PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 27 de novembro de 2016

PAUL VERLAINE, A VOZ DOS BOTEQUINS E OUTROS POEMAS – PARTE IV

“com a publicação de seu Art Poètique, Verlaine já está numa nova proposta de escrita poética”

O DECADENTISMO EM PAUL VERLAINE

Paul Verlaine surge no período do fim de século francês (século XIX) como um parnasiano, inicialmente, devido a seu grande apelo formal e ainda por ter participado do grande círculo instaurador de tal estética com seu livro de poesia Poèmes Saturniens (1866), livro que contém poemas que possuem versos firmes, fundados em termos sonoros, com tudo o que a poesia tem de inquietação e pessimismo. Esse conjunto de poemas, embora publicado em 1866, ficou por 20 anos como que despercebido, tendo sido reconhecido somente quando Stéphane Mallarmé foi o primeiro a levantar o nome de Verlaine de sua obscuridade, e reconhecer nele o criador de um novo modo de fazer poesia. E é bom lembrar que o ano de 1866 também foi o mesmo ano no qual houve a publicação da antologia Le Parnasse Contemporain, na qual Verlaine publica sete poemas em um destes fascículos, tendo como companheiros de empreitada nomes como Charles Baudelaire e Théophile Gautier, dentre outros.
Em 1884, porém, com a publicação de seu Art Poètique, Verlaine já está numa nova proposta de escrita poética, ainda bastante sintática e erudita, mas que tinha na musicalidade e não mais na descrição visual uma inovação em relação ao cânone parnasiano, numa nova poesia mais sugestiva de temas do que meramente descritiva. Daí em diante, Verlaine passa a ser conhecido como um dos poetas fundadores do que viria a ser chamado de Simbolismo, movimento que também terá nomes como os de Arthur Rimbaud e Mallarmé.
Todavia, antes da eclosão do movimento simbolista, no período entre 1880 e 1886, na França temos um tipo específico de exaltação dos sentidos no campo literário e os citados poetas teriam em seu modo de escrita uma grande retomada da poética do grande mestre Charles Baudelaire, poeta canônico do livro de poesia Fleurs du Mal (1857), livro que tinha caráter revolucionário e que é uma tentativa do poeta Baudelaire de registrar em poesia um estado de insatisfação contra certas formas de cosmovisões e de concepções da poesia e da arte em geral. Essa retomada, portanto, traz temas poéticos e humanos como a morte, o tédio – típico spleen baudelairiano –, a evasão, dentre outros temas, mas agora num novo clima e estilo, os quais não envolviam mais temas cotidianos, e é nesse novo contexto que veio a surgir o que foi chamado Decadentismo, o qual traz ideias como ruína, e isso num sentido de fracasso do projeto civilizatório e de toda a tradição artística ocidental. Embora não menos cultores dos aspectos de erudição dos movimentos poéticos e literários anteriores, esses poetas agora tinham fundado uma nova estética na qual aparecem temas como a transgressão, num movimento de pensamento que entra em oposição às teorias cientificistas de sua época, principalmente no culto que estas tiveram nos períodos realista e naturalista.
Mesmo que o poeta Verlaine já tenha sinalizado certo instinto decadentista em trabalhos poéticos anteriores, é em Langueur (Langor) (1883) que o poeta atinge tal clima ao se comparar a um império em ruínas, e é neste momento fundador que teremos a afirmação do que veio a ser o Decadentismo. No poema, o autor condensava todo o sentimento pessimista que trazia em si a ideia de decadência. Nesse novo pessimismo temos, ao lermos esses versos, a percepção de que o homem de meados do século XIX, que parecia até então estar numa ideia positiva de busca incessante de progresso material, ter um efeito colateral adverso nesta nova leitura poética. E tal roupagem sinistra aparece, contudo, repleta de sentidos refinados, aristocráticos, no culto de prazeres extravagantes, num contraponto que se manifesta pelo desprezo da vida social comum.
O poeta que, nesse momento, se traveste de “dândi”, expõe em Langueur um sentimento de prazer sádico, acerca de um império em ruínas – o Império Romano Ocidental – e, ainda, demonstra o gozo pela perda de valores dessa civilização, numa atração irresistível pela transgressão, e por tudo que enfrenta e choca o senso comum, caráter geral que vai marcar tudo o que viria a ser o Decadentismo. E o fato da nova tendência surgida no final do século ter o nome de Decadentismo, deve-se a uma atribuição pejorativa “a todos os que se agrupavam em torno de Verlaine”, e que eram nada mais que um conjunto de poetas calcados no anarquismo intelectual, na boêmia, na lassidão moral, no vazio espiritual, e na incapacidade de adaptação ao mundo da revolução industrial.
O escritor ou poeta decadentista viria a ser, por fim, aquele que possui uma postura de renúncia ao que os poetas românticos e de vanguarda buscavam, isto é, a ideia de originalidade, pois os decadentistas tinham como fazer literário as ideias de saturação e do esgotamento dos modelos, com o uso contínuo das mais diversas referências culturais, incluindo aí uma verdadeira profusão de referências à pintura, à música, à escultura, à mitologia, o que tem como objetivo, com toda esta saturação, atingir um ideal que se revestiria num estado de “esteticização generalizada” do texto decadentista.

