PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 21 de março de 2013

A NOITE DO DRAGÃO

"Viu-se, também, outro sinal do céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas."
(Apocalipse de João, 12 : 3)

   Era um tempo difícil no interior do Arizona, uma cidade pequena situada ao lado do deserto, a América ainda remoendo o trauma dos ataques das torres gêmeas, três meses antes, e, num vilarejo do subúrbio desta pequena cidade, crescia uma seita apocalíptica, Luz do Dragão, liderada por um charlatão disfarçado de fanático religioso, Sr. Murray.
   Já havia uma peregrinação de novos adeptos de tal seita, eles vinham de diversas localidades dos EUA e do México, se juntava um grupo de fanáticos em torno de 20.000 pessoas. Nunca aquele vilarejo comportou tanta gente, sua população nativa era de apenas 660 habitantes. O Sr.Murray e seus acólitos estavam perturbando a vida do vilarejo, em todos os sentidos, pois uma parte dos nativos não aderiu ao profetismo do Sr.Murray, e alguns até tentavam dissuadir alguns dos membros da seita a deixar aquela loucura apocalíptica.
   Um pastor protestante da região, de nome Alfred, estava preocupado com os rumos da seita, conclamava seus fiéis a combater as ideias delirantes de seu líder, Sr. Murray, de todas as formas possíveis, mas todos os membros da seita tinham seu líder como um profeta, um ser divino, dotado de dons espirituais.
   Os protestantes, membros da Igreja Luterana que tinha no vilarejo, liderados pelo pastor Alfred, viam com pesar a fuga de alguns luteranos, antes, fiéis fervorosos do Luteranismo, aderindo à seita da Luz do Dragão. A coisa ia mal para os luteranos mais vigilantes, e o Sr.Murray alienava a todos com sua oratória tosca e, ao mesmo tempo, persuasiva, uma vez que muitos incautos ouviam suas palavras e ficavam hipnotizados. Os membros da seita acreditavam que o Sr.Murray tinha poderes divinos, e que, após os ataques à Nova York e Washington, o mundo estava mesmo prestes a acabar. "O mar de fogo da besta", pelas palavras doentias do líder, Sr.Murray.
   Alfred, muito preocupado, resolveu fazer uma reunião de emergência com seus fiéis. A Igreja Luterana tinha que tomar uma ação drástica para evitar uma tragédia, pois o Sr.Murray tinha a ideia de que o mundo iria acabar em 31 de dezembro de 2001. Era dia 1 de dezembro de 2001, e o temor do pastor Alfred era de que, ou todos da seita iam ficar loucos, ou haveria um suicídio coletivo. Alfred resolve enviar três fiéis luteranos como espiões para dentro da seita Luz do Dragão. São enviados o professor de Filosofia, Albert, o dono de terras, Bill, e o estudante de Teologia Protestante, Vincent.
   Os três vão ao templo da Luz do Dragão no dia seguinte, 2 de dezembro de 2001, e vão diretamente ao Sr.Murray, como novos fiéis da seita. O Sr.Murray fica muito bem impressionado com os três espiões luteranos, e leva os três para uma câmara secreta, onde havia o batismo de todos os que se tornavam membros fiéis da seita.
   O que os três viram na tal câmara era aterrador. Tinha um pacto de sangue, sob um juramento de morte, no dia do Juízo Final. Os três ficaram assustados, hesitaram por um instante, pois poderiam cometer o pecado de um falso juramento, mas, em favor da causa luterana, e pelo bem das pessoas que ali estavam, como incautas e vítimas de um charlatão, fizeram o falso juramento, com o sangue da palma da mão direita.
   O juramento tinha as seguintes palavras, repetidas cem vezes: "Pelo sangue do cordeiro. Eu derramo o meu sangue, e serei arrebatado do mar de fogo da besta. O salvador virá, em vestes de esmeralda, numa nuvem, e nos levará ao reino dos céus. Toda a humanidade sofrerá pelos seus pecados, mas eu serei salvo!" Logo após, houve uma leitura deturpada, em forma de pregação, do Sr.Murray, do livro Apocalipse de João, e todos tinham que mergulhar a cabeça numa fonte de água, no fundo da câmara secreta.
