PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 4 de junho de 2016

FRIEDRICH HÖLDERLIN E SEUS POEMAS DA ERA PRÉ-ROMÂNTICA – PARTE I

Hölderlin, poeta fundamental da História alemã e mundial, mostra à posteridade duas frentes para a análise de sua poesia. O poeta Hölderlin pode ser encarado como um emissor do fenômeno de seu tempo e de seu país, ele que foi o contemporâneo dos pré-românticos alemães do Sturm und Drang, e que com eles contrapôs o entusiasmo do gênio criador e apaixonado ao status conformado do bom gosto, a espontaneidade do estado natural de Rosseau às afetações da sociedade aristocrático-burguesa, as demandas do sentimento aos limites do despotismo da razão, ao mesmo passo em que fazia tinha na Natureza um fenômeno central e absoluto, como suprema potência criadora e destruidora, de cujas instâncias seriam, todas elas, outras tantas manifestações do Divino, colocando a Natureza num pedestal celeste e sobrenatural, no idealismo que parte de Rosseau para um panteísmo de fusão com tudo que é natural, há este Hölderlin que parte da Grécia Antiga e se funde à Natureza.
Outro aspecto, este histórico, é o de que Hölderlin, na sua obra, tem um papel sui generis na evolução literária da Alemanha, pois ao pré-romantismo não se seguiu, de imediato, como poderia parecer, o romantismo propriamente dito, mas sim um classicismo revigorado e renovado, que envolvia vultos como Schiller e Goethe, e que teria a sua sede espiritual no principado de Weimar. Como esses dois fanáticos da Antiguidade clássica, Hölderlin também cultuou a Grécia como um ideal de arte e de vida, sem deixar de lado, e atuando, simultaneamente, na sua valorização e exaltação da cultura alemã, a qual se afirmava então com bastante vigor na literatura, na filosofia, na teoria estética e em toda investigação erudita.
E quando se ousa chamar Hölderlin de antecipador do moderno, isto se dá na perspectiva histórica que foi adiante a partir dele, ou seja, a importância do poeta e sua influência nos tempos posteriores de sua obra. Hölderlin atua como inovador que, sem deixar de estar ligado à sua circunstância histórica, nesta dupla frente de Antiguidade clássica e cultura alemã, conseguiu se projetar além desta circunstância na direção do futuro para anunciar os vindouros caminhos da poesia do Ocidente. Hölderlin não antecipou apenas o estilo rítmico de um Nietzsche, a lírica de um Verlaine, um Baudelaire e um Swinburne, mas tudo o que hoje forceja por encontrar a poesia mais moderna.
E de acordo com Wilhelm Dilthey, um dos primeiros críticos alemães a perceber a grandeza de Hölderlin, o poeta contrapôs “poesia e história, linguagem e sociedade” e ao ver na poesia o “ponto de interseção entre o poder divino e a liberdade humana, o poeta como guardião da palavra que nos preserva do caos original”, antecipou ele, também, no dizer de Octavio Paz, “os temas centrais da poesia moderna”. E Hölderlin teve também, como influências literárias, escritores como: Klopstock, Schiller, Young e Ossian, autores canônicos do pré-romantismo então vitorioso.
