PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

CANTO DE LIBERDADE

 A taça repleta de vinho
é a ambrosia sequiosa
dos ventos cardeais.

Pois em bel-canto o sonho
é mais altivo, alvoroço
das alvoradas, auréolas
de auroras dos haustos
que vinham na vinícola.

Bem o sal que eleva o êxtase,
brumoso o campo retilíneo,
longo e espesso o corpo de tronco,
os sopros das leveduras,
os dias que arrancam
do pólen o manjar.

Prenhe o sol está vermelho e risonho,
e nos encampa com seu calor
de monturo com fumos nas
esferas arbóreas de um sonho
fermentado, de um delírio
há muito anelado,

ah, pois arfar com o peito túmido,
só mesmo se o coração
está explodindo
em um canto de
liberdade.

04/05/2017 Gustavo Bastos

CANTO DAS TORRES

As torres da vereda se espalham
em seus mármores, campos verdes
como os montes que são azuis
vão pela via férrea,

doze apóstolos carismáticos
batem tambores no meio
da sarça, nobres vinhos
cantam a liberdade
como seus ataques
de fúria.

Oh, venham todos, assobia
o sentinela, arrulha ave pasma,
desvenda teu segredo
o convés de pedra
no jardim do espanto,

oh, torres esculpidas em delírio!
venham, venham,
motores poluídos de sal,
senhores exploradores
de sonhos,
caveiras sulcadas de terror,
sim, veias roídas
de estupor,
venham, lobos furibundos
da pradaria, estepes rubicundas
com sermões mnemônicos
mimetizados por rapsodos.

As torres anunciam:
o primeiro monge franciscano
se terá em luxo por
toda a plebe, um rico fantasista
com suas odes de nababo,
um senhor das elites
mais alienadas,
o renunciante mais
embasbacado
do castelo
num céu de
diamantes.

Pois tem, pois venham.
De súbito o poema
é este:
versos lenhosos
de cedro,
potência e ato
com acordes monteses
sob a mais alta
inspiração
solar,

poema versificado
como um grande sol
na bruma do farol,

poema em lua rotunda.

04/05/2017 Gustavo Bastos

A MORTE

Pela sombra do monte, ali vi corpos,
estavam extraviados do destino auspicioso,
do verão sem fim das luzes benditas.

Ali vi corpos retirados
de seus campos de feno,
de suas casas pacíficas,
de seus cães carinhosos.

Ali, na sombra do monte,
corpos inanimados
que poderiam estar sorrindo,
corpos exangues que estavam
antes na flor da vida,
no sol da vida,
corpos-cadáveres.

04/05/2017 Gustavo Bastos

MUNDO DA SOBERBA

Que o braço da guerra, e seu tonto
ditador, não nos dê a bomba.
Pois de um Hitler e de um Hiroito,
ao pé da Coreia, ao sul com asma,
Duterte e seu infame bramido
estoura até o meu ventre.

Vai anacoreta pacifista, lembrar de dar
flores aos canos fumegantes das balas.

Matar minhas sereias, oh infame
ditador, matar minhas naiades
foste ao corpo todo aniquilado
dos ventos radioativos,
podre ditador.

Quem, em sã consciência, elegeria
mais um porre como Trump?
Sim, sois de elencar a farsa idiota
que toma a ribalta, seres mesmerizados
arrotando os dólares das enxurradas
de quantitative easing, de furos
sub-prime, de verdades superfaturadas
em propinas líquidas com
as mãos cheias de dinheiro.

Pois que tem aqui sorte de corja
e todos os engravatados
convivas da festa champanha
como hóspedes do apocalipse.

04/052017 Gustavo Bastos



terça-feira, 2 de maio de 2017

FANTASIA

Senhor que me exaltas,
tirai do espanto
teu estro potente.

Que me sevicia teu esgar
de monturos de fumo,
teu rio castanho
de dolor como langor.

Frêmito que no cais se agiganta,
pois desde o sonho mais brando,
tira de mim o reflexo do karma.

Que poder e bondade, à viagem estelar
das vidas encarnadas, me dê
todo o sabor da sapiência,
com olores de flores
nas almas absurdas,

com todo o encantamento
de poções luzentes
que dos poetas ladinos
é uma grande messe
de teatro e fantasia.

02/05/2017 Gustavo Bastos


VENTURA

Balada em ritmo meloso,
dança e melopeia,
alvor langoroso
que dá suspiros
exangue.