   O dia prosseguiu. Albert, Bill e Vincent, foram à cerimônia de tarde, que teria a pregação do Sr.Murray aos fiéis da Luz do Dragão. Era um cenário de absoluta loucura o que os três espiões presenciariam naquela tarde, maior do que a loucura que tinham visto na câmara secreta. O Sr.Murray tinha completo domínio sobre todas as mentes da seita, só não sabia que três, ali, não cairiam no seu discurso apocalítptico e fanático, onde se escondia um interesse insano de morte e de delírio espiritual.
   Deu três horas da tarde, a hora marcada para a pregação vespertina diária do Sr.Murray, estavam na parte da frente dos fiéis reunidos, Albert, Bill e Vincent. O Sr.Murray tinha uma bíblia no púlpito, logo começou a ovação quando o líder subiu ao púlpito. Havia homens, mulheres e até algumas crianças, em torno de 20.000 fiéis, a maioria de fora do vilarejo, e que moravam em armazéns, que pertenciam ao Sr.Murray, onde tinham comida, em troca dos trabalhos nas lavouras do seu líder supremo. O Sr.Murray tinha herdado uma fortuna milionária de sua família que, por ironia, pertencia à congregação dos luteranos que, agora, era a Igreja que tentava conter o avanço do Sr.Murray e de sua seita enlouquecida da Luz do Dragão.
   O Sr.Murray começa a sua pregação: "Queridos fiéis, membros da Luz do Dragão! O Senhor está me dizendo agora que Ele está conosco! Nem todos têm este privilégio, e nós somos os escolhidos pela graça divina! O poder de Deus está conosco! O salvador virá nos buscar quando todos os que estiverem em pecado forem destruídos pela besta! Nós somos os escolhidos! Não há Deus mais poderoso que o nosso, este que é o único Deus! O reino dos céus nos espera, o Senhor está garantindo para mim, agora, que todos nós da Luz do Dragão estamos salvos! Não há o que temer, o dia marcado para o nosso sacrifício, em nome da salvação do mundo, está vindo, o dia 31 de dezembro será de vigília, e os que ficarem, sentirão o terror do anjo mau, serão todos engolidos pelo fogo do inferno, onde há choro e ranger de dentes! Eles, os pecadores, sofrerão eternamente no fogo do inferno, com as potestades de Satanás! Salve a Luz do Dragão, aleluia!" Os fiéis começam a chorar e a gritar: "Glória Deus! Aleluia!". Muitos se prostram diante da eloquência do orador Sr.Murray, e um dos fanáticos, ao lado de Vincent, bem alterado pelas palavras sagradas do líder supremo, começa a "profetizar", e põe as mãos sobre a cabeça de Vincent, dizendo: "O nosso líder supremo acaba de me enviar uma mensagem telepática enquanto pregava no púlpito, ele diz: Não temas! O Senhor enviou o seu profeta, a Luz do Dragão estará no paraíso com o Senhor que nos salvou, não há o que temer, morreremos todos para ressuscitar pelo sangue do cordeiro que morreu na cruz e ressuscitou para nos salvar, muitos precisam ver para crer, nós não temos que ver, eu me comunico com Ele todos os dias e tenho a mensagem salvadora, a morte nos libertará!"
   Vincent, depois de ouvir a profecia, vai, furtivamente, falar com Albert e Bill. A pregação continua, algumas mulheres desmaiam, depois homens também desmaiam, crianças são levadas até o púlpito, muitas são molhadas na cabeça com água. Sr.Murray diz: "Estas crianças serão imoladas no Dia do Juízo, depois nós tomaremos estricnina, todos estão prontos?" E os fiéis começaram a gritar, chorar, e outros mais, também desmaiam de emoção. O fanatismo tomava conta daquela seita, os três luteranos começavam a entender o que iria acontecer, suas suspeitas quanto a que haveria um pacto suicida na seita Luz do Dragão são confirmadas. Vincent faz uma ligação do seu celular para a casa do pastor Alfred, e diz o que viu na pregação, confirmando o que Alfred e alguns fiéis luteranos daquele vilarejo temiam, a Luz do Dragão, com o seu líder Sr.Murray, era uma seita apocalíptica e suicida.
