PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 6 de junho de 2017

EMILY DICKINSON – POEMAS ESCOLHIDOS – PARTE III

“surge um tipo de mitologia em torno da poesia e da figura da escritora”

Não reconhecida em vida, a posteridade foi generosa com a poesia de Emily Dickinson, com uma permanência de crítica e público na História, e que figura ao lado de Walt Whitman, como um clássico da poesia norte-americana. Emily, com poemas que, literalmente, eram costurados como um “patchwork”, era como uma alegórica colcha de retalhos,  e isso num estilo ricamente lírico na sua poesia, num conjunto de produção poética que possuía muitos poemas curtos, dentre os quais figuravam os chamados esboços rascunhados, como se a poesia de Emily Dickinson fizesse parte de uma produção artesanal, caseira, longe ainda da dimensão histórica que esta poesia viria a conquistar.
E aqui, neste aspecto artesanal da poesia de Emily Dickinson, é que surge um tipo de mitologia em torno da poesia e da figura da escritora, retratada, por sua vez, como a reclusa de Amherst. E do ponto de vista do estilo poético, tal escrita era capaz de realizar um máximo de potência com o mínimo de sons, com o uso corriqueiro de versos curtos, juntando no mesmo poema virtuosismo e a simplicidade de uma canção popular.
E temos ainda os travessões que ela criou como um tipo de sinal gráfico até então inexistente em língua inglesa: a disjunção, um traço curto (—). A disjunção, então, tem a função, como um dos principais recursos estilísticos de sua escrita, de destacar uma palavra ou de grifar uma expressão, marcar pausas de leitura ou dicção, alterar o ritmo de alguns versos, podendo separar fragmentos de frases, ou ainda expressar continuidade (ou descontinuidade) de uma ideia, o que também explica ou marca algo que veio primeiro no poema do que vem a seguir. Mas, mesmo com tais marcas de pontuação originalíssimas, e também devido a isto, mais de um quinto dos manuscritos da autora não subsistiram, e muitas das transcrições de terceiros tentaram inadvertidamente regularizar a pontuação e outros aspectos gráficos e prosódicos de sua escrita.
A comparação entre Emily Dickinson e Walt Whitman tende, às vezes, a fazer uma equivalência entre tais poetas, o que não diz muito da diferença abissal de estilo entre ambos, sendo Emily intitulada de modo capenga como o Whitman de saias. Mesmo que os dois escritores tenham vivido quase na mesma época, eram diversos em estilo, e Whitman teve êxito literário ainda vivo, ao contrário de Emily, que passou discretamente pelos seus contemporâneos. Emily, quanto ao estilo, era contida e hermética, e Whitman, por sua vez, tinha estro derramado, num caminho poético transbordante, com o som de Emily suave e o de Whitman exultante. Emily, por sua vez, teve o objetivo de enviar uma carta ao mundo, e sua poesia, além de artesanal, tinha a feição de uma trama epistolar, de dimensões comedidas no som e no estilo, ao passo que Whitman se dirigia aos jovens do futuro com um ímpeto messiânico, com sua trombeta de poeta-profeta que se dizia “Full of Life Now” (Pleno de vida agora).
Emily, às escondidas, pavimentou um novo caminho para a poesia, numa direção oposta em relação a Whitman, e que, assim como a poesia dele, teria poder de fazer surgir uma nova América, com uma literatura independente e de alcance universal. Com seu material caseiro, numa arca reunindo todo um trabalho de artesanato inédito, Emily ergue na sua poesia um modo de escrita de moldes métricos muito simples, num estilo de poesia mais puro e reto, sem derramamento, numa linguagem condensada com expressão despojada, e tão revolucionária quanto o pretenso messianismo de Whitman.

