(Tradução de Augusto de Campos)
1 – cruz de São Jorge: condecoração da Rússia czarista, concedida unicamente por ato de bravura em campo de batalha.
2 – Sievieriânin: (1887-1942) representava o chamado “ego-futurismo”, combatido por Maiakóvski e seus companheiros “cubo-futuristas” como uma espécie de futurismo de salão.

HINO AO JUIZ

Pelo Mar Vermelho vão, contra a maré,
Na galera a gemer os galés, um por um,
Com um rugido abafam o relincho dos ferros:
Clamam pela pátria perdida – o Peru.

Por um Peru-Paraíso clamam os peruanos,
Onde havia mulheres, pássaros, danças,
E, sobre guirlandas de flores de laranja,
Baobás – até onde a vista alcança.

Bananas, ananás! Pencas felizes.
Vinho nas vasilhas seladas ...
Mais eis que de repente como praga
No Peru imperam os juízes!

Encerraram num círculo de incisos
Os pássaros, as mulheres e o riso.
Boiões de lata, os olhos dos juízes
São faíscas num monte de lixo.

Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,
Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:
Na mesma hora virou cor de carvão
A espaventosa cauda do pavão.

No Peru voavam pelas campinas
Livres os pequeninos colibris;
Os juízes apreenderam-lhes as penas
E aos pobres colibris coibiram.

Já não há mais vulcões em parte alguma,
A todo monte ordenam que se cale.
Há um tabuleta em cada vale:
“Só vale para quem não fuma.”

Nem os meus versos escapam à censura:
São interditos, sob pena de tortura.
Classificaram-nos como bebida
Espirituosa: “venda proibida”.

O equador estremece sob o som dos ferros.
Sem pássaros, sem homens, o Peru está a zero.
Somente, acocorados com rancor sob os livros,
Ali jazem, deprimidos, os juízes.

Pobres peruanos sem esperança,
Levados sem razão à galera, um por um.
Os juízes cassam os pássaros, a dança,
A mim e a vocês e ao Peru.
195
(Tradução de Augusto de Campos)

NOSSA MARCHA

Troa na praça o tumulto!
Altivos píncaros – testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.

Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coração? Tambor rufando.

Que metal será mais santo?
Balas-vespas nos atingem?
Nosso arsenal é o canto.
Metal? São timbres que tinem.

Desdobra o lençol dos dias
cama verde, campo escampo.
Arco-íris arcoirisa
o corcel veloz do tempo.
O céu tem tédio de estrelas!
Sem ele, tecemos hinos.
Ursa-Maior, anda, ordena
para nós um céu de vivos.

Bebe e celebra! Desata
nas veias a primavera!
Coração, bate a combate!
O peito – bronze de guerra.

1917
(Tradução de Haroldo de Campos)

A EXTRAORDINÁRIA AVENTURA VIVIDA POR VLADIMIR MAIAKOVSKI NO VERÃO NA DATCHA
(Púchkino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas pela estrada de ferro de Iaroslávl)

A tarde ardia com cem sóis.
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava.
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato>
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.

Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
“Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!”
E grito ao aol:
“Parasita!
Você, aí, a flanar pelos ares,
e eu, aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!”
E grito ao sol:
“Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?”
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas,
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com voz de baixo:
“Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!”  
Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar –
eu lhe mostro
o samovar:
“Pois bem,
sente-se, astro!”
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
“Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!”
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro,
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
“Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.”
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar pra sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo o mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

1920
(Tradução de Augusto de Campos)
1 – Datcha – casa de veraneio.
2 – Versta – medida itinerária equivalente a 1067 m.
3 – Rosta – A Agência Telegráfica Russa, para a qual Maiakóvski executou cartazes satíricos de notícias – as “janelas” Rosta -, de 1919 a 1922.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27586/17/maiakovski-os-poemas-de-som-e-furia-parte-ii