A vocação poética de Hölderlin começa já então sob a influência de suas leituras de Platão, nas quais ele se afastava cada vez mais da fé protestante. Os poemas dessa fase traem o magistério de Klopstock, o que inclui não somente o uso dos metros antigos, como nas referências religiosas e nas invocações patrióticas, mas também o gosto pela pintura de paisagens melancólicas banhadas de luar e por devaneios amorosos repassados de notas tumulares, lugares poéticos exaltados e abissais em que deixa claro o magistério de Ossian e Young. Mas a influência da lírica ideológica de Schiller é que irá levar o jovem Hölderlin à conquista de uma dicção própria, na qual o “ritmo interior”, caracterizado por Dilthey como aquele “que exprime o desenvolvimento do processo anímico através da ordenação e combinação de períodos” e que se sobrepõe à regularidade da métrica convencional, conduzirá ao “estilo rítmico”, que o mesmo Dilthey tem por distintivo da lírica hölderliniana, nele vendo inclusive uma antecipação dos rumos futuros da poesia europeia.
O tema de “Os carvalhos”, por sua vez, apresenta o contraste entre a natureza domesticada dos jardins, que é símbolo usual do espírito rococó, e a natureza titânica das florestas, como tal cultuada pelo espírito pré-romântico de forma quase mística. No poema de Hölderlin, à livre individualidade natural dos carvalhos, “um mundo cada um de vós, (...) cada qual um deus” se opõe a escravidão da civilização, a “vida gregária” de que o próprio poeta aspirava a libertar-se. Mas não podia, pois o poeta se encontrava preso pelos “laços do amor” – o amor de Diotima-Susette que o fazia resignar-se à condição servil de preceptor, olhado de cima pelos frequentadores da casa do banqueiro Gontard. Ou seja, o aspecto biográfico e simbólico se fundem numa mesma música neste poema, e que Diotima como Susette será grande vulto nestes conhecidos poemas que comporão o chamado Ciclo de Diotima.
O ímpeto ascensional dos carvalhos se torna essência em “Ao éter”, que nos dá a medida do que pretendia o “politeísmo da imaginação e da arte” proposto no “Programa” de 1795, o primeiro programa do idealismo alemão, feito por Schelling, mas com orientação decisiva de Hölderlin. O éter, em grego aither, tem a acepção de “céu” em Homero, de “ar” em Empédocles e de “o elemento divino da alma humana” em Filóstrato, feito divindade alegórica, surge na Teogonia de Hesíodo como um dos filhos da União entre o Ar e o Dia, juntamente com a Mãe-Terra e o Mar. Trata-se, pois, não de um verdadeiro mito ligado ao sistema religioso arcaico, e sim de uma elaboração filosófica, mais bem adequado, por isso mesmo, ao tipo de “nova mitologia da razão” sonhada por Hölderlin. O éter sempre aparece como algo onipresente em toda a atmosfera universal, tal como um fluido em que se cerca a realidade natural e do universo. Tal tem sentido tanto místico como puramente físico.
Diotima: poema escrito na época ditosa de sua ligação com Susette Gontard; nele, como em outros de igual título que também inspirou, ela aparece sob o seu cognome platônico, tal que é a sábia de O Banquete. Escrito em dísticos elegíacos, um verso de seis pés seguido de outro de cinco, nos quais ainda se trai a influência de Klopstock, a estrutura ternária do poema se ostenta na oposição da tese – a “antiga natureza do homem”, que pode ser tanto a do homem natural de Rosseau quanto a do ateniense de outrora, saído “belo de corpo e alma” das mãos da própria Natureza – com a antítese da “agitação dos tempos” de derrocada do Antigo Regime vividos pelo poeta e sua musa. Esta surge como intermediadora entre os imortais e os mortais, pois vem trazer aos últimos “os tranquilos acordes do céu” que vão instaurar a síntese – o reinado da utopia, a nova idade de ouro, sob a égide não mais do terror e sim da paz. O Ciclo de Diotima, por sua vez, será uma das fases de abertura de toda a poesia de Hölderlin, que se dá de forma promissora e que, ao fim, culminará na sua fase decadente dos poemas de loucura, o que tratarei adiante nesta série.