POEMAS :

SEM TÍTULO : O poema marítimo, que tem o mar do coração, é este que se abre em melopeia ou em tormenta, e o vento do verso de Emily nos dá isto: “O coração tem bordas estreitas/E, feito o mar, se mensura/Por um poderoso baixo contínuo/E monotonia azul/Até que um furacão o seccione”. A ruptura e a fragmentação de tal coração é este que : “Aprende em convulsões/Que a calmaria é tão-só muralha/De intocada gaze:/A pressão de um instante a destrói,/Um questionamento a esgarça.”. O vento que colide em tais muros de contenção rompem a fronteira de proteção de um coração que é agora pressionado pelas convulsões de dentro, e a de fora, a do mundo.

SEM TÍTULO : A morte é evocada em uma poesia que é contida, nas suas exéquias, e então o poema vem assim: “Senti exéquias em meu cérebro/E, agitando-se, carpideiras/A pisar o solo, a pisar/Até que o senso pareceu irromper.”. E a descrição ressoa como um tambor, a poesia tenta traduzir a própria agonia da qual sente a pressão, no que Emily em sua alma sente como chumbo a ranger, no que temos: “o tambor/Passou a ressoar e pensei/Que a minha mente entrava em torpor./Ouvi então erguerem um esquife/E cruzarem a minha alma/Com as mesmas botas de chumbo a ranger;”. E então a queda, sem mais: “E logo uma tábua na razão quebrou-se/E fui caindo, caindo,”.

SEM TÍTULO : O poema mistura Charlotte Brönte e a inspiração da migração das aves, no que o estro é formidável, ao verso revolucionário de uma poesia nova: “Toda coberta de insidioso musgo,/De espinheiros, toda inçada,/A pequena gaiola de Currer Bell*/Na tranquila Hawort** jaz./Essa ave ao ver que as outras,/Quando a geada se fez cortante,/Migravam para novas latitudes,/Imitou-as simplesmente,/Mas diverso foi seu retorno;/Em Yorkshire, embora verdes as colinas,/A cotovia não se acha/Em todos os ninhos./Pois que em seu vaguear o soube,”. O movimento de ir e retornar, e a angústia que atinge a flor mortal, eis que o poema é a migração da escrita no voo de ave que tudo vê com as asas que lhe elevam: “A imensa extasiada angústia/Com que ela atingiu a flor mortal.”.

SEM TÍTULO : A Beleza e a Verdade se juntam e se separam no mesmo poema, e Emily está plenamente consciente de ambas quando nos dá estes versos: “Morri pela beleza, mas estava apenas/No sepulcro acomodada/Quando alguém que pela verdade morrera/Foi posto na tumba ao lado./Perguntou-me, baixinho, o que me matara:/“A Beleza”, respondi./“A mim, a Verdade – são ambas a mesma coisa,/Somos irmãos.”. Por ambas a poesia vê a morte, a Verdade e a Beleza, como irmãs de um mesmo caminho, e de que a poesia se nutre como vida da qual se morre.

SEM TÍTULO : O poema é um grilo, ao fim, e as claves somem, a melodia se ausenta, e a beleza se une à natureza, e o grilo termina o poema em sua elegia, no que temos: “Tem muitas claves a terra./Lá, onde a melodia se ausenta,/Fica a desconhecida península./A beleza é fruto da Natureza./Mas, testemunha de seu solo/E testemunha de seu mar,/O grilo é a maior elegia/Que a Natureza me faz.”. A Natureza, enfim, é o poema em seu estado original.

POEMAS :

SEM TÍTULO

O coração tem bordas estreitas
E, feito o mar, se mensura
Por um poderoso baixo contínuo
E monotonia azul

Até que um furacão o seccione
E, enquanto descobre
Seu insuficiente espaço,
Aprende em convulsões

Que a calmaria é tão-só muralha
De intocada gaze:
A pressão de um instante a destrói,
Um questionamento a esgarça.

SEM TÍTULO

Senti exéquias em meu cérebro
E, agitando-se, carpideiras
A pisar o solo, a pisar
Até que o senso pareceu irromper.

E, quando todas se aquietaram,
De um rito, o tambor
Passou a ressoar e pensei
Que a minha mente entrava em torpor.