quarta-feira, 2 de março de 2016

O ANJO EXTERMINADOR

O estudante de artes Plínio Ribeiro Alves, que era um dos destaques na universidade e da nova geração de pintores e escultores na sua senda de arte politicamente engajada, tinha um senso de justiça misturado com ojeriza e até certa intolerância com os passos lentos da sociedade em matéria de fim das contradições morais, não era um moralista, no entanto, seu intento mais forte era de um pendão libertário ao extremo, junto com sua namorada, escultora de arte bizarra, que era seu senso crítico ativo quando este se excedia.
Plínio, das artes que fazia, já começando a despontar como nome artístico, com algumas matérias em jornais alternativos, queria fazer sucesso como outsider, ou seja, usar as mídias mas não ser usado pelas mesmas, o que, muitas vezes, poderia resultar em futura frustração, pois poderia, facilmente, ocorrer o inverso, e isso à sua revelia. No que, em dois anos, em uma relação boa, foi nascendo em suas entranhas uma certa revolta com o andar da carruagem, em sua mente começava a maquinar uma atitude drástica, não se sabe como e nem quando ou o porquê, mas ele esperava o momento certo.
Sua namorada, Jussara, e seus dois amigos da informática (não me pergunte por que cagas dágua eles não eram das artes) , José a Alfredo, e mais sua melhor amiga, dependente de cocaína, jubilada em Filosofia, Doroteia, era um grupo coeso, que já tinha plataformas que misturava a arte e a política com tintas delirantes de uma nova “ordem de justiça”, e do “bastão do forte sobre a opressão”.
A oportunidade surgiria, logo Plínio e seus asseclas saberiam todas as razões disso, e não seria num velho clichê contra a burguesia, mas algo que nascia no seio da família de Plínio, uma súcia repetitiva de anódinos alienados, ricos de herança que caíram na mediocridade, do que Plínio mantinha uma certa distância, dormindo constantemente na própria universidade, envolto com seus projetos de arte que davam certo, mas que o faziam sempre discutir com algumas mídias sobre “erros de informação e conceito”.
Jussara era uma espécie de faz-tudo do grupo, a única que tinha senso prático num meio sempre delirante com ataques futuros à “sociedade hipócrita”. Doroteia era uma presença divertida, e só. José e Alfredo uma espécie de dupla dinâmica que agora se tornavam hackers para destituir patrimônios de incautos. A festa em questão, do outro lado, na família de Plínio, era um rebuceteio de egos inflados que não tinham destino nenhum, Plínio se enfurnava na sua célula, no seu esconderijo de arte e revolução, e tinha o motivo e a razão de seu futuro, ao contrário de seu pai autoritário, que já nem conhecia, e sua mãe retrógrada politicamente, e seu tio, militar, o que ele odiava.
Seu pai, Patrício, sua mãe, Joana, seu tio, irmão de sua mãe, Henrique, o filho de seu tio, seu primo, Carlos, playboy convicto, alienado por profissão. Uma prima distante, que voltou dos Estados Unidos com febre consumista, Daniela. Cinco cachorros dobermans na casa de seu pai, quinze gatos siameses na mesma casa, uma foto de Hitler na casa de seu tio, além de um disco de vinil com seus discursos hilariantes na casa deste mesmo tio.
Tudo estava errado, na cabeça de Plínio, ele tinha que fazer alguma coisa. Logo, Jussara é expulsa de casa, Doroteia tem uma overdose e é internada compulsoriamente pela família, um dos inúmeros golpes financeiros de José e Alfredo é descoberto, os dois são presos. Os dois logo resolvem criar uma célula nova no interior da cadeia, com um ex-traficante de nome Mauro, que agora era um novo intelectual que começou a ler incessantemente desde o início de sua pena de 5 anos, ele já estava no seu último ano de reclusão, e tinha mais dois cooptados na aventura da leitura, ladrões pé de chinelo que viam naquilo uma espécie de salvação, Jonas e Arthur. Jussara, que fazia arte bizarra, não ia tão longe em repercussão como Plínio, mas Plínio não tinha controle financeiro e administrativo da célula, era cargo vitalício de Jussara, o que o deixava à vontade para continuar produzindo arte e discutindo “erros conceituais e de ideias” com uma mídia escrotizante.
Henrique idolatrava Carlos, e vice-versa, era uma fusão de um militar e de um playboy em mútua admiração de expectativas realizadas, Daniela, sobrinha de Patrício, queria se casar e fazer uma festa “para a sociedade”, ela já era uma espécie de arroz de festa nas colunas sociais e tentava emplacar uma vaga num reality show desde que voltara ao Brasil.
