PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

VIDA TOTAL

Pois o tempo como flecha retém
o coração no estro de nuvem,
das almas todas em verão,
dos silêncios miasmas de brio.

Eu vou à guerra em busca do ouro,
em busca como touro selvagem
a babar a ambição
deste sonhos febris.

Vou à batalha como um ser todo
com o coração em fogo
de todos estes karmas,
com o peito avulso
de todos os dramas
do mundo.

Que sou sonho e vigor,
que sou onda de frio e de calor,

que sou este delírio
que é a boca mais ávida
com todos os vícios e virtudes
da vida total.

21/10/2015 Gustavo Bastos

PAZ E AMOR

Alento és o sopro em mivida,
como és todo o sopro
que vens em fortuna.

Por detrás das cenas
teu viço.
Pela frente dos sonhos
o riso.

Como em chuva e sol
os tempos e temporais,

como todo o chão em que a rosa cai.

Do cais o vítreo coração
de bruma,
o castelo de tijolos vermelhos
em flor d´sperança.

Como vês o fogo em teu sacro mistério,
entre os potes d`oiro
que à alma nua
o ventre segreda
seu calor,

e os dias pacíficos
ondulam de amor.

21/10/2015 Gustavo Bastos

ESPUMA DOS SÓIS

Por entre as portas o movimento,
reto o pêndulo em curva,
ao modo sucinto do corpo-emblema.

O movimento reto-curvo
soçobra à esfera terrena,
deslizo sobre o monte,
escalo este desvão
do horizonte.

Leve o corpo, pesado o karma.
O corpo-karma é curva de rio,
reta de chão.
O corpo é karma de alma
ao clarão do dia,
sol inclemente
do deserto do coração.

Às armas, amigos meus!
Pois do todo o cosmos
é feito, como pó de estrela
é esta visão,

oh visionário fogo,
que dentro do coração
o deserto é repleto
de oceano e emoção.

Deste movimento as mil portas
estão entreabertas:
os vãos sonhos são queridos
de toda a minha fortuna,
pois do tempo e além
o mar-aquém
digladia-se com o fogo,

o corpo marmóreo destes enclaves
são sonoros gritos
invadindo
o silêncio dos riachos,

como se toda a fauna acordasse
nesta hora do grito,
como se o mundo ao todo,
de seus corpos-almas
e brumas,
fossem a espuma que beija
a areia, vinda do mar.

21/10/2015 Gustavo Bastos


CARTA SUICIDA

Não se mate ainda,
não!
Não, não se mate agora.
Não, não se mate
nesta noite suja!
Não, não se mate
na madrugada.
Não, não morra em vão!
Não se mate
neste dia lindo.
Não se mate no fim da tarde.
Não, não se jogue do penhasco.
Não corte os pulsos.
Não tome veneno.
Não dê este tiro no
teu coração, não!

Não se mate ainda.
Não, não se mate agora.

Não morra sem ver o sol.
Não morra sem beijar a lua.
Não faça isso,
meu bem.

Não se mate por culpa.
Não se mate por tristeza.

Não, não quero ver você
morrer, não se mate
nesta curva dos mortos.

19/05/2015 Gustavo Bastos

VIOLETA

A boca úmida veste violeta.
Da flor ao corpo
a mestria
da língua.

Violeta condiz com a flor
que a veste,
com o meio do mundo
que a vê,
dei amores vãos
até cair em mim
nesta cor.

Longo tempo dormitando
no convés.
Acordo e não morro.
Pois do amor o livre tempo
do pensamento
chorou flor no
meu desmaio,

com os calores de tua tez,
e a boca em violeta,
como um chamariz de fortuna.

19/10/2015 Gustavo Bastos

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

UM POUCO DE FERNANDO PESSOA - PARTE II

Alberto Caeiro é o anti-metafísico, morto tuberculoso e jovem, sua praia era a sensação, seu senso de objetividade lhe colocava em contato com a natureza, “há metafísica bastante em não pensar em nada” é seu guia contra a filosofia conceitual, já no mundo natural como sua ideia, ou melhor, o mundo real que contém já gritante todo o seu pulso de sentido, e a saber que para Caeiro não há sentido em fazer grande ideia do que seja tudo, uma vez que estando no mundo, tudo aí já está. O caminho de Caeiro afirma o natural como já dado, e o sentido metafísico como uma veste desnecessária da sensação da vida. Estar vivo é já ter tudo contido na experiência desta fruição ou fluxo ininterrupto de viver, o simples está em não ter a urgência dos tolos, mas a necessária sabedoria do fluir natural em que pensar em nada basta e é bastante coisa.
Decadentista, futurista e finalmente intimista, Álvaro de Campos é um dos heterônimos de Fernando Pessoa que apresenta um dos maiores repertórios desta fauna inesgotável do sumo da poesia feita pelo escritor. As três fases de Campos são suas três faces, a linha definidora que transita evolucionariamente em todo do caminho poético e criativo de Fernando Pessoa. Álvaro de Campos e seu Opiário, depois sua aventura com Marinetti e a influência de Walt Whitman, e o cansaço velho e total de seu intimismo que enfrenta um pessimismo abissal e que culmina num dos melhores momentos da poesia de Pessoa que é o poema “Tabacaria.”
O poema de Caeiro de “O Guardador de Rebanhos” de número V, com seu libelo anti-metafísico, situa Pessoa no seu contexto de um heterônimo que se coloca em total comunhão com a natureza e os sentidos, sua anti-filosofia nos põe a par da opacidade de nossa inteligência conceitual diante da invasão do nada das coisas que simplesmente são. Álvaro de Campos, por sua vez, faz um dos grandes momentos da poesia de Fernando Pessoa com seu “Poema em Linha Reta”, zombando da simulação de perfeição dos atores sociais, estes que, por sua vez, zombam da imperfeição dos outros no cenário hipócrita dos grandes campeões incapazes de confessar, nem mesmo no íntimo, suas ruínas, infâmias e limitações. A fragilidade e a precariedade da existência denunciam virulentamente, neste poema, este cenário programado e pré-estabelecido da atuação em sociedade de verdadeiros campeões que “nunca levaram porrada.”

ALBERTO CAEIRO
DE “O GUARDADOR DE REBANHOS”
(1911-1912)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso

Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do universo"...
tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 312.)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/25384/17/um-pouco-de-fernando-pessoa-ii