Ouvi então erguerem um esquife
E cruzarem a minha alma
Com as mesmas botas de chumbo a ranger;
O espaço agora começou a soar

Como se os céus um sino fossem
E o ser nada mais que um ouvido,
E eu e o silêncio, uma estranha raça
Aniquilada e solitária, aqui;

E logo uma tábua na razão quebrou-se
E fui caindo, caindo,
E, na queda, atingia mundos
E acabei por saber – então –

SEM TÍTULO

Toda coberta de insidioso musgo,
De espinheiros, toda inçada,
A pequena gaiola de Currer Bell*
Na tranquila Hawort** jaz.

Essa ave ao ver que as outras,
Quando a geada se fez cortante,
Migravam para novas latitudes,
Imitou-as simplesmente,

Mas diverso foi seu retorno;
Em Yorkshire, embora verdes as colinas,
A cotovia não se acha
Em todos os ninhos.

Pois que em seu vaguear o soube,
Getsêmani pode contar
A imensa extasiada angústia
Com que ela atingiu a flor mortal.

Suaves caem os sons do Éden
Em seu ouvido absorto –
Ó que entardecer no céu,
Quando Brontë lá chegou!
*Pseudônimo de Charlotte Brontë
** Vilarejo inglês, onde as irmãs Brontë produziram a sua obra.

SEM TÍTULO

Morri pela beleza, mas estava apenas
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.

Perguntou-me, baixinho, o que me matara:
“A Beleza”, respondi.
“A mim, a Verdade – são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos.”

E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.

SEM TÍTULO

Tem muitas claves a terra.
Lá, onde a melodia se ausenta,
Fica a desconhecida península.
A beleza é fruto da Natureza.

Mas, testemunha de seu solo
E testemunha de seu mar,
O grilo é a maior elegia
Que a Natureza me faz.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.





domingo, 4 de junho de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE IV

“a voz da razão no Candide também é ela toda utópica”

“ROBINSON CRUSOE” O DIÁRIO DAS VIRTUDES MERCANTIS

Daniel Defoe (1660-1731) aparece aqui como um improvisado romancista de quase sessenta anos, pois era reconhecido por suas crônicas políticas, e também autor de uma profusão de textos que envolvia diversos gêneros, e como nos diz Calvino: “Suas bibliografias mais completas reúnem quase quatrocentos títulos, entre libelos de controvérsias religiosas e políticas, poemetos satíricos, livros de ocultismo, tratados históricos, geográficos, econômicos, e romances”.
E o romance, quando chega pelas mãos de Defoe, tem aqui caráter original de projeto prático, de negócio, e que não abala, por conseguinte, o que virá a ser um tipo de, como nos diz Calvino: “autêntica bíblia das virtudes mercantis e industriais, a epopeia da iniciativa individual”. Numa ética ligada à ideia econômica da livre iniciativa, tem aqui ligação, também, biográfica com o homem que era Defoe, que era uma mistura riquíssima de pregador e aventureiro, que passa pelo comércio, homem de fábrica, que passa por bancarrotas, e é ainda fundador e conselheiro do partido whig que apoiava Guilherme de Orange, também fundando o jornal The Review, no qual configurava como seu único redator, e que lhe granjeou o título de inventor do jornalismo moderno, até que este homem multifacetado que era Defoe foi desembocar no romance.
Defoe faz o romance de Robinson não apenas como a narrativa que parte das aventuras do naufrágio e da ilha deserta, mas que avança até a velhice do protagonista, e que ganha aqui o caráter de uma pretensão moralista, de um gancho que envolve uma pedagogia rudimentar que se resume na obediência ao pai, a superioridade da condição média, da vida modesta sem saltos para grandes fortunas, e que é transgredida por Robinson, fazendo com que este entre em várias confusões.
Defoe escreve o romance com uma economia de recursos e um despojamento que supera o inchaço setecentista e o tal colorido patético que dominará a narrativa inglesa do Setecentos, com um Defoe sóbrio, e que na contenção dos recursos estilísticos age ao lado do estilo “de código civil” de Stendhal, podendo Defoe se encaixar aqui, portanto, em seu romance, no que Calvino vai chamar de “relatório comercial”.
E é em tal relatório comercial que teremos como que um catálogo de mercadorias e utensílios. O despojamento da narrativa de Defoe vem, ao mesmo tempo, ricamente detalhista nos pormenores, pois tal minúcia é um recurso de veracidade que visa convencer o leitor de tal, e que ganha por fim uma descrição ao paroxismo da importância de cada objeto, de cada movimento, e de todo o contexto que envolve a situação objetiva e a condição de náufrago. E nestas ricas descrições Defoe acaba por retratar a luta do homem com a matéria e a natureza, quando se fala do romance de Robinson Crusoe.  
Robinson Crusoe possui uma renúncia à tentação da autocompaixão ou também ao júbilo excessivo, e pula para questões práticas e bem manuais, e que no romance aparece como um grande contraste com a homilia que perpassa o trajeto do romance em que Robinson passa por uma doença que o leva ao caminho de volta ao pensamento religioso, mas que não deixa o caráter de retorno ao aspecto prático da vida do trabalho, esta que é a fonte objetiva da minúcia descritiva que domina a escrita de Defoe no romance e em outros escritos de sua autoria.  E aqui ainda temos as fontes que o narrador de aventuras Defoe vai buscar, quando das descrições de cenas de canibalismo, nas quais se pode evocar Montaigne, ou ainda A Tempestade de Shakespeare.