Plínio resolve, como primeira ação, envenenar os gatos e cachorros de seu pai, dá certo, no que seu pai fica puto e promete matar o “filho da puta que fez aquilo”. Compra mais três dobermans, que são envenenados também um mês depois por um Plínio mascarado em ação noturna, sem alarme, pois ele tinha a senha e as chaves da casa. José e Alfredo conseguem, depois de um ano, e muitas conversas com Mauro, já um novo membro da célula, um relaxamento da pena, acabam com habeas corpus, na mesma época da soltura de Mauro, e os três vão à universidade conversar com Plínio e Jussara, Doroteia passa por uma desintoxicação angustiante, faz o papel da boa moça, sai da clínica e vai correndo atrás de cocaína, no que ganha o apoio de Plínio, que também queria ver os familiares de Doroteia pelas costas.
Plínio não usava drogas, mas fumava como uma caipora, numa onda de artista com aura e tudo o mais, o que a mídia especializada corroborava sem saber do desprezo que o mesmo nutria pelos constantes “erros de comunicação” daquela súcia paralisante de críticos com cacoetes interpretativos da arte contemporânea, e era a razão de sua ojeriza por Koons e quejandos, arte de plástico não fazia a sua cabeça, ele queria ser um Brecht torto e tortuoso, só que com pincéis e goivas.
Plínio tem uma ideia que ele julga “genial”: raspar o cofre do pai, do qual só lhe faltava a senha, e tinha um problema, Plínio não aparecia formalmente na sua casa há uns bons cinco meses (tirando o fato de ter envenenado os bichos da casa), e tinha que arrumar uma desculpa pelo seu retorno e um jeito de entrar no quarto de seu pai sem ser notado, ou inventar uma outra desculpa de que precisava de dinheiro para seus projetos e tentar “ver” seu pai abrindo o cofre.
Ele teria que ir sozinho lá, só quando estivesse seu pai Patrício lá. O que ele não sabia é que suas digitais já tinham sido colhidas no caso do envenenamento dos cachorros, pois Plínio, displicente, não usara luvas no ataque, só a máscara e uma roupa toda preta. A perícia logo chegaria a ele, e ao chegar em casa, fica sabendo disso pelo pai, que disse mais uma vez que “mataria quem fez aquilo”, ao que Plínio pensou que tinha que agir rápido em relação ao cofre e agora também em relação a uma fuga e uma troca de identidade.
Consegue vislumbrar uma possibilidade: pede ou tenta convencer o pai de que precisava fazer uma viagem de estudos, e por sorte, quando seu pai abre o cofre, ele vê um cartão cair do bolso do mesmo sem este notar, e é justamente lá que ele encontra a senha do cofre, e na madrugada seguinte, sabendo que o pai viajara junto com sua mãe, com a casa vazia, se sentiu roubando doce de crianças, tinha cinco milhões de reais em espécie nas mãos, vai direto para o aeroporto, iria para o Paraguai forjar uma nova identidade. Danton Leite Cabral.
Jussara vai um mês depois para discutir como ficaria a célula com sua ausência temporária, e ele disse que seu substituto natural, naquele tempo, seria Mauro. Enquanto isso, Patrício esbravejava ao saber que tinha sido seu filho que tinha matado seus bichos, e que provavelmente tinha sido também o infeliz que levara todo o dinheiro de seu cofre. Mas, como era seu filho, ele desiste do processo, e reza por saber notícias do mesmo.
No Paraguai, com cinco milhões, envia três para a célula, e fica com dois, levando uma vida de nababo por um ano em Assunção. Decide, no meio disso, já como Danton, conhecer toda a América do Sul, com seu passaporte falso e seu espanhol fluente que “não dava nas caras”.
Depois de um ano, com a presença intermitente de Jussara, ele volta ao Brasil, para São Paulo, onde abre uma tinturaria, sua arte, a esta altura, já tinha ido para o espaço, a mídia especializada em arte dizia que seu sumiço tinha sido estranho, mas ele não tava nem aí, preferia que achassem que ele tinha morrido ou virado morador de rua depois de um surto. Sua prioridade agora era a célula e qual seria a estratégia de choque, até agora aos cuidados de Mauro, que tinha lido tudo de Marx, Engels, Lenin e Trotsky, embora para Plínio sua orientação própria fosse mais intuitiva e “artística”, sem muita ideologia, só com o que sabia que não queria. Ele tinha uma só uma ideia vaga de De Quincey, do tal “assassinato como uma das belas artes”, pois achava o título interessante, mas sua obsessão por pincéis e goivas não lhe dava o tempo necessário para as tentativas frustradas de doutrinação da célula por parte de Mauro.