(DO CICLO DE DIOTIMA – 1795-1798)
OS CARVALHOS
Saindo dos jardins, vou até vós, oh! filhos da montanha;
Dos jardins onde, paciente e caseira, a Natureza convive
Com os homens diligentes, cuidando e sendo deles cuidada.
Mas vós vos ergueis, altivo povo de Titãs, em meio
A mundo mais dócil, só de vós mesmos dependentes,
E do céu que vos nutriu e educou, e da terra que gerou-vos.
Nenhum de vós frequentou jamais a escola dos homens;
Jubilosos e livres, desde a robustez das raízes,
Vos lançais para o alto, em tropel, com braço vigoroso
Conquistando o espaço, como a águia à presa, e para as nuvens
Voltando as vossas copas amplas, joviais, ensolaradas.
É um mundo cada um de vós; como os astros do céu,
Viveis em livre associação, cada qual um deus.
Tolerasse eu ser escravo, jamais invejaria
Essa floresta e me sujeitaria à vida gregária.
Não estivesse meu coração cativo dessa vida
E do amor, quanto me agradaria viver à sombra vossa!

AO ÉTER

Ninguém, entre os homens e os deuses, foi-me tão fiel
E bom como o foste, Pai Éter; antes já que minha mãe
Me tomasse nos braços para aleitar-me em seu seio,
Tu me enlaçaste com meiguice e me verteste no peito
Infante a poção do céu e no ouvido o sacro sopro teu.

Não é só de alimento terrestre que vivem os seres,
Mas és tu que os nutres a todos com teu néctar, Pai!
De tua fonte sempiterna corre e flui por todos
Os condutos da vida teu ar vivificante.
Por isso os seres te amam e forcejam para o alto,
Buscando-te o tempo todo em ditoso crescimento.

Celeste! não te procura a planta com seus olhos,
E o arbusto rasteiro não te estende os braços tímidos?
Para encontrar-te é que a semente reclusa rompe a casca;
Por ti vivificada, e para banhar-se em tuas vagas,
É que o bosque sacode de si, roupa excessiva, a neve.
Os peixes também sobem à tona e saltam anelantes
Por sobre o espelho do rio, como que fugindo
Do seu berço para ti; os nobres animais terrestres
Amiúde ganham asas quando a ânsia impetuosa,
O secreto amor por ti, os impele para cima.

O soberbo corcel desdenha o chão; aço em arco, busca
Com o pescoço as alturas, mal toca a areia com os cascos.
Como a brincar, o pé do gamo roça o talo de relva
E transpõe, zéfiro, o riacho a espumejar impetuoso,
Saltando-o uma e outra vez, visível a custo entre os arbustos.
Mas os favoritos do Éter, os pássaros ditosos,

Vivem e brincam no sempiterno pórtico do Pai!
Há lugar para todos. De nenhum a senda está marcada.
Pequenos e grandes se movem livres pela casa.
Alegra-me tê-los sobre a cabeça, e o coração,
Num prodigioso anseio, voa até eles; pátria amável,
O Éter me chama lá do alto, e aos cimos dos Alpes
Eu quisera subir para gritar à águia apressada
Que, como outrora o menino eleito aos braços de Zeus,
Me levasse do cativeiro ao pórtico celeste.

Néscios, vagamos de um para outro lado; como a vide
Errante que, sem esteio, cresce no rumo do céu,
Alastramo-nos pelo solo e, extraviados, em vão
Vagamos pelas zonas da Terra, oh meu Pai Éter!
Anseios de morar no teu jardim conosco vão.
Às ondas do mar nós nos lançamos, em planícies mais livres
Fartamo-nos, e brinca a infinda vaga com a nossa quilha
E se alegra o coração com o poder do deus do mar.
Mas isso não basta, oceano mais fundo nos seduz,
Onde a vaga se move mais ligeira – oh! quem pudesse
Às costas de ouro impelir o nosso barco errante!

Mas enquanto anseio por essas lonjuras esfumadas,
Onde tua vaga azul envolve as praias ignotas,
Múrmuro, do alto das árvores floridas do pomar,
Vens tu mesmo, Pai Éter, aplacar-me o coração,
E, propenso como outrora, vivo entre as flores da Terra.

DIOTIMA

Vem, oh delícia da celeste Musa, tu que os elementos
Outrora irmanaste, vem acalmar o caos do tempo;
Com os tranquilos acordes do céu, amansa a luta irada
Até no peito dos mortais a discórdia apagar-se
E a antiga natureza dos homens, imponente, serena,
Ressurgir, força e júbilo, da agitação dos tempos.
Volta, vívida beleza, aos carentes corações do povo!
Volta de novo à mesa hospitaleira, volta ao templo!
Pois, tal como as tenras flores de inverno, Diotima vive
Rica do seu próprio espírito, mas buscando o sol.
Todavia, o sol do espírito, o mundo mais belo se foi
E na fria noite raivam somente os furacões.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:   

  http://seculodiario.com.br/29028/17/friedrich-holderlin-e-seus-poemas-da-era-pre-romantica-parte-i

domingo, 29 de maio de 2016

OS SOFRIMENTOS DO JOVEM WERTHER, ROMANCE EPISTOLAR DE GOETHE

“o herói romântico tem a sua nêmesis plantada por si mesmo ao, no prazer do amor, traduzi-lo em puro sofrimento”

