PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 22 de dezembro de 2018

TREVAS E SÓIS

O malho, em lida seca,
corta rente e recorta,
qual faca que fio fia,
das caras de pedra
qual rocha escultórica,

a paz, este ponto cego
do mundo, luta com
a guerra seu sal
e o sol que brota
vermelho,

loucos os astutos,
prenhes as loucas,
meio tontos
os ébrios,
funestas as
cortesãs,

perto do cais,
com espanto,
tece um barco
sua linha mestra
de navegação,

ah, como era bela
a aurora qual
fronte que brilha
potência em clarear.

22/12/2018 Gustavo Bastos

POEMA E PENSAMENTO

Se diz que o pensamento tece
o próprio lagar, deste que
os pés como martelos
tecem o cântaro,

e mais vagar que, contorno lúcido,
espera tal qual um monge
um pouco da febre lunar,

tem o lunático que, com espada, alforje,
escudo, baioneta, motins,
tudo imaginário,
faz poema e elegia.

Se o pensamento, este nobre fugaz,
nos tateia uma música,
este mesmo também pinta
como um muralista
a sua paisagem,

pensamento seco como rocha,
que tece a tez dura
dos dias da ação
consciente,

no entanto, o poema,
enluarado que só,
corrompe seu fundo,
enlouquece
e grita.

22/12/2018 Gustavo Bastos

NÉVOA DE ÊXTASE

Névoa que se espanta e delira,
tem lira que mais suspira e inspira,
este estro que dos corações
faz coro e acordes,
tem ritmo, fluência,
um som sagrado.

Ah, névoa alva dos frios gélidos
dos cantores polares,
névoa filosófica,
metafísica,
transcendental.

Névoa que me dá a escala
de um monte azul
qual penedo do qual
o penhasco faz rochedo.

Névoa que me canta
os poros da pele
e o êxtase
da canção.

22/12/2018 Gustavo Bastos

CANÇÃO DE FLORES E PÁSSAROS

De minha mística carnal,
eu tento despertar flores,
com urros a esmo,
e fito de paixões.

Com minhas linhas tortas de versos,
espero em um cântaro de vinho
os dias mais felizes,

ah, flores de absinto nos solilóquios
que saem sob estro inspirado,
olores e orvalho,
um grande jardim
no solstício.

Em meu poema eu canto
para a dor que muda some,
o encanto mais flébil
me deixa exangue,
e eu na força do canto
me sustento, no entanto.

Debalde meu sonho silvestre,
meus pássaros são livres
e saíram voando
por aí.

22/12/2018 Gustavo Bastos

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

BEGGARS BANQUET (CONTO)


“o sistema de vida desta sociedade ou comunidade paralela se erguia com muita filosofia e pouco pragmatismo”