A política de Plínio era chocar, a de Mauro mudar o mundo. E começa uma disputa entre os dois, e Plínio começa a se arrepender de ter Mauro na célula e de ter lhe dado tanto poder por um ano. Nisso, chegam mais dois, da prisão, os amiguinhos de Mauro, Jonas e Arthur, marxistas novos egressos do regime penal. Plínio começa a matutar um jeito de boicotar a tentativa de controle absoluto de Mauro na célula, e reivindica seus direitos, por ter sido ele, Plínio, o criador da célula, e que seus viés político era artístico e não ideológico, e começa uma disputa de ideias que viraria uma luta de poder.
Luta que Mauro ganha, por um momento, ao fazer chantagem com Plínio de que o entregaria para a polícia, sabendo muito bem que agora Plínio vivia uma vida dupla. Plínio decide sair da célula que criou, e decide destruir tudo num plano de assassinar Mauro envenenado. Mauro agora batiza a célula que nunca tivera nome de “Liberdade Marxista”, e Plínio conclui que teria que retomar as rédeas de sua célula eliminando Mauro de seu caminho, e também teria que saber como dar conta de seus cooptados Jonas e Arthur, que só repetiam o que o mestre Mauro repetia dos livros, no que Plínio concluiu que os dois não seriam assim um problema, pois era só fazer uma nova lavagem cerebral nos dois patetas.
Plínio então entra num dilema em relação ao seu trabalho artístico, que meio que tinha ficado para trás naquela confusão toda de vida dupla e célula, e tem a ideia de usar um pseudônimo e não aparecer, que nem Banksy. E tem sucesso, Danton (Plínio) usa um pseudônimo estranho e político “Bertolt”, mesmo que nunca tenha sentado para ver ou ler Brecht, pois era um louco dos pincéis e das goivas, e agora começou a pichar Bertolt por todos os lados de São Paulo.
Com umas mensagens paradoxais também em lambe-lambes, virou um vanguardista, com um novo estilo, e ninguém nem sequer supôs que Bertolt era o garoto crítico Plínio, que desaparecera para sempre. Sua vida dupla agora era como Danton e Bertolt, e Plínio planejava coisas mirabolantes, e consegue envenenar Mauro com estricnina, depois de uma luta corporal com o mesmo, escapando de uma facada no meio da luta, pois os dois tinham feito Judô, mas Plínio era mais graduado, e os dois sabiam disso, mas Mauro achava que Plínio estava apenas enlouquecendo ao propô-lo uma briga, sem perceber seu ardil e fazê-lo desmaiar numa imobilização e ministrá-lo o veneno dos venenos.
Plínio então vem com uma estória fabulosa de que Mauro havia fugido para um morro no Rio de Janeiro, no que Jonas e Arthur caem como dois patinhos, e Plínio decide que, ao invés de usar os dois, expulsaria ambos, “pois estes não tinham cérebro”, e a célula volta ao antigo sistema, com Plínio tendo ideias delirantes, e Jussara cuidando das contas, já que Plínio era um esbanjador, e Doroteia só piorava o ímpeto gastão de Plínio.
Os dois mestres da informática, José e Alfredo, já mais discretos nas suas investidas de hackers, eram a verdadeira parte “cerebral” do grupo, e Plínio sabia disso, ele nunca fora bobo, selecionava as pessoas certas, com exceção de Mauro, que ele julgou que fora um “erro de cálculo”. Plínio então retira o cartaz “Liberdade Marxista” da entrada da célula numa casa alugada, e ele também tinha mais um apartamento alugado, que era dedicado aos seus novos trabalhos como o misterioso Bertolt. E Plínio, ao retirar o cartaz, pensa consigo mesmo que tinha se livrado daquela esparrela ridícula de doutrinação, e mais uma vez, como artista, Plínio não queria ordem, queria o caos. Seu senso de justiça de jovem virara, depois de levar sua vida de nababo no Paraguai, em cinismo seletivo e frieza calculada. Até Jussara já não fazia mais parte de seu horizonte, pois começava a alimentar sonhos egoístas de choque e ruptura radical.
Só que, no entanto, ele tenta uma reconciliação com Patrício, seu pai, e resolve aparecer do nada na sua casa. Patrício chora, não entende o que Plínio tinha virado, e Plínio conta a história toda, no que recebe, apesar disso, a proteção e apoio resignado de Patrício, que de autoritário virara, de súbito, uma manteiga derretida pelo filho maluco que tinha. E Patrício diz a Plínio que teria uma grande festa de casamento de Daniela, sua prima, que agora era uma sub-celebridade de reality show. Plínio não poderia ir, e Patrício só dá a notícia, meio sem jeito, já sabendo que a vida dupla, tripla, do filho, já o colocara definitivamente distante da vida familiar.