Flecha que da seta ataca o coração,
e que na tez da sombra é fúria
e anarquia.

Ouro recanto e fulvo espanto,
maviosa chama que de música
à flauta e ao tambor
poema tece.

Logo o poeta se firma com messe
e levita sobre os ópios
que na casta hindu se dormiam.

Luzidio campo sobre as rosas,
estrelas seriadas pelo verso
que ao langor do rio se esmera.

Rosas lívidas, como em verso
o estupor lhe cobre a face,
e o livro fremente
aqui ao esguio grito
um ser de dores
no prazer se expande
tal cometa e cosmos.

Venha corolário, axioma das
ventanias com luzes e o sopro
mefistofélico das ranhuras,

logo os poetas brandirão
seus cartapácios como novas
alusões ao sonho totêmico
e momesco das artes
de riso e harmonia.

Langor dos fumos,
ventre extasiado,
lenho que no peito
a flâmula se esbalda,

verte meu campo de ébano,
meus senhores de delírios,
ao tambor que rebate
por entre os mognos
e os cedros do Líbano,

oh poeta, me dá a marcha
à floresta!
oh poesia, me acerta a flecha
ao vermelho da festa!

Poesia, que sois todo o poder,
dá de madeira à lei natural
meus dias flutuantes
de opioides.

Todos os delírios da noite
são meus, oh visionários
que na aurora são poetas!

Meu silêncio é uma nave
expandindo seu canto estelar,
nas galáxias que explodem
em supernovas,
nos quasares quase ares
do poema que vira ventura.

02/05/2017 Gustavo Bastos

RIO EXTÁTICO

Belo domínio do êxtase,
e que vem comunidade
do estro,
bel-canto.

Logra ter paciência de monge
nas embocaduras do rio que
se eleva e depois desce,
como poeta do todo se apetece.

Rio estranho, com o caldo nobre
que da poesia faz foz.

Êxtase radioso que no rio
o espanto entumesce,
tal o coração cheio
da messe.

Aqui se sucede o brio brumoso
que do alto da torre um jogral
se lambuza de mel.

Belonave que vira vento,
tambores da noite
na ressaca do mar,

vai e diz à vinha
o teor do poema:
um ser de rio extático.

02/05/2017 Gustavo Bastos

O REGATO DO SONHO

O gosto do regato, estreito poço,
como é de alpendre à visão cotidiana,
ao pé-direito dividido em chaves rústicas,
é um do mesmo que esculpe sombra e ar.

Pelo poço o melado, o mel esticado na boca,
que doce sucede ao céu do criador,
e frente ao abismo converte
o sonho em ação direta.

O vinho do regato, o pântano que
revira o ser bruto que o habita,
poeta em todo o tempo espaço que é,
habitante imóvel do ser de si mesmo.

Bate o gosto do vinho no regato,
um descanso de volta à pátria
dos que vivem potência e tear,
perfilados na armada centúria.

Estro sobre a margem delgada,
o poeta convida seus ermos campos
a se debater no frêmito
e a debelar do regato
o inferno que roto espoucava.

O gosto de vinho do regato,
como uma taça eterna.

02/05/2017 Gustavo Bastos

domingo, 30 de abril de 2017

LÓTUS

O nardo, que na meditação
age ao natural, me dá a força
centrífuga que abre o caminho
na flor-de-lis que ao regente sol
à capa e espada os livres cantam.

Pois, quando da estrela polar
os cânticos sulcam o mármore,
os poetas quase loucos
furam as ondas com fúria,
sabem de seus emblemas e pórticos
como discípulos bem postos
nas selvas brutas do crepúsculo.

Pois o nardo, e a fonte de almíscar,
e o espanto do sândalo,
e o bafo de canela,
todos estes odores são
fantasmas da matéria,
sopros luzidios com giros de fumaça
que descansa nas bocas das espumas
venusianas que o poema rutila
como uma ametista sobre
os rubis da montanha.

E as sombras mutiladas,
estes corpúsculos do bafo quente,
soam contritos como ranger de dentes
na batalha dos faróis,
e fervem na relva úmida
como os delírios do bobo
quando este é visionário.

Tais visões, que nas alturas cerúleas
ou nos abismos dos ínferos,
nos traz os fundos saberes,
do oráculo mais perfumado
são o vaticínio como tear
na flor d`alma das estrelas
platinadas dos alvores
que o lago místico de lótus
tornou canção.