“CANDIDE” OU A VELOCIDADE

Candide não se nos apresenta, quando se fala de seu fascínio, como apenas um conto filosófico, em que se confrontam teses, ou ainda não se trata, também, ou apenas, de uma sátira com roupagem filosófica, mas sim uma estória que tem um ritmo, em que os acontecimentos ganham uma velocidade vertiginosa no tempo (eventos) e no espaço (geografia). A sucessão de eventos envolve uma série da vertigem que tem tudo de desgraças, suplícios e massacres, e vem Calvino nos lembrar que “bastam as três páginas do capítulo VIII para que Cunegundes se dê conta de como, tendo tido pai, mãe, irmão esquartejados pelo invasores, tenha sido violentada, destripada, curada, reduzida a lavadeira, transformada em objeto de negociação na Holanda e em Portugal, dividida em dias alternados entre dois protetores com profissões de fés diferentes, e assim tenha acabado por assistir ao auto-de-fé que tem como vítimas Pangloss e Cândido e por reunir-se a este último”.
Tal efeito de vertigem na sucessão dos acontecimentos em Candide de Voltaire ganha muitas vezes uma aceleração de ritmo que chegam ao absurdo, tal como quando diz Calvino “a série das desventuras já velozmente narradas em sua exposição por extenso é repetida num resumo de provocar tonturas”. E em Candide temos um grande cinematógrafo mundial, pois quando se fala em espaço aqui falamos também de uma geografia que dá voltas no mundo, e que, como nos diz Calvino “leva Cândido da Vestefália natal até a Holanda, Portugal, América do Sul, França, Inglaterra, Veneza, Turquia e se espalha nas voltas ao mundo supletivas das personagens coadjuvantes, homens e sobretudo mulheres, fáceis presas de piratas e de mercadores de escravos entre o Gibraltar e o Bósforo”.
Também aqui em Candide temos um cinematógrafo dos eventos históricos, e que Calvino enumera o que são: “aldeias dizimadas na Guerra dos Sete Anos entre prussianos e franceses (os “búlgaros” e os “ávaros”), o terremoto de Lisboa de 1755, os autos-de-fé da Inquisição, os jesuítas do Paraguai que recusam o domínio espanhol e português, as míticas riquezas dos incas, e alguns flashes mais rápidos sobre o protestantismo na Holanda, a expansão da sífilis, a pirataria mediterrânea e atlântica, as guerras intestinas do Marrocos, a exploração de escravos negros na Guiana, deixando uma certa margem para as crônicas literárias e mundanas parisienses e para as entrevistas com os muitos reis destronados do momento, reunidos no Carnaval de Veneza”.
E diante de tal espaço geográfico vertiginoso, em que um mundo inteiro cabe em oitenta páginas, temos um destino que é mais caro a toda utopia, pois até aqui tudo era ruína e desgraça, o mundo que conhecemos da dor e do sofrimento, e que tem esta imagem de um mundo sábio e feliz que é Eldorado. E aqui a ligação entre a felicidade e a riqueza ou opulência pode ser ignorada, pois como diz Calvino “os incas ignoram que a poeira de ouro de suas estradas e as pedras de diamantes tenham tanto valor para os homens do Velho Mundo”, mas é neste mundo rico sem saber que Cândido encontra a tal sociedade sábia e feliz, lugar em que o otimista leibniziano Pangloss poderia enfim ter sua razão filosófica para o mundo como um todo confirmada, mas Calvino logo nos adverte: “acontece que Eldorado está escondido entre as mais inacessíveis cordilheiras dos Andes, talvez num farrapo de mapa : trata-se de um não-lugar, de uma utopia”.