Plínio agora era Danton, Bertolt, e o que mais viesse à cabeça. Jussara briga com Plínio no dia seguinte, por um motivo bobo, pois Plínio desaparecia do nada, e ela ficou paranoica de que ele tinha amantes, no que Plínio, percebendo a oportunidade, expulsou Jussara da célula, que ficou revoltada, mas jamais denunciaria a identidade falsa de Plínio, pois também usufruíra de seus delírios de grandeza no Paraguai, e era grata, apesar de tudo, por aquelas aventuras que só um outsider poderia proporcionar para a vida dela. Mas ela sumiu de Plínio, e tentou a sorte mais uma vez com suas artes bizarras, enquanto o tal Bertolt que ninguém sabia quem era fazia um sucesso digno de Banksy e Samo. Mas Plínio não estava nem aí, já tinha rompido a linha entre a célula revolucionária e a vida errática, “artística”, no sentido mais profundo de uma aura de ruptura com o status quo, que ele canibalizara com Bertolt.
Agora Plínio contava com os dois geniozinhos do golpe financeiro, José e Alfredo, e com sua amiga Doroteia, que sempre foi um oxigênio naquela célula maluca de arte de pseudo-revolucionários, pois Doroteia conseguia não ter nada na cabeça, ao mesmo tempo que reunia em si uma inteligência de vivência que ninguém ali sonhava ou concebia ter um dia. Plínio estava, na verdade, se enroscando na própria esperteza e ambição, mas já tinha ultrapassado a linha, como disse. E agora seu plano era sacanear o tio militar e hitlerista, como o começo de um novo plano da célula, que então não tinha nome novamente, pois Plínio gostava de chamar a célula de célula mesmo, sem mais.
No meio disso, Jussara vai ao pai de Plínio, desesperada, pois temia pela vida de Plínio, e que tinha levado uma vida interessante e perigosa, mas que agora só queria fazer esculturas em paz, no que Patrício diz que já sabia da vida dupla (tripla) de seu filho, Plínio era agora uma espécie de agente duplo de si mesmo, e com isso na cabeça vai à casa do tio convidá-lo para uma rodada de sinuca, com a intenção de torpedeá-lo com ironias para os dois brigarem, Plínio era reconhecido como o gênio Bertolt, mas jogava tudo para o alto, pois já tinha se enrolado o bastante, e agora só queria ver o circo pegar fogo, como se não houvesse amanhã, e havia. A intenção de Plínio, na verdade, era provocar a ira de Henrique, seu tio, ao desconstruir Hitler e seu filho Carlos, que ele tinha ojeriza, e que já participava de uma célula clandestina de White Power, o que levou Plínio a tomar uma providência.
Só que ao lidar com Carlos, Plínio começava a mexer num vespeiro de proporções catastróficas. O White Power era muito mais organizado que sua célula mambembe e sem futuro. Henrique, feliz depois de ver o sobrinho sumido procurá-lo, não sabia do plano de Plínio de provocar uma hecatombe com o White Power. Plínio, o Bertolt, o Danton, era agora um agente duplo, e se faz de amigo do tio, mas, ao ganhar três rodadas de sinuca do tio, começa a achincalhar Hitler e Carlos na frente de Henrique, que saca uma arma e é contido pelos frequentadores do bar em que estavam. O White Power fica sabendo, e Carlos, um playboy que agora se politizara no meio do White Power, pensa em dar uma surra naquele que ele sempre teve por um “comunistazinha de meia tigela”. E sua célula, munida de socos-ingleses, vai atrás de Plínio, que desaparece magicamente novamente, volta ao Paraguai, vai ao Peru, começa a ficar um errante sem destino, volta a São Paulo em segredo, e resolve comprar umas armas para se defender quando o White Power o encontrasse.
E, numa ação infantil e suicida, Plínio decide comparecer à festa de sua prima Daniela, sabendo que Carlos estaria presente, para provocá-lo, junto com seu tio Henrique, e decide ir com uma camisa vermelha de foice e martelo, mesmo com a festa sendo de esporte fino, e só entra mesmo porque era da família, e é no máximo “tolerado” naquele ambiente burguês.
Carlos vê Plínio e não acredita, um jornalista que também estava lá também fica perplexo e pergunta a Plínio por qual razão ele tinha desaparecido, pois ninguém das mídias especializadas nunca mais o tinham visto com sua arte que alguns diziam ser “promissora”, e Plínio diz ao jornalista que ele não tinha sumido coisa nenhuma, que Plínio era Bertolt, no que o jornalista quase tem uma síncope. E no mesmo instante, Carlos dá um salto mortal e acerta um soco na cara de Plínio, liga para sua célula White Power, que invade a festa com socos-ingleses e porretes, Plínio sai correndo, vai ao seu carro e pega seu arsenal, e com dois revólveres, mata três dos cinco White Powers que vinham em sua direção, com Carlos com um tiro no braço, e Henrique atônito gritando “Heil Hitler!” no meio da confusão.
Carlos é preso por agressão e Plínio por homicídio, com alguns, descobrindo que se tratava de Bertolt, se sentindo vitoriosos, pois finalmente alguém fora louco o suficiente de enfrentar o White Power, mas Bertolt (Plínio) agora era julgado como um falso Danton da “Revolução”.