   No dia 3 de dezembro, chegam mais 3.500 pessoas, cooptadas por membros da seita, para também aderirem à salvação prometida pelo líder Sr.Murray. No dia 5 de dezembro, já eram 32.000 fiéis. O vilarejo estava um caos, luteranos nativos começam a protestar em frente ao templo da Luz do Dragão, e logo surgem 15 fanáticos com barras de ferro e matam 12 luteranos. O Sr.Murray fica sabendo da ocorrência e, no dia seguinte, liga para o pastor Alfred, garantindo que tais brutamontes já estavam presos pela polícia local, mas, o mesmo Sr.Murray consegue subornar alguns policiais, e os presos saem por fiança.
   A farsa era tamanha, que muitos policiais da região não incomodavam a seita, por receberem gordas quantias de dinheiro vivo, diretamente das mãos do Sr.Murray. O caso das mortes dos luteranos logo é abafada, e nem sai notícia no jornal local, que também estava comprado pelo Sr.Murray. Ele já tinha pensado em tudo, e qualquer problema que houvesse, todos que poderiam, por ventura, incomodar, já estavam comprados e já tinham feito voto de silêncio em relação aos rumos da seita Luz do Dragão.
   No dia 7 de dezembro, há uma nova reunião dos luteranos, que pensam em denunciar a seita para as autoridades federais. Eles pensam no FBI para investigar a fundo a seita Luz do Dragão, pois havia perigo de um suicídio coletivo. Mas, para a  supresa de Alfred, também havia espiões da seita na Igreja Luterana. A mesma arma de Alfred contra a Luz do Dragão, já era usada pela seita a mais tempo, e cinco membros disfarçados da seita, que estavam dentro da Igreja, ameaçam de morte o pastor Alfred e seus três espiões, que, a esta altura, já tinham sido descobertos pela rede de informações do Sr.Murray, que não brincava em serviço. Mais membros luteranos também são ameaçados de morte, e, como em relação à seita Luz do Dragão, eles eram minoria, resolveram se calar, e esperarem a tragédia anunciada, acontecer.
   Passa uma semana, chega o dia 14 de dezembro. O Sr.Murray faz uma reunião com seus principais fiéis, para armar um massacre de luteranos no vilarejo. E o Sr.Murray quer a cabeça de Alfred e de seus três espiões, Albert, Bill e Vincent. O plano de assassinato de luteranos prioriza estes quatro homens primeiro, depois seriam eliminados outros luteranos que, para o Sr.Murray, poderiam dar com a língua nos dentes a qualquer momento, e acabarem com a "salvação suprema" das "promessas de Cristo".
   O assassinato do pastor Alfred é marcado para o dia 16 de dezembro. Albert, Bill e Vincent são marcados para morrer no dia 17 de dezembro. E mais 57 membros da Igreja Luterana morreriam nos dias 18, 19 e 20 de dezembro. O Sr. Murray organiza também, ao mesmo tempo, o assassinato de um jornalista, que veio à região fazer uma reportagem com membros da seita, que logo foram avisados de não falarem com qualquer pessoa da imprensa. O jornalista era de Los Angeles, e mal sabia que ali, naquele vilarejo, já reinava a loucura absoluta.
   Chega o dia 16 de dezembro, o pastor Alfred termina sua pregação noturna às 22 horas, e vai até a sua casa. Chega lá às 22:40, e do lado de fora da casa, três capangas do Sr.Murray observam Alfred entrar na casa. Alfred morava com a esposa e quatro filhos. A ordem era para matar apenas o pastor Alfred, de preferência sem muito alarde, e sem que os familiares percebessem. Alfred se dirige à cozinha. Uma câmera escondida, instalada por um empregado da casa, que tinha sido subornado pelo Sr.Murray, vigia quem está na casa. Tudo está calmo, uma mensagem é recebida por um dos capangas no celular. Alfred está só na cozinha, tem uma porta de saída para os fundos do terreno, na cozinha.
   Os capangas pulam para o quintal nos fundos da casa, outra mensagem chega, a esposa de Alfred está dormindo no quarto do casal, dos quatro filhos, dois estão em casa de amigos, os outros dois, mais novos, também estão em um dos quartos da casa, dormindo. Um dos três capangas dá um chute na porta da cozinha, a porta cai, Alfred toma um susto, um dos capangas aponta um revólver e ordena que o pastor faça silêncio e saia para o quintal dos fundos, o pastor é raptado pelos três capangas e levado à casa do Sr.Murray. O Sr.Murray ri, ironicamente, para Alfred, e diz: "Você será sacrificado, em o nome da salvação da Luz do Dragão, eu ordeno, em o nome do Senhor, que irás morrer!"