30/04/2017 Gustavo Bastos

POEMA ESTRELADO

O duro e claro poema,
que atravessa os cantos,
remete seu esquema
como um convés.

Dentro ou fora, o verso escança
suas sombras e luzes
como matizes,
corre à mão e à sorrelfa
como um canto repentino
que volteia ondas ou marcha
como pedra avante.

E, do linho ao óleo cru,
poema de todo gosto,
eldorado, pasárgada
e utopia.

E, como poema que é contrito,
passa como lema e livro
nas cores brutais do sonho,

e, como poema estulto,
sofre rima como paralaxe
da estrela que brota
na visão do páramo.

30/04/2017 Gustavo Bastos

CIDADE BALANÇANTE

Na rua, com a cara molhada,
os gemidos de dor de fome
são mais nítidos.

A chuva nos libera os dons mortíferos,
e eu que vi os ínferos brotarem
como topázios na via diamantada,
cresci como um grande cogumelo
nos mofos das paredes,
gritei como um leão nos haustos
produtores de caos
na flor da cidade.

E, calma, não saio com os colares
das cores que pus na trilogia
dos cavalos xucros,
pois na lida ainda sei dos teares
que são moto-contínuo
e leitmotiv
com crescidos giros
de orlando furioso,

ou talvez que o livro indecente
que havia muito imaginado
virou frontispício
de um gole de absinto
na floresta da cidade.

Pois, que ao bruto sacode das ancas,
jogral eu fui como poeta.

30/04/2017 Gustavo Bastos

POEMA REBATIDO NO CHÃO

Cansei desta obscuridade, em lhes dizer
que o livro "está pronto",
pois em um dia, ou uma tarde,
ou ainda numa noitada,
faço dramas por linhas tortas,
devaneio e um espirro atômico,
flancos na subida dos degraus.

Ah, já me desfaço em partes pueris,
geometria dos braços trucidados,
meios tons, semi-círculos,
folguedos e bruma.

Que o átrio e a ária, que o raio e
a praia, e os fones de ouvido
quando ando ainda, todos estes penduricalhos
me movam impiedosamente,
como um giro convexo,
em planas formas como
uma arquitetura brutalista,

e que os sóis desenhados
na tela infantil
me deem alento
na fronteira final
do poema que me
cai sem mais.

30/04/2017 Gustavo Bastos

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE II

“o romance de cavalaria é um fenômeno literário e não calcado na realidade”