02/03/2016. Contos Psicodélicos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

  

              

domingo, 28 de fevereiro de 2016

DYLAN THOMAS, CAMINHO POÉTICO

“nenhum poeta maior inglês foi jamais tão galês quanto ele”

COMEÇO DA HISTÓRIA
Dylan Marlais Thomas nasceu em Swansea, no País de Gales, em 27 de outubro de 1914. Dylan viveu seus primeiros vinte anos em Swansea, o que, pelas palavras de Fitzgibbon, teve importância no caráter galês construído na formação de seu espírito e no modo em que exerceu a sua poesia. Sendo Swansea geograficamente um porto de mar, aonde se encontram a língua inglesa e galesa.
De ascendência galesa, Dylan Thomas foi, contudo, um poeta de língua inglesa, “e nenhum poeta maior inglês foi jamais tão galês quanto ele”, nos assegura seu biógrafo. Com instintos e impulsos que denotavam o caráter de um homem formado no meio rural, carregado por imagens e metáforas de pulsações cósmicas, Thomas foi, entretanto, em um certo sentido, de um temperamento também urbano. Ainda em Swansea, o poeta teve tempo e oportunidade para formular seus próprios valores artísticos, criar suas próprias técnicas e descobrir seus próprios modos de se expressar fora do circuito de modas londrinas. E, falando em Swansea, mais uma vez, foi lá que Thomas herdou o hábito da bebida, e que teve na sua biografia o retrato de um comportamento que pelo seu caminho tangencia o de um alcoólatra.
É dos tempos de Swansea, também, que datam tanto seus primeiros poemas, como também algumas de suas leituras decisivas, uma em destaque, por exemplo, que foi a de Rimbaud, em especial a do soneto das “Voyelles”, o famoso poema de Rimbaud em que as vogais ganham “cores”, fazendo Thomas se considerar, a partir de então, “o Rimbaud de Cwmdonkin Drive”, afirmando ainda que seria um poeta “tão bom quanto Keats, senão melhor”.
E é também dessa época que datam suas primeiras short stories (contos), gênero no qual o autor deixaria algumas obras-primas, como as que se encontram no Portrait of the artist as a young dog (Retrato do artista quando jovem cão), com uma influência joyceana evidente, e tendo nesta época ainda o despertar de seu interesse pelo cinema, o que o levou a produzir roteiros para filmes, se tornando um dos mais competentes roteiristas de seu tempo, juntando a isso, também, um interesse pelo teatro, no qual se revelou um ator de talento, pensando neste profissão, especificamente, como um bilhete de saída de sua vida opaca em Swansea. Neste caso, nas palavras de Fitzgibbon: “E, naturalmente, sua atuação na radiofonia britânica, tanto como leitor quanto como ator, e o público que angariou como leitor de poesia proporcionaram-lhe enorme êxito popular”.
Segundo seu biógrafo, foi ainda em Swansea, contudo, de 1931 a 1934, o período mais importante da vida de Thomas como poeta, pois foram neste anos que ele escreveu todos os poemas de seu primeiro livro, Dezoito poemas, e a maioria dos que compõem o segundo, Vinte e cinco poemas, e de forma embrionária, grande parte dos últimos, podendo se afirmar, sem exagero, que todo o seu estilo de poesia, de forma conceitual e composicional, se devem a este período de três anos ainda em Swansea. E é nesta época, também, que Dylan Thomas trabalhou como jornalista, sobretudo no South Wales Daily Post, quando começou a beber cotidianamente, criando não apenas a sua poesia, como também sua própria imagem como poeta, sobre a qual se construiu sua legenda e, digamos, “aura”.
ESTILO E INFLUÊNCIAS
Falando agora, mais especificamente, da construção estilística da poesia de Dylan Thomas, é nesta época de jornal e bebedeiras que ele toma contato com suas influências literárias e poéticas, partindo das modernas correntes e tendências da literatura inglesa, e passando pelos imagistas e simbolistas, incluindo-se neste últimos as obras e o conceito poético de Rimbaud. Como também recebeu influência dos chamados “poetas metafísicos’ do século XVII, os quais, por sua vez, formaram a sua concepção de poesia mais firme, tanto no ritmo, como no que, tomando a teoria literária de T.S.Eliot, em paródia, poderíamos chamar de “música de ideias”.
E um fato interessante do que diz respeito ao trabalho poético de Dylan Thomas é o de que quase tudo o que ele escreveu neste período foi preservado em cadernos de notas, com exceção de um único caderno, encontrando-se hoje alguns deles em bibliotecas de universidades americanas. A partir deste acervo, organizado e publicado em 1968 pelo professor Ralph Maud com o título de Poet in the making: the notebooks of Dylan Thomas, pode se ter uma dedução de que, entre os 17 e 19 anos, o período de Swansea, ele tenha escrito cerca de 250 poemas considerados dignos o bastante  de serem incluídos naqueles cadernos. Ainda neste material não se encontram preocupações significativas ou sistemáticas com a rima, o que só seria utilizado mais tarde nos poemas mais longos e de maiores ambições no que se diz sobre o ritmo, principalmente.
Os temas diletos do jovem poeta Dylan Thomas eram então os da loucura, da feitiçaria e do diabolismo, exemplos do caráter facilmente mórbido da adolescência. No que Thomas repudiou-os, posteriormente, já ostentando uma nova roupagem surrealista, só com o tema da morte persistindo no caminho seguinte, tema que, por sua vez, ganhava um esforço de superação através de uma espécie de panteísmo, na identificação de si mesmo e de seu corpo mortal com toda a natureza, espaço novo em que Thomas realizou um espectro de imagens fisiológicas, bíblicas e até astronômicas.
O DESPONTAR DA CARREIRA