E temos entre os personagens de Candide alguns que como diz Calvino “parecem feitas de borracha”, pois temos como exemplo Pangloss que definha com a sífilis, é enforcado, amarrado aos remos de um navio, e logo mais está ele vivo e livre. E temos então um encontro com o fundo filosófico ou visão de mundo de Voltaire, o autor. E aqui temos que ela não pode ser, como muitos pensam erroneamente, associada somente com a conhecida polêmica que visa criticar numa sátira o otimismo providencialista de Pangloss, pois o mentor que acompanha Cândido por mais tempo não é o infeliz pedagogo leibniziano, mas o “maniqueísta” Martin, que só vê o êxito do diabo nas coisas do mundo, como o oposto do inocente Pangloss.
Mas tal oposição entre Pangloss e Martin não tem um vencedor, pois Voltaire, o autor, deixa claro que não há uma explicação metafísica do mal, como fazem ambos os personagens citados, apontando uma outra origem, subjetiva, indefinível, e na qual não podemos medir nada, tendo então o credo revelado de Voltaire como anti-finalista, pois ele não é nunca Pangloss, nem tampouco, no entanto, Martin, pois aqui Voltaire se encontra com o fundo teológico de Pascal, pois se Deus tem um fim, tal é insondável, vendo-se, por conseguinte, Voltaire como um voluntarista no seu racionalismo ético. 
E se estamos diante de uma sucessão de desastres intermináveis e insuportáveis pelo trajeto da narrativa de Voltaire, sempre há lugares piores para conhecer, o mal é infinito, e seu jugo é o sofrimento, mas aqui temos então um riso ou uma pequena alegria, diante dos cenários de tortura, a vida rápida e extremamente limitada do homem sempre tem alento no que é menos pior, há alguém que pode estar mais infeliz que nós, contudo, como nos diz Calvino, em Candide, por exemplo, “quem por acaso não tivesse nada de que se lamentar, dispusesse de tudo o que a vida pode oferecer de bom, terminaria como o senhor Pococurante, senador veneziano, que está sempre olhando para os outros com soberba, encontrando defeitos onde deveria achar apenas motivos de satisfação e de admiração. A verdadeira personagem negativa do livro é ele, o aborrecido Pococurante; no fundo, Pangloss e Martin, mesmo dando respostas insensatas às perguntas, se debatem nos tormentos e riscos que constituem a substância da vida”.
E Calvino prossegue: “A submissa veia da sabedoria que aflora no livro por meio de porta-vozes marginais como o anabatista Jacques, o velho inca, e aquele savant parisiense que se parece muito com o autor, se declara por fim pela boca do dervixe na famosa moral do: cultivar nosso jardim”. Aqui isso também nos diz de uma utopia, e que a voz da razão no Candide também é ela toda utópica. Uma frase do Candide que obteve, por fim, êxito e muito sucesso, virando praticamente um provérbio. Por fim, o julgamento do homem não se dará mais por um bem ou mal transcendentes ou metafísicos, há uma virada tanto epistemológica como ética, com as escolhas humanas sendo geradas agora por um mundo prático da ação cotidiana, num novo mundo de trabalho e produção material.