TIRANT LO BLANC

Ítalo Calvino segue em sua análise, desta vez sobre Tirant Lo Blanc e o romance de cavalaria, desde suas origens, e coloca o fenômeno Tirant Lo Blanc como o primeiro romance de cavalaria espanhol, e faz sua crítica lembrando que há algo que podemos chamar de regressão ao infinito neste modelo de romance, pois para Calvino, quando nos deparamos com um romance desses, temos logo a noção de que um romance de cavalaria sempre se refere a outro do mesmo modelo que lhe é precedente. Pois temos aqui que a formação do cavaleiro num romance advém da leitura de outro precedente, e assim temos esta regressão inusitada da tradição do romance de cavalaria.
E Calvino conclui que o romance de cavalaria é um fenômeno literário e não calcado na realidade, isto é, tal tradição é feita no próprio romance, no próprio objeto livro, e não num estrato social real, como se poderia supor. Assim, como diz Calvino “é possível compreender como o último depositário das virtudes cavalheirescas, Dom Quixote, será alguém que construiu a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos livros. Uma vez que Cura, Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado fogo à biblioteca, a cavalaria terminou: Dom Quixote permanecerá como o último exemplar de uma espécie sem sucessores.”
E Calvino faz uma distinção entre o autor Cervantes e a personagem Dom Quixote, lembrando que o autor do romance de cavalaria tem a originalidade literária como orientação e que se funda numa verdade humana, não sendo objeto de sua apreciação o mito da cavalaria em si, mas sim o fenômeno do livro que este modelo envolve sobretudo para o autor, tanto como homem ou como romancista, o livro é que importa, uma vez que Calvino já tinha concluído por este viés quando recorre à tradição do romance de cavalaria assim mesmo, como romance, e não como realidade.
Por outro lado, quando vemos Dom Quixote, temos aqui o fenômeno de fusão que mistura a realidade com a loucura, em que o mito da cavalaria se torna a junção delirante entre a vida real e os livros, numa busca por este mito fora dos livros, no que temos o adjetivo quixotesco em seu uso sobre todo empreendimento que junta a realidade à fantasia e não faz mais distinção entre ficção e mundo real, ou de quando a utopia vira delírio.
Por sua vez, como nos diz Calvino, “o declínio da cavalaria fora celebrado por Pulci, Boiardo, Ariosto num clima de festa renascentista, com matizes burlescos mais ou menos marcados, porém com nostalgia pela ingênua fabulação popular dos contadores de histórias; aos rudes despojos do imaginário cavalheiresco ninguém atribuía nenhum valor além de um repertório de motivos convencionais, mas o céu da poesia se abria para acolher seu espírito.”
E assim, na França e Inglaterra, a tradição literária cavaleiresca se apagara antes, e o revival cavalheiresco do século XVI envolve sobretudo Itália e Espanha. A descoberta do Novo Mundo e a Conquista foram acompanhadas, no imaginário coletivo, como nos diz Calvino, “por aquelas histórias de gigantes e de encantamentos das quais o mercado de livros oferecia vasto sortimento, assim como a primeira difusão europeia do ciclo francês acompanhara, alguns séculos antes, a mobilização publicitária para as Cruzadas.” E conclui Calvino: “O milênio que está para se encerrar foi o milênio do romance. Nos séculos XI, XII e XIII, os romances de cavalaria foram os primeiros livros profanos cuja difusão marcou profundamente a vida das pessoas comuns e não somente dos doutos.”
O romance de cavalaria, portanto, nos traz o fenômeno literário como central, a imagem do livro como inauguração do romance moderno, e Dom Quixote como a figura simbólica de um movimento na literatura que ganha o contorno em que Cervantes abre um caminho, que para Quixote era a fantasia dos livros de cavalaria no mundo real, e que para Cervantes era usar uma tradição para fazer o novo romance surgir como a literatura nova que ganharia força nos séculos seguintes. Cervantes como autor faz uma renovação a partir de uma origem fictícia que também é um conteúdo de ficção, só sendo real para Quixote e todos aqueles utópicos e visionários que foram adjetivados de quixotescos.

A ESTRUTURA DO “ORLANDO”

Para Calvino “Orlando furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar”. Aqui temos que tal poema tem como origem outro poema, é sua continuação, a do Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E o Orlando furioso, por sua vez, é um poema que não acaba, pois seu autor, Ariosto, não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após sua primeira publicação em 1516, em quarenta cantos, Ariosto continua seu aprimoramento, e que ganha outra versão nos chamados Cinque canti, publicados postumamente, depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46.
E como retrata Calvino: “para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a partir do interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando novas simetrias e novos contrastes, me parece que explica bem o método de construção de Ariosto; e permanece para ele o verdadeiro modo de alargar esse poema de estrutura policêntrica e sincrônica, cujas vicissitudes se difundem em todas as direções e se bifurcam continuamente.”
Por conseguinte, quanto à forma, não temos uma definição sintética do poema, pois sua geometria não é rígida, a fluência do poema tem mais a ver com campos de força que interagem, num movimento que podemos chamar de centrífugo, com o anúncio que se pode fazer do Orlando furioso como o poema do movimento, no qual, como nos diz Calvino “o prazer da rapidez da ação se mistura logo a um sentido de amplitude na disponibilidade do espaço e do tempo”, no que podemos chamar de o movimento “errante” da poesia de Ariosto.
Tais características do “espaço” ariostesco está tanto na escala do poema inteiro ou dos cantos singulares bem como numa escala menor, a da estrofe ou do verso. E temos a oitava como a medida em que reconhecemos o estro de Ariosto em atividade, e que, como nos diz Calvino “na estrofe de oito versos Ariosto se vira como quer, está em casa, seu milagre é feito sobretudo de desenvoltura.” E Calvino segue a sua análise, nos dizendo que quanto à oitava de Ariosto, temos que: “uma estrofe que se presta a discursos também longos e a alternar tons sublimes e líricos com tons prosaicos e jocosos; e uma intrínseca ao modo de poetar de Ariosto, que não se tolhe com limites de nenhum gênero, que não se propôs como Dante uma repartição rígida da matéria, nem uma regra de simetria que o obrigasse a um número de cantos preestabelecido e a um número de estrofes em cada canto.”
E temos que a característica da oitava ariostesca está numa orientação poética pelo ritmo variado da linguagem falada, com ironia, de registro coloquial, e que é um pêndulo que vai do lírico ao trágico e até ao gnômico, isto tudo podendo estar numa mesma estrofe. E como nos diz Calvino, ainda sobre a oitava: “Convém frisar que a própria estrutura da oitava se baseia numa descontinuidade de ritmo: aos seis versos unidos por uma dupla de rimas alternadas seguem-se dois versos com rimas emparelhadas, com um efeito que hoje definiríamos como anticlímax, de brusca mudança não só rítmica mas de clima psicológico e intelectual, do culto ao popular, do evocativo ao cômico.”
Ariosto, portanto, nos dá um poema com fluência e não com unidade, como poderíamos esperar de um Dante, por exemplo, uma vez que a estrutura de oitavas, como nos mostra o próprio Calvino, é uma forma literária brusca, que termina emparelhada, e que tem fluência como quebra e como ruptura tanto de forma como de conteúdo, no que Orlando furioso é um poema que se comporta mais como um poliedro do que como uma geometria plana e definida como previsível.
Até pelo fato de que Ariosto nos confunde com sua estrutura que tende ao infinito, tanto nas suas origens em Orlando innamorato, como na sua adição de cantos intermináveis, além de suas adaptações de estilo e dimensões que torna o poema um enxerto em que cabe tudo, temos a ideia de um poema completo que é na verdade uma estrutura que parece um tanto implodida por suas características poliédricas em todos os sentidos da palavra. Ariosto quer o poema total como um grande espaço repleto de campos de força, nos quais vemos conflitos de forma, conteúdo e estilo, um poema completo no sentido de que contém diversas tendências e orientações. 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/33855/17/por-que-ler-os-classicosij-1