Horácio cresceu numa família abastada, tinha tudo o que desejava, recebia sempre notas altas na escola, por sua mãe era tomado por um pequeno gênio, com doze anos arriscava poemas e pequenos contos fantásticos, desenhava muito bem desde os cinco anos, sua rotina era de estudos, foi para a Suíça estudar por um tempo, lá aprendeu francês, italiano e alemão, além do dialeto suíço. Com dezoito anos ingressou na faculdade de Filosofia, logo concluiu a graduação, e foi fazer mestrado e doutorado, e durante seus estudos para concluir o doutorado se casou com Maria Doroteia, com ela, já com um pós-doutorado, teve três filhos, os dois mais velhos meninos, e uma caçula menina, mas, tudo iria mudar na sua vida, agora ele dava aulas de Filosofia na faculdade como professor titular, avançava para os seus quarenta anos, mas algo iria mudar, ele faz uma viagem com a família de carro do Brasil, São Paulo, aonde morava, para Buenos Aires, mas na estrada acontece uma tragédia, o carro capota e morrem seus três filhos e sua mulher, ele fica entre a vida e a morte durante quinze dias num coma profundo, acorda num hospital já em São Paulo, mas tinha perdido a memória, e no meio disso começou a falar coisas sem nexo, seus pais já haviam morrido, ele não tinha mais outros familiares, como estava sem memória e falando muito, mas nada que fizesse sentido, foi internado numa clínica psiquiátrica aonde ficou três meses, quando deixou a clínica foi morar na rua, recuperou a memória aos poucos, mas tal recuperação virou um pesadelo, e ele lembrou que havia perdido tudo, sua revolta era tão grande que ele decide que ficaria na rua mesmo, por livre escolha, não tinha mais o gosto pela vida como levara até então, conhece um grupo que morava nas ruas do centro de São Paulo e se junta a eles, virando uma espécie de guru do grupo. Na rua ele declamava poesia aos transeuntes e recebia moedas e pequenas quantias em cédulas, tinha um caderno onde registrou a sua filosofia, ele agora se sentia como um Diógenes, o cão, era um novo filósofo cínico, ou melhor, um intelectual mendigo.
Horácio logo ficou conhecido no local em que atuava, tinha em seu grupo de moradores de rua uma união que ele nunca vira em seus tempos de faculdade, e dava palestras ao ar livre como uma espécie de Sócrates urbano. Sua memória, que tinha sumido no acidente, voltara com o tempo com força total, mas ele sentia a alegria de estar diretamente no mundo, com um fundo de revolta por ter perdido a sua família num acidente. O seu lado alegre ele nutria com a ação direta urbana, sua nova filosofia, que consistia em dar aulas gratuitas ao ar livre, pois só aceitava dinheiro quando declamava poemas próprios de cor e salteado, e ele tinha dois comparsas que andavam junto dele com mais assiduidade, que eram os mendigos Daniel e Alencar. Daniel tinha sido criado numa igreja evangélica, mas nunca tivera nada, ele era tomado pela alegoria bíblica “Daniel na cova dos leões”, pois sobrevivera a um incêndio em circunstâncias nunca desvendadas, e nem ele se lembrava como aquilo ocorrera, pois o trauma lhe dera um lapso, sendo a sua lenda contada por testemunhas que o viram escapar de tal tragédia. Alencar tinha sido um especulador no mercado financeiro que afundara no álcool e na cocaína e perdera tudo numa queda vertiginosa de suas ações. Os três, Horácio, Daniel e Alencar, naquele contexto de rua, eram os que lideravam a população de rua local e que decidiam pelas brigas entre os mendigos, que eram constantes, mas o líder maior e mentor de tudo era Horácio. Ele dizia: “Eu tenho tudo, eu não tive tudo, eu tenho a alegria da ação direta urbana, esta é a alegria suprema, nada se compara ao ar da rua e sua realidade.” Dentre as teses levantadas pela ação direta urbana, Horácio erguera três pilares: convivência de rua, desprendimento absoluto, e nada lamentar. Sua revolta, que existia dentro dele sempre muito viva, ele debelava com a sua atuação viva na rua que lhe dava uma vida fora dos padrões, tudo o que aprendera na faculdade lhe dava os instrumentos de seu pensamento, mas era na realidade de morar na rua, em meio às necessidades de sobrevivência mais prosaicas, que o fazia aprender uma nova forma de ver o mundo, a ação direta urbana era a prática que se erguia em seus três pilares.