Um pouco depois, por sua vez, os poemas de Dylan Thomas já começavam a aparecer em publicações de prestígio dos círculos literários londrinos, tais como o New English Weekly e o Adelphi. Alguns meses depois disso, por conseguinte, Stephen Spender, sustentando a opinião de Glyn Jones, referiu-se elogiosamente aos poemas de Thomas junto a Geoffrey Grigson e a T.S.Eliot, este então editor do Criterion e também responsável, nesta época, pelo lançamento de alguns novos poetas ingleses sob o selo da Faber & Faber. Tais contatos levaram Thomas tanto ao Criterion como também ao New Verse e o Listener.
Com o caminho aberto, o reconhecimento poético do autor veio, de fato, em 25 de março de 1934, com a conquista do prêmio de poesia do Sunday Referee. A partir deste momento Thomas passou a se dedicar à organização de um volume de poemas, os quais já se encontravam em embrião em seus antigos cadernos de notas, e tais poemas foram trabalhados com afinco, e todos, por sua vez, passaram parcial ou integralmente, a serem reescritos, na busca de Thomas por maior densidade e complexidade. Determinado a alcançar o impossível, Thomas violentava as palavras e a si mesmo, sendo desta mesma época o work in progress que se tornaria o Finnegans Wake de James Joyce.
Em fins de 1934, Dylan Thomas já estava consolidado como poeta. Ele era, contudo, um outsider de sua geração, pois cronologicamente pertencia à “Geração dos 30”, na qual transitavam nomes como o de W.H. Auden, Stephen Spender, Cecil Day Lewis, Christopher Isherwood, Edward Upward e Calder-Marshall, os integrantes do grupo de poetas de Oxford, que se caracterizavam por ser poetas políticos de inspiração marxista, nada mais distante do caminho de Dylan Thomas, que era um poeta de fundas raízes telúricas de sua Gales natal, com uma preocupação linguística e formal, praticando uma poesia longe de ser politicamente engajada. E em 18 de dezembro, por sua vez, é publicado, finalmente, o primeiro volume de poemas do autor, Dezoito poemas, com uma tiragem de 250 exemplares.
Nos dois anos seguintes Dylan Thomas vive em Londres, flanando pelos pubs de Soho, sempre com problemas de falta de dinheiro, o que aconteceria até o fim de sua vida, pois gastava tudo em bebida, tudo o que ganhava como produtor de programas radiofônicos em Nova York, conferencista ou roteirista de cinema. Nesta época de Londres, Thomas, por sua vez, além dos poemas, escreveu diversas short stories (contos), como “Llareggub”, conto de influência dos Dubliners (Dublinenses) de James Joyce. E ainda neste período, além do conto “The lemon” (O limão), estava em composição seu melhor conto deste mesmo período, “A view of the sea”, que só seria publicado postumamente em 1955, com o título A prospect of the sea.
E foi durante 1936 que Dylan Thomas publicou cinco outros contos na revista surrealista Contemporary Poetry and Prose, além de nove poemas para a sua segunda coletânea de versos, que resultaria em 10 de setembro de 1936, nos Vinte e cinco poemas, com uma tiragem de 750 exemplares. Tal livro resultou em êxito editorial, com a impressão de mais três edições, num total de três mil exemplares, se aproximando dos três mil e quinhentos dos Poems de Auden.
CONFLITOS CRIATIVOS
Mais à frente, já com o novo livro de poemas O mapa do amor, e o volume de contos Retrato do artista quando jovem cão, publicados, a nova atividade de roteirista de Thomas fazia com que sua esposa Caitlin, percebendo que, desde a sua junção com Donald Taylor, na Strand Films, a produção poética de Thomas se exaurira, pois nos últimos três anos, desde o casamento, ele não escrevera quase nada de novo, isso fez com que, portanto, Caitlin viesse com a ideia de que Taylor estava corrompendo o talento de seu marido, que agora produzia pouca coisa em matéria poética. Para Caitlin, Taylor afastara Dylan Thomas de sua arte com a perspectiva do dinheiro e dos night-clubs, transformando em cinismo a inocência de seu marido. O que culminou no fato de que Thomas abandonou de vez seus velhos cadernos de notas quando se transferiu de Marshfield para Londres, vendendo-os em 1941.
No que cabe aqui a interessante observação de seu biógrafo Fitzgibbon: “Seria difícil imaginar um gesto mais significativo da parte de Thomas, a maior renúncia ao passado, do que este. Aqueles cadernos de notas eram a sua juventude, eram os seus poemas, eram Dylan o jovem poeta. (...) E aquele veio que ele explorara desde a sua fértil e febril juventude estava definitivamente extinto para ele. O poeta-menino, o Rimbaud de Cwindonkin Drive, deixara de existir. (...) Os poetas líricos se transformam, ou param, ou morrem. Keats morreu aos 26 anos, e Dylan tinha a mesma idade quando vendeu seus cadernos de notas. Não creio que esta tenha sido uma coincidência meramente fortuita. Quando criança, ele dissera à sua mãe que pretendia ser “melhor do que Keats” e por toda a sua vida esse poeta foi, por assim dizer, o modelo a partir do qual Dylan se avaliava a si mesmo.” 
E entre 1941 e 1944 Thomas não escreveu, ou sequer concluiu, quase nenhum poema, embora estivesse em gestação o que viria a ser o Mortes e entradas, publicado em fevereiro de 1946, que lhe consolidaria como o poeta maior de sua época. Ele trabalhava melhor em Gales, e foi entre 1944 e 1945, que Thomas concluiu e publicou dez poemas que se incluem entre os mais belos que jamais escreveu, como “Poema de outubro”, “Recusa a lamentar”, Este lado da verdade”, “A conversa das preces”, “Conto de inverno”, “Colina das samambaias” e “Em meu ofício ou arte taciturna”, período criativo só comparável à fase de três anos em Swansea, a maior parte deste novos poemas presentes em Mortes e entradas. Dylan Thomas morreu aos 39 anos, muito em decorrência do abuso do álcool e da depressão pela morte de seu pai, um ano antes dele morrer, e seu corpo está enterrado em Laugharne, em Gales.