INTRODUÇÃO
Para Goethe, o amor por Charlotte fora breve, mas inspirou-lhe um romance, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, publicado anonimamente em 1774. A história de Werther comoveu uma geração inteira. A juventude imitava o sôfrego personagem, vestindo calças amarelas e coletes azuis, e suicidando-se por amor, como o herói. A infelicidade tomou os corações, e o amor e a morte, temas da poesia, do teatro e da vida, converteram-se no binômio mais corrente da época. Goethe ficou conhecido internacionalmente como o “autor de Werther”, epíteto que o acompanhou durante muitos anos, até ele se tornar o “autor de Fausto”.
“Os Sofrimentos do Jovem Werther” é um retrato perfeito da era pré-romântica alemã na literatura e na arte, e que já era uma anunciação do que viria a ser o manifesto artístico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) que era sobretudo o movimento literário que abriria o caminho para o que viria a ser o romantismo alemão logo a seguir. Tal epíteto vinha da obra de Maximilian von Klinger, Tempestade e Ímpeto, um drama, e que exprimiria de maneira exemplar a nova mentalidade entre os jovens literatos alemães, os quais se libertariam das amarras do classicismo reinante, sobretudo nas dimensões estanques do tempo e do espaço do teatro, com um cheiro de liberdade criativa que teria amplitude semelhante ao que fora, em tempos atrás, o teatro elisabetano.
ESTÓRIAS DE AMOR E DE PAIXÃO
A estória de paixão, amor e decadência perpassam o ímpeto e sofreguidão do jovem Werther ao ser acometido de um amor impossível por sua adorada Carlota, percurso que começará no céu do amor novo e que logo cairá no desespero final de um inferno que Werther cava com as próprias mãos ao se obsedar por algo que já estava como ruína, ao ver que Carlota tinha um noivo.
Werther tinha uma amplitude intelectual, era, de certo modo, um literato, lia muito Homero, cairia de amores por Ossian, mas seu amor fatal seria Carlota, que o tinha por estima, mas que era aquela espécie brutal para um apaixonado, a clássica relação fraternal em que o jovem vê nela sua atenção, energia e vida inteiras, o impulso do amor eterno que, quando dá errado, é o inferno eterno, e isto como disse se dá de maneira muito previsível, pois, adivinhem, Carlota só poderia considerar Werther como a um irmão, ruína maior e mais brutal do enamorado clássico, aqui no contexto pré-romântico alemão, mas já podendo se dizer que Werther já era da cepa do herói romântico, vítima da desdita, e feitor de sua própria tragédia.
No início do romance podemos ver que o jovem Werther ainda carregava em si uma doce iluminação, o que levaria ao seu amor eterno, mas que seria, por outro lado, tal iluminação a fonte de seu desespero. Posteriormente, podemos ver nas suas primeiras cartas deste romance epistolar, no qual ele se dirige ao seu amigo e irmão Wilhelm: “A vida humana não passa de um sonho. (...) Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência (...) Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas.” Aqui Werther dá a sua imagem de ser iluminado, quase extático, admirador da natureza, espírito romântico, ainda de bem com a vida, mas já presente no seu conflito com os hábitos humanos, natureza espiritual sem senso prático, como é comum aos iluminados, e que de luz e céu constantes, ainda não sabia que flertava com o abismo.