   O Sr.Murray decide levar Alfred para o templo da Luz do Dragão, onde Alfred seria imolado na câmara secreta. E vai ele, Alfred amordaçado, e seus três capangas para o templo da Luz do Dragão, para fazer o sacrifício. Alfred é esquartejado, os pedaços de seu corpo são jogados aos cachorros, cinco rottweilers famintos, os restos são jogados num esgoto. Não havia mais sinais do cadáver de Alfred, este seria dado como desaparecido pelos luteranos por alguns dias.
   Dia 17 de dezembro, um informante diz ao Sr.Murray que Albert e Bill estariam às três horas da tarde, na casa de Bill. E Vincent estaria às cinco da tarde na escola de Teologia da Igreja Luterana do vilarejo. A ordem era clara: raptar os três para serem imolados, à meia-noite, na câmara secreta do templo da Luz do Dragão. É o que é feito, Albert e Bill são sequestrados às três da tarde, na porta da casa de Bill, enquanto que, após a aula de Vincent, às 20 horas, o mesmo é amordaçado na garagem da Igreja Luterana, sem ninguém ver, e levado para o sacrifício comandado pelo celerado Sr.Murray. Os três são esquartejados, e os capangas fazem o mesmo que fizeram com Alfred, são dados os pedaços dos corpos mortos para os cinco rottweilers, e os restos são jogados no esgoto.
   O Sr.Murray, agora, estava vingado, os quatro principais luteranos, que estavam lhe dando trabalho, estavam eliminados. Logo depois, às três da manhã, o jornalista de Los Angeles é raptado num bar, e morto a tiros, sendo jogado num rio. E nos dias marcados para a morte de outros luteranos, a morte foi mais higiênica, injeções letais de estricnina no pescoço, morte súbita para todos os 57 membros luteranos.
   O Sr. Murray, após estas eliminações de luteranos, ordena, então, a invasão da Igreja Luterana pelos fanáticos de sua seita, e tudo é destruído dentro da Igreja, nada sobra, só um amontoado de sujeira e destroços. Os fanáticos, então, voltam para os armazéns, e começam a vigília, que duraria até o Dia do Juízo Final, dia 31 de dezembro de 2001, segundo a profecia de seu líder supremo, o Sr.Murray. Enquanto isso, todos os luteranos que haviam restado, fogem do vilarejo e deixam que o fanatismo tome conta daquele lugar. Só voltariam depois do suicídio coletivo, que já estava marcado para todos os membros da seita Luz do Dragão, para o dia final de 2001.
   Chega o dia 31 de dezembro, todos os, agora, 38.000 membros da seita Luz do Dragão, estão em vigília para tomarem estricnina à meia-noite, hora em que o Sr.Murray confirmou por mensagem telepática do próprio Senhor, que tudo iria pelos ares. O veneno seria o veículo mais rápido para o arrebatamento, a salvação, e que, segundo a mensagem do Senhor, em três dias, todos ressuscitariam com um corpo glorioso e imortal. Às 20 horas, todas as crianças que estavam no templo são imoladas. Às 23 horas, o Sr.Murray começa a ler o Apocalipse de João na íntegra. Todos os membros no templo se prostram diante do Sr.Murray. Há muita histeria no templo, desmaios, gritos, e choros compulsivos. O fanatismo é alimentado pela loucura retórica do orador psicótico Sr.Murray, sua pregação termina às 23:40. Às 23:50, todos os membros estão com o veneno em mãos. Chega 23:58, e o Sr.Murray ordena que todos tomem o veneno, todos tomam, menos o Sr.Murray. Às 00:05, todos estavam mortos, com exceção do líder supremo.
   O Sr.Murray começa a gritar que é ele o salvador daquelas almas, sai pelo vilarejo gritando que tinha salvado as almas de seus fiéis, mas, ele bem sabia, em seu ardil, que tinha feito um genocídio através da credulidade de pessoas incautas. Na manhã do dia 1 de janeiro de 2002, a polícia encontra os milhares de corpos no templo gigantesco da Luz do Dragão. O Sr.Murray é encontrado vivo na sua casa, com malas arrumadas para fugir. Ele queria ir a um paraíso fiscal para ficar incógnito, mas a polícia chega antes, e prende o líder fanático. Em abril de 2002, o Sr.Murray é condenado à morte. Em 15 de setembro de 2006 recebe uma injeção letal e morre.