POEMAS:
AS MÃOS: O poema tem no utensílio físico e principal do corpo, as mãos, o fato culminante desta reflexão poética, pois das mãos que fazem e fizeram o mundo civilizado, temos aqui estas mesmas mãos como imagem poética e que em fluidez se fazem nesta nova forma que Verlaine as confere, e o poema diz: “As doces mãos que foram minhas,/Tão bonitas e tão pequenas/Depois de enganos e de penas” (...) “Reais como em tempos principescos,/As doces mãos abrem-me os sonhos./Mãos em sonho sobre a minha alma,”. Tem uma ideia de passagem neste poema, as mãos como entes temporais, como testemunhas do tempo, este fluxo aqui que é a vida do poeta, a vida de Verlaine, e a passagem é do mal sofrido, dura pena, para algo de esperança, numa fé de porvir que o poema sempre exalta, mesmo em dor, e neste caso, as mãos como entes testemunhais do tempo, são os olhos que modificam o mundo, pois aqui as mãos viram como os olhos, e o poema funciona como esta visão que as mãos do poeta têm, e segue o poema: “Remorso bom, mágoa tão boa,/Sonhos santos, mãos consagradas,/Oh! essas mãos, mãos veneradas,/Fazei o gesto que perdoa!”. À coda do poema, a ideia da redenção, do tempo vivido ao tempo do porvir, a passagem ditada do poema é nada mais que a ideia de perdão, esta faculdade precípua de resolução que renova a vida, e seu caminhar no perdão confere esta nova libertação, as mãos como testemunhas do peso, e que agora são leves com tal ideal redentor.
DE UMA PRISÃO: O poema abre aqui como documento simbólico, o título do poema dá a ideia do local do emitente, que ainda nutre uma esperança solar, a qual vislumbra sobre o telhado, quando o poema-poeta nos diz: “O céu azul, sobre o telhado,/Tem tanta calma!” (...) “A vida aí está, num apagado,/Simples descanso,/Vem da cidade esse apagado/Rumor tão manso.”. Temos um misto de fala resignada com algo de liberdade ainda a conferir, mas o poeta se dirige a uma queda, e tal é a queda da mocidade, este esbaldar de desperdício em que muitos caem, como tabulas rasas que não conhecem ainda os efeitos da libertinagem sobre o futuro, e o poeta aponta o fracasso prematuro da aventura, quando diz, ao fim: “_ Ó tu que aí estás, pobre coitado,/Nessa ansiedade,/Que fizeste, pobre coitado,/Da mocidade?”
ARTE POÉTICA: Este poema funciona como um tipo de guia para a nova poesia de então, e no contexto que Verlaine a afirma, esta tem na musicalidade um ponto de convergência, e que não se estabiliza, como um incauto pode fazer crer, pois resvala, fluidez é seu nome próprio, até na ideia ímpar, como um caldo que não se fecha, como algo que na liberdade da abertura se faz: “Música acima de qualquer cousa,/E prefere o Ímpar, menos vulgar,/Que é bem mais vago e solúvel no ar,/Que nada pesa e que em nada pousa.” A ideia do poema aqui flutua, não faz casa em nenhum lugar, a abertura radical é sua crença, e Verlaine lhe dá o caráter, quando nos diz: “Nada melhor do que o poema fluido”. E segue em sua visão, dizendo ainda: “Nós só queremos o meio-tom,/Nada de Cor, somente a Nuança!/Oh! a Nuança é que faz a aliança/Do sonho ao sonho e do som ao som!”. Aqui a ideia de musicalidade e de sonoridade estão ao lado do transe onírico, o poeta do Simbolismo está aqui na cara e no corpo inteiro do poema, que segue: “Toma a eloquência e esgana-a! Farás/Bem em agir energicamente,/Tornando a Rima um tanto obediente.”. A eloquência e a retórica aqui são aniquiladas pela ideia de som: “Música, sempre e cada vez mais!/Seja o teu verso a cousa evolada/Que vem a nós de uma alma exilada/Em outros céus para outros ideais.”. E tal ideia musical se torna mais importante que a de literatura, uma vez que aqui na coda o projeto de Verlaine, voltado ao seu futuro, se faz, e tal projeto não faz mais da literatura o alvo, o som tudo toma, para Verlaine quando se fala de poesia estamos mais falando de música do que de literatura, no que ele fecha o poema com verso definitivo, quando tudo o mais que “ele” não faz é a tal renomada literatura: “Seja o teu verso a boa aventura/Esparsa ao áspero ar da manhã,/Que vai cheirando a giesta e hortelã .../E tudo mais é literatura.”