PÚCHKIN – POESIAS ESCOLHIDAS – PARTE IV

“Púchkin em sua bela forma é o poeta russo de todos os tempos.”

OBRA DE PÚCHKIN – PARTE I

Púchkin simboliza a Rússia como Goethe simboliza a Alemanha, Shakespeare a Inglaterra, Camões Portugal, Dante a Itália ou Cervantes a Espanha. Poeta genial, prosador e dramaturgo, é autor de obras-primas como a novela em verso Evgueny Oneguin, a novela Dama de Espadas, ou a tragédia Boris Godunov, e inspiradas em suas obras, temos também as óperas dos célebres compositores russos Tchaikovsky e Mussorgsky.
Púchkin foi pioneiro no uso da língua vernácula nas suas obras, num estilo que fundia o drama, a sátira e o romance em suas obras, no que temos este caudal estilístico como o que deu a nova orientação para toda a literatura russa que veio após Púchkin e que ficaram lhe devendo todo o tributo. Com Púchkin sendo considerado, portanto, o fundador da modernidade literária da Rússia, lhe dando o molde no qual se abandona, finalmente, a subserviência literária aos franceses e aos seus 'rócócós' de linguagem. Púchkin, por conseguinte, se utiliza da linguagem popular russa para imprimir um estilo simples, lacônico e claro, e que será a nova literatura russa livre dos cacoetes anteriores.

POEMAS :

A N. IA. PLIUSKOVA : O poema começa com estro sublime, a imagem ideal que o poema louva: “Na lira discreta e sublime/Deuses terrestres não louvei,”. Aqui a louvação é a liberdade: “Só a liberdade louvando,/Só a ela dando o meu fervor,”. E a musa como canto revelado: “Cantei Isabel, em segredo,/De Apolo sob a inspiração.” E o canto da virtude, como eco da Rússia em poema de alma e liberdade em versos: “cantei, alma e calor –Digo: a virtude entronizada/E seu encanto acolhedor./À alma a liberdade invisível/Ditou-me (e o amor) simples canção,/E minha voz incorruptível/Foi eco da russa nação.”