20/03/2013 Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)

Adendo: Via Youtube: Controle Mental, como se tornar um líder de Culto: http://www.youtube.com/watch?v=VBI_TtQ47YY&feature=youtu.be

domingo, 17 de março de 2013

O GAROTO DO TERCEIRO OLHO

"Se um fato estranho te ocorrer, diga que é rotina, a vida é a estranheza a ser decifrada."

   José era um garoto normal, mas no dia em que iria à nova escola, acordou às 6 horas da manhã para tomar o café e sentiu um incômodo na testa ao levantar da cama, não notara que algo havia mudado em seu rosto, mais especificamente em sua testa, até que foi à cozinha tomar o café da manhã e sua mãe Josefina deu um grito: "Menino! O que houve? Tem um outro olho na tua testa! Um terceiro olho! Que horror! O que está acontecendo?". José se assustou, não acreditou no que a mãe tinha dito, mas ficou em dúvida e correu para o banheiro até o espelho e viu que não era mais o mesmo.
   José tinha então 15 anos recém-completos, seria seu primeiro dia de aula no ensino médio, sua mãe decidiu que ele não iria à aula naquele dia, e que, se aquele olho não sumisse em uma semana, marcaria um médico para retirar aquele órgão intruso. José ficou constrangido, mas disse que iria à aula com aquele olho na testa mesmo, sua mãe hesitou e acabou cedendo, com a condição de que José usasse uma faixa na cabeça para esconder aquela monstruosidade.
   José então tomou o café da manhã, com um certo desconforto, pois ficou com dificuldade de focar a visão em objetos, uma vez que o equilíbrio de dois olhos era prejudicado pelo órgão intruso, mas em 30 minutos começou a acostumar, inventou um macete de direcionar os três olhos ao mesmo tempo para o mesmo lugar e logo voltara a enxergar os objetos com nitidez. Mas, algo estranho ele viu: uma aura roxa em volta da cabeça de sua mãe, mas não disse para ela para não assustá-la, resolveu guardar aquele segredo para si mesmo, achou que aquilo não era normal, mas que iria passar, tal como um pequeno resfriado.
   José já tinha sonhado que tinha uma terceiro olho, achou novamente que estava sonhando, até que a hora de ir à escola chegou e ele percebeu que não era um sonho, que estava em carne e osso com um terceiro olho na testa, não sabia o que faria com aquilo, sua mãe resolveu marcar um clínico de emergência, não iria mais esperar uma semana, mas só conseguiu marcar uma consulta para dali a três dias, pois então, José teria que ficar com aquela aberração na testa ainda por uns dias até que fosse dada uma solução. Sua mãe confirmaria com o clínico se aquilo tinha jeito, se ele poderia ser operado. Mas José era corajoso, amarrou uma faixa na cabeça e foi à pé para a sua nova escola. Sabia que alguns de seus antigos amigos de rua também sonharam alguma vez na vida que tinham um terceiro olho na testa, e que aquilo, na verdade, se fosse descoberto em sua nova escola, não seria encarado como algo bizarro, uma vez que todo ser humano, ao menos em sonho, já tivera a visão de um terceiro olho na própria testa.