Com Daniel, que era o que mais estava apto à arte da sobrevivência, Horácio o colocava como o representante do nada lamentar, pois Daniel nunca tivera nada na vida, com Alencar ele colocava a convivência de rua, pois Alencar era um ser sociável ao extremo, e com ele mesmo, Horácio, ele se colocava então como o representante do desprendimento absoluto, pois tivera bens materiais que sumiram como fumaça, e estava aprendendo a ter apenas a sua própria alegria de ter uma filosofia de ação direta urbana que consistia em tais três pilares e seus representantes, no que se configurava uma comunidade com regras próprias, com arbitragens que os três, Horácio, Daniel e Alencar, davam aos outros membros do grupo, que dava, contando os três líderes, uma comunidade de vinte e oito pessoas, todas moradoras de rua, no que se erguia cabanas improvisadas com pequenos bens, mas extremamente escassos, pois a regra do desprendimento absoluto limitava a quantidade de bens para cada membro da comunidade, que àquela altura ganhara o nome de “Sociedade Apócrifa”, batizada por Horácio, querendo dizer que tal comunidade vivia à margem numa adaptação dinâmica com o seu meio, e não como um grupo de miseráveis e vítimas da cidade grande.
“Nada perdi, tudo ganhei” também era um mantra que ficava no pórtico, uma espécie de entrada e senha para ingressar na tal Sociedade Apócrifa, um paradoxo em que o desprendimento absoluto se configurava como um tipo de iniciação ao que representava aquele ambiente em que os meios de produção do capital eram solenemente ignorados, o sistema de vida desta sociedade ou comunidade paralela se erguia com muita filosofia e pouco pragmatismo, portanto. Se se entender que Horácio, como guru daqueles convivas, tinha ascendência sobre os outros vinte e sete membros, ele se via ali como um guia responsável pela manutenção de seu esquema de pensamento, que ele dizia que, pela filosofia da ação direta urbana, era um organismo vivo, todos participavam e a iniciação era também largar a velha vida e ganhar uma nova vida, então era como um processo religioso, místico, algo que Horácio tinha visto quando perdera a memória, pois relatava que o anjo Gabriel lhe fizera uma visita quando se encontrava fora do corpo durante o seu coma, e que ali já tinha vislumbrado o seu futuro de guru urbano numa nova comunidade aonde tudo era de todos e ninguém teria nada senão a alegria. Horácio então era constantemente requisitado nos conflitos dentro da Sociedade Apócrifa, e seus estudos se estendiam no único bem material que tinha, que era uma pequena biblioteca com trinta livros de filosofia, por sinal dois que ele publicara como autor na época em que lecionava na faculdade, este misto de Sócrates e Diógenes, ou melhor, o próprio cínico mendigo Sócrates louco, tinha sua ágora em forma não de pólis, mas de ruptura com esta na forma de comunidade alternativa com regras rígidas de convívio que estariam na direção de um sustento do espírito em meio ao caos e desamparo urbano. Horácio sabia que tinha esta missão especial que o anjo Gabriel lhe confiara quando passou pelo céu em seu coma de quinze dias.
Daniel, como representante do pilar “nada lamentar”, tinha por encargo incentivar os convivas ao conhecimento da resiliência, que era não estar como poliana, do estar tudo bem no meio do mal, mas do estar vivo quando se está vivo, e não reclamar de sorte ou azar, mas ter na resiliência um pilar que passa longe da aceitação poliana, mas de nada lamentar no sentido de que tudo está vivo, até quem já morreu, que o universo é cheio de vida por todos os lados, de que o infinito nos traz este pilar de que o lamento seria reconhecer a limitação da mortalidade, e que ele gritava “e é isto que não queremos!”. Daniel, o da cova dos leões, estufava o peito para falar de que escapara do fogo sem se queimar, e que tinha o poder supremo de nada lamentar, pois nunca tivera nada, e quem nunca teve nada não tem o que lamentar. Ele lia os livros da biblioteca de Horácio, e era o seu seguidor mais fiel, até mais do que Alencar, que era instável por ainda beber álcool, embora com muito mais parcimônia do que na época em que esbanjava no mercado financeiro. Daniel então era o membro mais forte psicologicamente de toda aquela Sociedade Apócrifa. Seu meio era a força, ele era um tipo de ser cabralino educado na pedra, era um azougue, e não tinha papas na língua para falar de sua própria força, repetindo o tempo todo que o fogo não lhe queimava, de que era invencível.