LAMENTAÇÕES DE VIAGEM : O poema é um trajeto acidentado, o poeta vê desde sempre o mundo e suas vicissitudes: “Muito inda irei pelo mundo/Em caleça, a cavalgar,” (...) “Não na tenda hereditária/Nem entre os mortos pais meus,/Mas na estrada solitária/Decidiu que eu morra Deus:”. Há um tipo de nêmesis bem consciente por parte do poeta, que segue em sua lira: “Ou me levará peste,/Ou geada me há de transir,/Ou golpe que pau me assente”. A morte é um fenômeno inexorável, e poema e poeta lhe dão vazão, como um dom visionário da sorte e do revés numa mesma vida: “No bosque, adaga sem pena/Far-me-á de flanco tombar,/Ou tédio de quarentena,/Algures, me há de matar.” (...) “Diverso é de rum a taça,/Sono à noite; na alba, o chá;/O lar em que, irmãos, se passa/A vida! Bem, vou-me, e já!”. E ele segue na vida, contemplando a futura morte, qual nêmesis ou libertação dos mortais, nunca se sabe.

SEM TÍTULO : O poema, esperançoso e otimista, segue seu rumo: “É tempo, amiga, é tempo! exista a alma tranquila./Vai-se dia após dia, e cada hora aniquila/Um fragmento da vida. Embora! Os dois, a sós,/Vivamos. De morrer, um dia, havemos nós.”. A meditação da alma poética está à flor da pele, e o poema se ilumina: “Minha alma a boa sorte a meditar procura/Faz muito, e, escravo opresso, idear pude evasão/Ao refúgio em que a faina é sã, e o prazer, são.”. O prazer, este que termina a lamúria nos braços de um poema de luz.

SEM TÍTULO : O poema contempla, na sua inocência de amor: “Sua beleza, que é serena/E fugaz, brilha, ai! para quê?/Em sua juventude plena/Ela fenece,” (...) “Com a mocidade,/Breve, não se há de deleitar,”. E também sabe que toda alegria é efêmera: “Breve, alegria inda causar;/Nem com palavra meiga e lesta/Nossas conversas reacender,/E, a alma tranquila e manifesta,/No sofredor gerar prazer./E eu, presa de ideias penosas,/Dissimulando meu pesar,/Dou-me pressa em ouvir-lhe as prosas/E o vulto dela contemplar./Olho-lhe cada movimento,/Presto atenção em sua voz,/E aguardo, pávido, o momento/Em que ela nos deixará sós.”. A tal alma tranquila tem uma inquietação, as agruras da contemplação mole e frouxa do amor e da beleza, como um torpor de fuga e redenção evanescentes.

SEM TÍTULO : O poema tem a diurna estrela, o poema é de um tom astral que vai do azul da cerração ao mundo da abóbada celeste em um pulo: “Desvaneceu-se a diurna estrela;/No azul do mar caiu da noite a cerração.”. E a paisagem se faz presença em poema, como um todo harmônico: “Avisto a praia já distante,/Das regiões do sul limite encantador;/Perturbado, angustiado, arrebatado por/Saudade, quero-as neste instante ...”. E a dor irrompe, num choro, e que o poema traduz, prorrompendo, num trecho que me comoveu particularmente, o qual vejo como uma das mais belas passagens de Púchkin, no que temos: “Meus olhos, sei, estão novamente a chorar;/Minha alma, febril, se entibia;/Esvoaça em torno a mim a interior fantasia./Meu louco amor de outrora estive a recordar,/Quanta coisa sofri, quanta coisa achei bela,/Da promessa e da fé a aflitiva traição ...”. E o poema faz seu estribilho, como um lembrete da navegação: “Estruge, estruge, obediente vela,/Agita-te sob mim, oceano resmungão./Barco, leva-me a voar para afastadas raias/Por mais de um mar infiel de capricho fatal,”. E o poema segue em sua conclusão: “O breve riso fez-se, e logo, indiferença, e a/Dor em meu coração – dor crua – introduziu.” (...) “Partícipes do excesso a que, não vos amando,/Licencioso, eu me dei, sacrificando então/Liberdade, lazer, boa fama e afeição -,”. Púchkin em sua bela forma é o poeta russo de todos os tempos.

POEMAS:

A N. IA. PLIUSKOVA

Na lira discreta e sublime
Deuses terrestres não louvei,
E a força que a soberba exprime
Com lisonja não incensei.
Só a liberdade louvando,
Só a ela dando o meu fervor,
A recrear czares não ando,
Nem da musa o deixa o pudor.
Mas frente a fonte, entre o arvoredo,
Confessá-lo-ei, lá no Helicão,
Cantei Isabel, em segredo,
De Apolo sob a inspiração.
O que é de esfera arquielevada,
Térreo, cantei, alma e calor –
Digo: a virtude entronizada
E seu encanto acolhedor.
À alma a liberdade invisível
Ditou-me (e o amor) simples canção,
E minha voz incorruptível
Foi eco da russa nação.
(1818)
(N. Ia. Pliuskova era dama de honra da imperatriz Elizaveta Alekseiêvna).