   Deu 8 horas da manhã, José chega à escola, com uma faixa vermelha na cabeça cobrindo seu terceiro olho. Ele entra na escola, passa pelo pátio, alguns alunos estranham a sua faixa na cabeça, mas ninguém o conhecia, logo não perguntaram nada para ele sobre tal faixa. José chega à porta de sua sala onde estava a sua nova turma, se depara com um menino gordo e bem alto, de nome Zaqueu, que pergunta: "E aí moleque? Machucou a cabeça? Tá que nem o Cazuza, com uma faixa vermelha na cabeça?". Ao que José responde: "Não é da sua conta. Mas já que perguntou, estou com um machucado na cabeça sim." Zaqueu olha para os olhos de José desconfiado, para seus dois olhos descobertos, sem nem sequer imaginar que por trás daquela faixa vermelha não havia um machucado, mas um terceiro olho. Zaqueu fica um pouco bravo com a resposta de José, já tinha lhe marcado a cara, logo faria algo com aquele novato atrevido. Mas, disfarça e diz para José: "Seja bem-vindo, e se cure desse machucado logo, vou te apresentar aos meus amigos no recreio." Sem perceber o ardil daquela última fala de Zaqueu, José entra na sala e se senta no fundo, sempre foi da turma do fundão, não gostava de ficar junto dos professores, e mesmo assim sempre teve notas brilhantes em todas as matérias que estudava, desde que se conhecia por gente.
   Zaqueu entra logo depois na sala e se senta no meio da sala, um lugar estratégico para "tocar o terror", até que algum professor tivesse um acesso de cólera e todos rissem incontrolavelmente. Zaqueu cochicha com Bruno, seu comparsa, e olha em direção a José, o mesmo não esboça nenhuma reação, finge que não é com ele, mas percebe na hora que Zaqueu e Bruno estavam falando dele. José faz uma pergunta ao professor de biologia na terceira aula, a última aula antes do recreio, e, no que acaba de fazer a pergunta, recebe uma bolada de papel com cuspe de Zaqueu, mas o professor não vê quem foi que jogou a bola da papel na cara de José, e ninguém se confessa e nem delatam Zaqueu. O professor deixa passar daquela vez e responde à pergunta de José. A aula acaba, todos descem para o recreio.
   Zaqueu e Bruno descem por último, já tinham colocado um rato dentro da mochila de José. Eles sabiam onde encontrar ratos, no depósito da escola, pegaram um com luvas e levaram para a sala, não satisfeitos em deixarem um rato na mochila de José, soltaram outro dentro da direção, que estava vazia no momento, a diretora só trancava a direção na hora da saída. Zaqueu e Bruno então descem para o pátio, tinham planejado tirar a faixa da cabeça de José para matarem a curiosidade e aproveitarem para caçoar do novato da escola.
   José vai à fila da cantina comprar um lanche, compra uma coxinha e um refrigerante, vai até a mesa do refeitório, mas antes de se sentar na cadeira, recebe um empurrão de Bruno, e enquanto José se vira para ver quem foi, Zaqueu pega a coxinha de José e come tudo numa única mordida e derrama o refrigerante de José no chão. José faz gesto de que iria brigar com os dois, é então quando Zaqueu tira a faixa da cabeça de José e toma um baita susto.