O CÉU E O INFERNO
Tal céu de abismo podemos ver nas suas primeiras impressões em relação ao seu novo amor, Carlota: “Sinto-me contente, feliz (...) É um anjo! (...) é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita (...) Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser. (...) (E a prima dela avisa) : _ Não vá apaixonar-se. __ Por quê? __ Porque ela já está prometida a um belo rapaz. Ele está de viagem, a fim de regularizar os seus negócios, pois acaba de perder o pai. E também para arranjar um bom emprego.
E Werther apenas diz: Tudo isso deixou-me indiferente. (Carlota era a moça). E prossegue: “Enquanto ela falava, como eu me deleitei em fitar os seus olhos negros! Como toda a minha alma era atraída pelos seus lábios cheios de vida, suas faces frescas e animadas! Quantas vezes, absorvido em minha admiração pelo sentido das suas frases, sequer cheguei a ouvir as palavras de que ela se servia!”. Aqui temos um Werther hipnotizado, sem senso crítico, todo seu ardor, toda a sua alma, agora tinha uma ocupação exclusivamente romântica, sua idealização de seu objeto de amor será a fonte de sua felicidade inicial, mas que terá um preço, já anunciado na presença do noivo de Carlota, o contido e sóbrio Alberto.
Numa dança, Werther já delira, simulando seu ciúme, com tais ideias: “jurei a mim mesmo que, se amasse uma jovem e tivesse qualquer direito sobre ela, preferia fazer-me matar a consentir que ela valsasse com outro”. E Carlota se dirige a Werther: “Alberto, um belo rapaz, é meu noivo faz pouco tempo.” E Werther volta-se ao seu interlocutor epistolar: “Meu caro Wilhelm, arquitetei toda sorte de reflexões a respeito do desejo que o homem sente de dilatar o seu horizonte, fazendo novas descobertas, errando a aventura e, além disso, a respeito do sentimento que o leva a acomodar-se numa existência limitada, e a caminhar com os antolhos do hábito”, e diz de Carlota: Ela me censurou o interesse apaixonado que tomo por todas as coisas e que acabará – disse – por me consumir!” De fato, um espírito demasiado impressionável como o de Werther poderia ter um futuro brilhante ou um fim trágico, dependendo de sua evolução, e do andar de sua natureza excessiva para um tipo de austeridade ou pelo caminho oposto da autodestruição, em que seu excesso de ser curioso e impressionável volta-se contra si mesmo como uma nêmesis pelo seu descuido dos sentidos, isto é, a morte ou a loucura.
WERTHER E SUA OBSESSÃO
E a obsessão de Werther já era clara, todas as suas reflexões refinadas tinham um endereço único, e o perigo já se avizinhava, como podemos ver na continuação de suas cartas: “Ali estava sem outro pensamento que não fosse para ela! (...) Não, meu coração não é assim tão corrompido! Ele é fraco, sim, bem fraco! (...) Ela me é sagrada. Todo desejo emudece em sua presença. Não sei o que sinto quando estou junto dela; é como se toda a minha alma estivesse subvertida.”
E segue, diante da visão de sua musa: “Nada do que os antigos contam sobre o poder sobrenatural da música me parece inverossímil. Como esse pequeno canto toma conta de mim. E como ela sabe fazer-se ouvir a propósito, sempre no momento em que me vem vontade de meter uma bala na cabeça! ... O delírio e as trevas se dissipam na minha alma e respiro mais livremente.” Nestes trechos já podemos ver os ecos sutis de seu fim trágico, de forma que suas cartas já demonstram, nesta altura, seu pendor de coração fraco e impressionável, mas que está num prazer quase místico na sua adoração de Carlota como a uma deusa, ou melhor, como um anjo ao qual ele deve toda a sua alma e devoção, sua natureza, como ele mesmo diz, está subvertida, e a música é mais um pretexto para a sua idealização que ganha agora contornos visionários.