POEMAS:
DO LIVRO “SAGESSE”:
AS MÃOS
As doces mãos que foram minhas,
Tão bonitas e tão pequenas
Depois de enganos e de penas
E de tantas coisas mesquinhas,

Depois de portos tão risonhos,
Províncias, cantos pitorescos,
Reais como em tempos principescos,
As doces mãos abrem-me os sonhos.

Mãos em sonho sobre a minha alma,
Que sei eu o que vos dignastes,
Entre tão pérfidos contrastes,
Dizer a esta alma pasma e calma?

Mentirá minha visão casta
De espiritual afinidade,
De maternal cumplicidade
E de afeição estreita e vasta?

Remorso bom, mágoa tão boa,
Sonhos santos, mãos consagradas,
Oh! essas mãos, mãos veneradas,
Fazei o gesto que perdoa!

DE UMA PRISÃO
O céu azul, sobre o telhado,
Tem tanta calma!
Uma árvore, sobre o telhado,
Move uma palma.

O sino, sob o céu ao lado,
Dobra bem lento,
Um pássaro, na árvore ao lado,
Canta um lamento.

A vida aí está, num apagado,
Simples descanso,
Vem da cidade esse apagado
Rumor tão manso.

_ Ó tu que aí estás, pobre coitado,
Nessa ansiedade,
Que fizeste, pobre coitado,
Da mocidade?

DO LIVRO “JADIS ET NAGUÈRE”
ARTE POÉTICA
a Charles Morice

Música acima de qualquer cousa,
E prefere o Ímpar, menos vulgar,
Que é bem mais vago e solúvel no ar,
Que nada pesa e que em nada pousa.

É bom também que saibas medir
Teus termos, não sem certo descuido:
Nada melhor do que o poema fluido
Que ao Indeciso o Preciso unir.

É um lindo olhar entre rendas raras,
É a luz que treme ao sol vertical,
É, por um céu de calma outonal,
A mescla azul das estrelas claras!

Nós só queremos o meio-tom,
Nada de Cor, somente a Nuança!
Oh! a Nuança é que faz a aliança
Do sonho ao sonho e do som ao som!

Evita sempre a Ponta daninha,
O cruel Espírito e o Riso alvar,
Que apenas fazem o Azul chorar,
E esse alho, enfim, de baixa cozinha!

Toma a eloquência e esgana-a! Farás
Bem em agir energicamente,
Tornando a Rima um tanto obediente.
Quem sabe lá do que ela é capaz?

Oh! quem diria os males da Rima?
Que criança surda, ou negro imbecil
Terá forjado essa joia vil
Que soa falsa e vã sob a lima?

Música, sempre e cada vez mais!
Seja o teu verso a cousa evolada
Que vem a nós de uma alma exilada
Em outros céus para outros ideais.

Seja o teu verso a boa aventura
Esparsa ao áspero ar da manhã,
Que vai cheirando a giesta e hortelã ...
E tudo mais é literatura.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31656/17/paul-verlaine-a-voz-dos-botequins-e-outros-poemas-parte-4