   Bruno sai correndo pelo pátio da escola dizendo que tem um extraterrestre estudando na escola. Zaqueu se assusta, mas logo toma coragem e enfia o dedo indicador no terceiro olho de José para confirmar se o que estava vendo era verdade e para machucar José também. José fica com seu terceiro olho vermelho depois da dedada de Zaqueu em sua vista, xinga ele: "Filho da puta!". Então Zaqueu dá um golpe de Judô em José e o deixa estatelado no chão, enquanto José começa a xingar todo mundo no refeitório e sai correndo para o pátio. Nisto, Zaqueu chega antes ao pátio, já em cima de uma árvore com um estilingue para acertar uma pedra no terceiro olho de José. É o que faz, acerta uma pedra em cheio no terceiro olho de José, mas este não se cega, pelo contrário, José acaba de ver três sombras em volta de Zaqueu, Bruno chega e José fala para ele: "Tem um duende atrás de você!". Bruno grita para a escola inteira ouvir: "Tem um extraterrestre na escola, e ele é louco! Alguém chama o SAMU para levar este doente para o hospício!". Zaqueu logo se volta também para todos no pátio e diz: "Ele é um extraterrestre, um Illuminati!". Todos na escola começam a xingar José, que, de súbito, sai correndo da escola e corre tanto que passa meia cidade em duas horas, cai ofegante na rua, estava completamente desorientado. Um pedestre da rua chama o SAMU, José é levado para a emergência, tentam segurá-lo, em vão, José dá o pinote de novo e depois de três horas correndo chega até a sua casa, esbaforido, vê sua mãe e desmaia ao entrar na sala de casa.
   Dia seguinte: José acorda, já descansado e calmo. Diz para a sua mãe: "Não volto para aquela escola, lá só tem loucos." Sua mãe diz que lhe havia avisado para não ir para lá enquanto não se resolvesse o problema de seu terceiro olho. Passam-se mais três dias, José passa esses três dias de repouso dentro de casa. Sua mãe e ele vão ao consultório, o clínico, então, apesar de assustado, e de nunca ter visto um caso daqueles, marca a operação de retirada do terceiro olho de José para dali a sete dias. A operação ocorre no tempo previsto, o terceiro olho de José é retirado com sucesso, fica um buraco no meio da testa de José, que cicatriza em três semanas.
   Tudo explicado, José fica sabendo que Bruno e Zaqueu tinham sido expulsos da escola por causa daquele episódio em que ele tinha sido o bode expiatório. A diretora afirmou para a sua mãe que naquela escola o bullying não era tolerado, e que no dia em que houve a perseguição de José, a escola ficou um caos, muitos ficaram meio doidos com teorias da conspiração na cabeça, mas agora, sem Zaqueu e Bruno, a paz tinha se reestabelecido na escola, e a diretora garantiu que fez um sermão na escola inteira por causa daquele episódio e que a integridade física e moral de José estavam garantidas por ela, e que todos os alunos já estavam mais calmos e que receberiam José de volta.
   José retorna à escola, meses depois fica sabendo que Zaqueu tinha sido assassinado por outro menino que se vingou de Zaqueu também por causa de bullying. Bruno tinha sido preso por tráfico de cocaína, e José, com uma marca vermelha na testa, se tornou o melhor aluno da escola, com as melhores notas, muito admirado pelos professores, e protegido por muitos ali dentro, que agora sabiam que José era "normal", apesar do fato inédito na história da medicina de lhe ter nascido um terceiro olho na testa, que foi retirado com sucesso, mas que nenhum médico sabia explicar o porquê daquilo ter surgido na testa de José.