E segue o romance epistolar, e a febre de Werther só aumenta, seu temperamento joga contra ele mesmo, e a presença de Alberto seria sua ruína terrível: “Vou vê-la! Foi esta a minha primeira exclamação desta manhã, quando me levantei e meus olhos procuraram alegremente o sol. Vou vê-la! E, durante o dia inteiro, não tive outro desejo. Tudo, tudo foi absorvido por essa perspectiva.” Dá para ver que Werther não tem mais outra ocupação para o seu coração, sua vida prática, por sinal, passava por uma experiência de trabalho com um embaixador, mas Werther pede exoneração depois de ser discriminado pela alta sociedade.
E Alberto aparece como uma verdadeira senha que o infortunado Werther era, àquela altura, incapaz de decifrar: “Todavia, não posso recusar minha estima a Alberto. Sua calma exterior contrasta vivamente com o meu caráter inquieto (...) Eis o que você me disse (dirigindo-se a Wilhelm): ‘Ou você tem alguma esperança de obter Carlota, ou não tem. Assim, no primeiro caso, faça todo o esforço para realizar essa esperança e chegar ao cumprimento dos seus votos; no segundo, tome uma resolução viril, procurando livrar-se de um sentimento funesto que consumirá inevitavelmente todas as suas forças’
WERTHER E SUA ARMADILHA
E segue Werther nas cartas, se enredando na sua própria teia: “Não compreendo que outro a ame, que outro tenha o direito de amar essa criatura, quando eu a amo, eu somente, de um amor tão ardente, tão completo! Quando não conheço ninguém, não sei nada, não possuo outra coisa a não ser Carlota! (...) Ai de mim! Que vazio horrível sinto em meu peito! Quantas vezes digo a mim mesmo: Se você pudesse uma vez, ao menos uma vez, apertá-la contra o coração, esse vazio seria preenchido. (...) Quantas vezes tenho vontade de rasgar o peito e estourar o crânio vendo que somos tão pouca coisa uns para os outros! Ah! O que trago em mim de amor, alegria, calor e embriaguez só de mim depende, não me poderá ser dado por outrem, e o coração transbordando de felicidade, não poderei fazer feliz esse outrem, se ele permanece frio e sem força diante de mim. (...) Tenho-a toda em mim, e o sentimento que experimento por ela absorve tudo. Tenho-a toda em mim, e sem ela tudo é para mim como se não existisse.”
E Werther, aqui, cai na armadilha mais que conhecida de ser o único no mundo capaz de amar Carlota como ele (por suposto) poderia amá-la, e a senha principal do enamorado, de que ele queria fazê-la feliz, código apaixonado que não reconhece, por estar com os sentidos comprometidos, de que o egoísmo da felicidade sempre parte do apaixonado e não para o objeto da paixão, no caso.
 E já no final do processo desta paixão de Werther, ele já não se sente tão bem como no começo, já dá sinais de fadiga, e parte para o seu fim trágico: “sinto-me profundamente infeliz. Oh! Se eu pudesse mudar de humor, entregar-me ao tempo, a isto ou aquilo, ao insucesso de uma inciativa qualquer, ao menos o fardo dos meus aborrecimentos não pesaria tanto. Que desgraçado que sou! Sinto-me perfeitamente o único culpado”. Werther não tem mais tempo para outra coisa, e talvez esta sua obsessão lhe roubara o tempo útil em que ele poderia, como a própria Carlota advertiu, por exemplo, de buscar outra moça para os seus préstimos românticos. O que não ocorreria neste romance de Goethe, cujo final deixo em aberto, mas que já deve estar subentendido pelo leitor.

TRAGÉDIA
Werther entra então em sua filosofia do desespero: “Não, não sou culpado, mas é em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora a fonte de toda a minha felicidade. Não serei mais o homem que então nadava num mar de rosas, e a cada passo via surgir um paraíso, e cujo amor era capaz de abranger o mundo inteiro? Mas o coração que assim pulsava está morto, não produz mais os arrebatamentos de outros tempos; (...) Como a sua imagem me persegue! Quer vele, quer sonhe, ela enche a minha alma inteira!” Werther, por fim, não é vítima de Carlota, ele é presa de seu pendor desmedido, o herói romântico tem a sua nêmesis plantada por si mesmo ao, no prazer do amor, traduzi-lo em puro sofrimento, os sofrimentos do jovem Werther.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28915/17/os-sofrimentos-do-jovem-werther-romance-epistolar-de-goethe