DENIS DIDEROT “JACQUES LE FATALISTE”

Diderot consegue com seu romance Jacques, o Fatalista, figurar como um dos pais da literatura contemporânea, pois em Jacques o autor Diderot inverte valorações do romance tradicional, já que ao invés de se harmonizar com o leitor, fazendo com que este esqueça que está lendo e viva a estória que é contada, Diderot impõe uma tensão e um conflito entre o autor que está contando sua história e o leitor que se debruça sobre esta, e tal que é em Diderot a passagem da leitura de aceitação passiva para o questionamento contínuo que desperta o espírito crítico, no que Diderot faz algo em Jacques que antecipa um pouco o que Brecht viria a fazer no teatro, mas no caso de Brecht seria com intenção didática, ao passo que Diderot quer alcançar um despojamento crítico do leitor para livrá-lo de preconceitos.
E num jogo de possibilidades abertas pelo romance de Diderot temos aqui um caminho narrativo que engana o leitor para depois demonstrar que tal caminho que a narrativa toma seria o único possível. E podemos ainda caracterizar Jacques como quase indefinível pela teoria literária, podendo ser encaixado talvez com o que Bakhtin chamará de “conto polifônico” ou “menipeu” ou “rabelaisiano” : ou seja, um mundo que não é linear, mas que ainda assim possui uma lógica, num tipo de narrativa livre e errante, antípoda do gosto setecentista francês. E que, como nos esclarece Calvino: “A anglofilia literária foi sempre um estímulo vital para as literaturas do continente; Diderot fez dela sua bandeira na cruzada pela “verdade” expressiva”.
Diderot faz a descrição de um mundo calcado em relações humanas que são como implicações recíprocas de qualidades individuais, mas que ainda possuem os tipos sociais que os definem, mas tais papéis sociais não esmagam as relações tais quais elas se dão na narrativa, e quanto ao fatalismo do qual Jacques se faz porta-voz (tudo aquilo que acontece estava escrito no céu), não o coloca numa zona de passividade, pelo contrário, o joga para uma ação de iniciativa e uma prática volitiva vigorosa. Os diálogos filosóficos de Jacques com o patrão, no entanto, são rudimentares, e que remetem de modo esparso às famosas concepções da necessidade tanto em Spinoza como em Leibniz.
Aqui Diderot vai contra Voltaire, este que polemiza com Leibniz em Cândido ou Do otimismo, ao passo que Diderot em Jacques, o Fatalista, vai pelo caminho de afirmar a visão filosófica de Leibniz e também de Spinoza. Diderot descobre que é num mundo determinista que as forças volitivas podem se afirmar com mais vigor, a necessidade tornaria a liberdade individual mais eficaz ao vencer esta barreira de um mundo duro e rígido. Tal determinismo que antecipa os passos do conhecimento novo na biologia, na economia, no estudo da sociedade, e por fim no estudo da psique. Mas, como diz Calvino: “Contudo, não se pode absolutamente dizer que Jacques, o Fatalista “ensine’ ou “demonstre” isso ou aquilo. Não existe axioma teórico que coincida com as variações e arrancos dos heróis diderotianos (...) reconhecemos a concisão setecentista que se choca com o pathos romântico do imprevisto e do destino como acontecerá em Kleist”.
E, por fim, mais uma vez Calvino, por aqui finaliza: “Se Jacques é o anti-Candide, é porque pretende ser o anti-conte philosophique (...) A escritura livre de Diderot se opõe tanto à “filosofia” quanto à “literatura”, mas hoje aquela que nós reconhecemos como a verdadeira estrutura literária é justamente a sua. Não é uma casualidade que Jacques e seu amo tenha sido recentemente “refeito” sob forma teatral e moderna por um escritor inteligente como Milan Kundera. E que o romance de Kundera, A insustentável leveza do ser, o revele como o mais diderotiano dos escritores contemporâneos por sua arte ao mesclar romance de sentimentos, romance existencial, filosofia, ironia”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/34378/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicosij-1