17/03/2013 - Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)
  
  
   

A JUVENTUDE DE JAMES JOYCE

"Escritor irlandês foi considerado um dos grandes inovadores do chamado romance moderno."

   James Joyce foi um escritor irlandês do século XX, considerado um dos grandes inovadores do chamado romance moderno, inaugurando um novo modo de escrita denominado fluxo de consciência, incluindo também em seu método de escrita, os jogos de linguagem, revelando uma certa erudição, mas numa estrutura não muito convencional de enredo, o que caracterizaria a tendência moderna de seu estilo. Joyce foi influência decisiva para Samuel Beckett, Jorge Luis Borges, Thomas Pynchon, William Burroughs, dentre outros. Também sendo muito ajudado em sua carreira literária pelo poeta Ezra Pound, que o incluiu dentre os cânones dos poetas do imagismo.
   James Joyce tem em sua obra completa, quatro principais trabalhos: o livro de contos Dublinenses, e seus três romances mais importantes, Um Retrato do Artista Quando Jovem, Ulisses e Finnegans Wake. Sua consagração como um dos principais representantes da prosa moderna chega ao ponto de hoje, em seu país, a Irlanda, termos um dia em sua homenagem, o Bloomsday, em 16 de junho, que começou em Dublin, e hoje se espalha pelo mundo. Dia do ano que remete ao 16 de junho de 1904, que é o único dia em que se passa a estória de seu romance mais importante e emblemático, Ulisses, e que também se refere a um dos personagens deste mesmo romance, Leopold Bloom.
   Seu romance Um Retrato do Artista Quando Jovem, que começou como um projeto de conto, e que inicialmente teve outro título, Stephen Hero, foi remodelado completamente, até ganhar seu caráter final, como a estória de Stephen Dedalus, o que se configurou como um alter ego do próprio Joyce, num relato ficcional que se pode chamar de uma metáfora autobiográfica, onde o personagem passa sua infância e juventude, e onde também podemos ver os jogos de linguagem e o fluxo de consciência como métodos de escrita, por excelência, da prosa joyceana.
   Neste romance, Joyce passa por vários questionamentos, na infância de Stephen Dedalus, onde sua família já discute a religião cristã, as questões de soberania da Irlanda, enquanto Stephen convive em alguns colégios e interage com várias pessoas. As discussões de uma criança, no início do romance, vão se sofisticando, à medida que Stephen Dedalus vai se tornando um jovem. O romance é repleto de referências bíblicas e possui uma interrogação fundamental sobre os dogmas cristãos.
   Na parte do romance em que temos o jovem Stephen Dedalus, também se passa um grande discurso de um dos padres de sua escola sobre o inferno, é uma das partes mais interessantes desta obra, em que a eternidade do inferno vem como advertência cristã sobre os pecados, e que levam o jovem Stephen a dúvidas existenciais, que vão percorrer a segunda metade do romance, tendo também, Stephen, uma tendência à teorização, o que se pode ver quando ele explica a um de seus amigos sua teoria estética, em que diferencia a arte em três formas: a lírica, a épica e a dramática. A estética de Stephen é o sensorial e o inteligível sob uma teoria que ele "está desenvolvendo", e, à parte disso, Stephen vive um verdadeiro conflito existencial, fundado em sua luta para aceitar ou negar certos dogmas cristãos. Tomás de Aquino é requisitado algumas vezes, e Stephen busca a libertação, e encontra em si mesmo e não no dogma a fonte de sua libertação, talvez uma de suas saídas tenha sido também a sua teoria estética, como um modo de se afirmar intelectualmente.
  É no conflito interior de Stephen Dedalus, e sua interação com o exterior, que James Joyce traça seu romance autobiográfico, também como uma afirmação de sua vida perante as regras que, muitas vezes, não refletem as dificuldades e complexidades da experiência humana, ainda mais quando se trata de uma criança ou de um jovem, que ainda não assimilou completamente certos significados sociais ou existenciais, e que, neste romance, como "um retrato da juventude, um retrato do artista jovem", revela a complexidade de uma experiência de crescimento e amadurecimento.
   Um Retrato do Artista Quando Jovem é a autobiografia de Joyce, mas também é a experiência universal da juventude, de suas dificuldades e dilemas, e de sua imensa perspectiva de futuro. A juventude, em Joyce, ganha um significado profundo de conflito, e também de busca de liberdade e de libertação. O jovem Stephen Dedalus é Joyce, mas também poderia ser qualquer jovem do mundo, daí a universalidade de tal romance, que não é uma estória fácil ou banal, e que nos leva às riquezas que encontramos numa "cabeça em formação".
   James Joyce, com o romance Um Retrato do Artista Quando Jovem, inaugurou sua forma estética, ou seja, uma prosa moderna que deixa de se ater muito no descritivo, e que dá mergulhos psicológicos e linguísticos de fôlego. Joyce amadurece, logo após, em Ulisses, sua grande obra, e termina seu périplo no polêmico livro Finnegans Wake, que leva ao paroxismo suas experiências literárias.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com


Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/exibir.php?id=5469&secao=14