LAMENTAÇÕES DE VIAGEM

Muito inda irei pelo mundo
Em caleça, a cavalgar,
Em cupê, trenó rotundo,
Em coche ou, ainda, a andar?

Não na tenda hereditária
Nem entre os mortos pais meus,
Mas na estrada solitária
Decidiu que eu morra Deus:

Nas pedras, de casco diante,
No monte, roda a encarar,
No fosso, que a água fez hiante,
Sob ponte que a desabar

Veio. Ou me levará peste,
Ou geada me há de transir,
Ou golpe que pau me assente
Me há de a imoto reduzir.

No bosque, adaga sem pena
Far-me-á de flanco tombar,
Ou tédio de quarentena,
Algures, me há de matar.

Muito inda, triste e esfomeado,
Jejum terei de guardar
E, vitelo enregelado,
Certas turfas recordar?

Diverso é ter estação,
Na Miasnítskaia passear,
Sobre a noiva e a povoação
Com descanso meditar!

Diverso é de rum a taça,
Sono à noite; na alba, o chá;
O lar em que, irmãos, se passa
A vida! Bem, vou-me, e já!
(1829)

SEM TÍTULO

É tempo, amiga, é tempo! exista a alma tranquila.
Vai-se dia após dia, e cada hora aniquila
Um fragmento da vida. Embora! Os dois, a sós,
Vivamos. De morrer, um dia, havemos nós.
Independência e paz no mundo há, não ventura.
Minha alma a boa sorte a meditar procura
Faz muito, e, escravo opresso, idear pude evasão
Ao refúgio em que a faina é sã, e o prazer, são.
(1834)

SEM TÍTULO

Sua beleza, que é serena
E fugaz, brilha, ai! para quê?
Em sua juventude plena
Ela fenece, e o mundo o vê ...
Fanar-se-á! Com a mocidade,
Breve, não se há de deleitar,
Nem da família ao grupo há de,
Breve, alegria inda causar;
Nem com palavra meiga e lesta
Nossas conversas reacender,
E, a alma tranquila e manifesta,
No sofredor gerar prazer.
E eu, presa de ideias penosas,
Dissimulando meu pesar,
Dou-me pressa em ouvir-lhe as prosas
E o vulto dela contemplar.
Olho-lhe cada movimento,
Presto atenção em sua voz,
E aguardo, pávido, o momento
Em que ela nos deixará sós.
(1820)

SEM TÍTULO

Desvaneceu-se a diurna estrela;
No azul do mar caiu da noite a cerração.
Estruge, estruge, obediente vela;
Agita-te sob mim, oceano resmungão.
Avisto a praia já distante,
Das regiões do sul limite encantador;
Perturbado, angustiado, arrebatado por
Saudade, quero-as neste instante ...
Meus olhos, sei, estão novamente a chorar;
Minha alma, febril, se entibia;
Esvoaça em torno a mim a interior fantasia.
Meu louco amor de outrora estive a recordar,
Quanta coisa sofri, quanta coisa achei bela,
Da promessa e da fé a aflitiva traição ...
Estruge, estruge, obediente vela,
Agita-te sob mim, oceano resmungão.
Barco, leva-me a voar para afastadas raias
Por mais de um mar infiel de capricho fatal,
Somente, não às tristes praias
Brumais de meu país natal,
Em que a comoção inicial
Senti de cada amor ardente,
em que a musa sorriu-me, oculta, ternamente,
Em que, nas procelas, floriu
Minha perplexa adolescência,
O breve riso fez-se, e logo, indiferença, e a
Dor em meu coração – dor crua – introduziu.
Impressões novas já buscando,
Deixei a terra em que meu avô jaz,
Deixei as alegrias do educando,
Assembleia fugaz de uma idade fugaz;
Partícipes do excesso a que, não vos amando,
Licencioso, eu me dei, sacrificando então
Liberdade, lazer, boa fama e afeição -,
Também vos esqueci ... Mas no meu coração
Chagas de amor de então, fundas, nada debela ...
Estruge, estruge, obediente vela;
Agita-te sob mim, oceano resmungão.
(1820)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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