A POESIA DE DYLAN THOMAS
Poeta de difícil mensuração na tessitura da poesia de língua inglesa, a poesia de Dylan Thomas é um raro elo entre esta e as fontes galesas, sendo o poeta algo que passa ao largo da Geração da década de 1930, a de Auden e outros, como dito anteriormente. Muito rotulado de surrealista, pode-se ver outra fonte de influência, no entanto, na chamada metaphysical poetry, com a riqueza barroca de metáforas retumbantes, como na poesia de John Donne. Portanto, Dylan Thomas pode ser, parcialmente, um surrealista, pois bebeu em antepassados, antes do surrealismo, seja, por exemplo, na poesia visionária de William Blake, e para falar de uma influência sua contemporânea, esta é, gritantemente, a de James Joyce, com todo o seu diabolismo e experimentações linguísticas. Podendo ainda cair em Milton e Keats, e na herança céltica e galesa de seu nascimento e formação.
Dylan Thomas pode ser considerado falsamente um verbalista, embora sua poesia seja rica em flexão retórica, pois é riquíssimo em metáforas, mas se distanciando de temas intelectuais e filosóficos, sendo um poeta de sentimentos e acontecimentos elementares, como nascimento, morte, amor, infância, com verve sacralizante. E, na culminância de sua poesia, Dylan Thomas realiza ou alcança, por assim dizer, a exigência eliotiana da “música de ideias”, sendo por isto também um poeta musical.
E, por fim, muito de sua poesia pode não resistir ao tempo, pois há nela, ainda, uma parte na qual foi produzida profusão de verbalismo retórico, excesso metafórico (barroco e simbolista), e irracionalismo. Podendo contar como influências externas do corpus poético, para a sua poesia, ainda, a Bíblia e Freud. Como assinala Lawrence Durrell, os símbolos de Thomas “mergulham no substrato do inconsciente, na selva de suas primitivas origens, enquanto sua utilização do som lhe confere uma força quase brutal quando nos chegam aos ouvidos”. Não é evidente, contudo, para Durrell: “o quanto o poeta deve aos psicólogos, mas um exame de seu matrimônio com a substância do estilo sugere que, como Joyce, ele fez bom uso da obra que Jung realizou com os símbolos arquetípicos”.
DYLAN THOMAS POR ELE MESMO
E, por fim, como assegura o próprio Dylan Thomas, ele começou a escrever porque “se apaixonara pelas palavras”, mais precisamente pelo som dessas palavras, e não pelo sentido ou símbolo delas, sendo aí vista a raiz musical de seus poemas. É Thomas que confirma: “E aquelas palavras eram para mim como notas emitidas pelos sinos, os sons de instrumentos musicais, os ruídos do vento, do mar, da chuva, o rangido das carroças de leite, o resvalar dos cascos dos animais sobre as pedras do calçamento, o dedilhar dos ramos sobre uma vidraça, poderiam ser para alguém que, surdo de nascença, descobrisse milagrosamente sua audição.” E é neste caminho do som que são edificados todo o telurismo cósmico e a inocência que dão nos seus três primeiros volumes de poemas: Dezoito poemas, Vinte e cinco poemas e O mapa do amor.
Mais adiante, podemos ouvir de Dylan Thomas, também, este apontamentos, em seu manifesto: “Deixem-me dizer que as coisas que primeiro me fizeram amar a língua e desejar trabalhar nela e por ela foram as nursery rhymes e os contos folclóricos, as baladas escocesas, alguns versos de hinos religiosos, as mais famosas histórias da Bíblia e os ritmos bíblicos, os Cantos da inocência de Blake e a majestade mágica absolutamente incompreensível e o absurdo de um Shakespeare ouvido, lido e quase assassinado nos primeiros anos de minha vida escolar.”
A TÉCNICA DYLANIANA
E é por esta razão que Lawrence Durrell afirma que a poesia de Dylan Thomas seja a da “sensualidade e do encantamento”, aquela que, “enquanto deita um olhar fugaz para uma das faces do verso de Hopkins que a influenciou, conserva no entanto um outro sabor mais enevoado que não seria incorreto julgar uma peculiaridade galesa”. No que conclui Durrell, categórico: “Thomas é um profeta da Bíblia e daquele Blake que escreveu os Livros Proféticos”.
Do ponto de vista técnico, indagado certa vez se se utilizava de artifícios de rima, ritmo, aglutinação de palavras em seus poemas, o poeta confirma e acrescenta: “Sirvo-me de tudo e de qualquer coisa para escrever meus poemas e dirijo tais recursos nas direções que bem entendo: velhos e novos truques, trocadilhos, portmanteau words, paradoxos, alusões, paronomásias, paragramas, catacreses, gírias, rimas assonantes, rimas vocálicas, sprung rhythm”, concluindo em seguida: “Qualquer recurso que exista na língua lá está para ser utilizado sempre que alguém dele se queira valer. Os poetas gostam às vezes de se divertir, e as contorções e os espasmos das palavras, as invenções e os artifícios são parte da diversão que, por sua vez, é parte do trabalho doloroso e voluntário.”
Mas, para concluir, não é exatamente na parte técnica, strictu sensu, que reside o ineditismo da poesia dylaniana, mas na parte julgada como a parte ampla de sua técnica, e que lhe dá a faculdade do estilo: uma poética que mora na contração simbológica das imagens, na violência barroca e consequente aprofundamento metafórico (ao abuso e exaustão), nas síncopes do ritmo e no desenho elíptico da linguagem, e que se tem, como resultado, um certo obscurecimento de sentido evidente, que é devido ao estrangulamento criativo do poeta com os liames racionais da língua comum, o que é patente no nervo exposto de todo poema excessivamente metafórico.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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