Alencar, como representante do pilar “convivência de rua”, ele era o responsável pelas pregações públicas em que todos tinham que estar presentes e fraternos, Alencar dizia que tudo era energia, e que a ação direta urbana tinha como fundamento a convivência de rua, e que os conflitos seriam arbitrados por princípios como amor, tolerância e uma regra que todos ali concordavam sem questionamento, que era não julgar e não falar da vida dos outros. Uma vez colocada a fundação do que era a convivência de rua, Alencar era o principal árbitro quando alguém brigava, e com a  palavra final do guru Horácio para apaziguar os ânimos. Alencar era um filósofo prático, homem de mercado, era o lado pragmático daquela sociedade filosófica e cínica, ele vivia entre períodos de profundo estudo e meditação, intercaladas com pequenas recaídas no álcool quando tomava a sua caninha e se isolava para não incomodar ninguém, até que voltava sóbrio e sociável como sempre, para fortalecer os laços da Sociedade Apócrifa, laços que deveriam ser cada vez mais fortes, e como representante do convívio de rua, ele tinha este encargo social precípuo para que tudo funcionasse como o guru Horácio planejara e vira na sua conversa mística com o anjo Gabriel.
O guru Horácio, por sua vez, como representante do “desprendimento absoluto”, reconfirmava o nada lamentar, o nada perdi, tudo ganhei, e as regras fraternas do convívio de rua, com sua bagagem filosófica e profissional, o guru, guiado pela visão reveladora da conversa com o anjo Gabriel no meio de uma viagem astral num coma, era o responsável pela gestão dos poucos bens que regiam a vida social e material da Sociedade Apócrifa, pois ele tinha tanto a autoria da frase do pórtico, como um novo livro, na verdade um caderno escrito com caneta bic, em que fundamentava as diretrizes desta comunidade urbana livre dos meios de produção convencionais, e que já dava dor de cabeça para alguns transeuntes que achavam todas aquelas pregações públicas e diárias um pé no saco, produto de um grupo de surtados e desocupados de uma seita fanática, que não era do “nada lamentar”, mas do nada fazer, começa a crítica daquele sistema paralelo que estava em vias de ruir, pois o incômodo da sociedade produtiva com aqueles seres que se achavam especiais e livres do mundo já produzia um conflito de espaços, pois o prefeito colocara a assistência social para resolver o problema da Sociedade Apócrifa, depois de muitas reclamações de moradores das redondezas em que tal comunidade se instalara, pois havia uma crítica em relação ao fanatismo daquela gente e que estavam numa situação de ruptura que não passava de uma trupe de vagabundos disfarçados de filósofos iniciados e que tinham até um pórtico, no que um morador de um prédio em frente do espaço em que ficava a comunidade chamava de uma ilha da antiguidade paranoica no meio do mundo moderno.
Problemas começam a ocorrer e ameaças veladas são feitas à Sociedade Apócrifa, destacando-se um jovem skinhead que passou pelo grupo com correntes e soco inglês fazendo sinais obscenos para os moradores de rua que eram da comunidade de Horácio, e depois um engravatado que disse que logo aquela festa de vagabundos acabaria, e uma mulher evangélica que passou e disse que eles eram endemoninhados que precisavam de uma sessão do descarrego para voltarem à sociedade normal. E a notícia de que uma comunidade parecida com hippies festeiros, mas que era um grupo sui generis de mendigos, corre pela cidade, e muitos simpatizantes vão tirar fotos e selfies com os membros da comunidade, e alguns universitários alternativos vão ouvir as pregações públicas de Horácio, Daniel e Alencar, havia um misto de admiradores e pessoas que abominavam a comunidade, e a notícia e fama desta comunidade se espalhava, e isto chega à imprensa, e um jornal local impresso faz uma entrevista com Horácio, depois um repórter de televisão entrevista Horácio e depois Daniel, e o grupo da Sociedade Apócrifa vira objeto de culto de universitários fora do padrão e de ojeriza da parte conservadora da sociedade moderna e urbana, o meio de vida que era pacato dentre os membros da comunidade começa, rapidamente, a se tornar uma balbúrdia, e Horácio começa a pensar que a filosofia do desprendimento absoluto não poderia ser corrompida pela fama repentina, e que ele, Daniel e Alencar teriam que dar uma solução ao problema, talvez até se mudando de lugar para um recanto mais isolado daquele interesse extremo que ganhara corpo em torno deles.
Daniel, como representante do nada lamentar, tinha na resiliência a palavra de ordem, discute com Horácio se era mesmo necessário sair dali ou eles demonstrarem força e enfrentarem a tempestade contra aquele monte de gente que amava e odiava com a mesma intensidade uma coisa que lhes pertencia, a eles, os membros da Sociedade Apócrifa, e se era o caso de permanecer e não levantar acampamento, e de tentar conciliar, finalmente, o dogma do desprendimento absoluto com o destaque que ganhava corpo, do que eles viviam com tanta sinceridade e coração, e se o momento era de se isolar ou de se fazer entender, para que não houvesse um ruído de comunicação, e que ele, Daniel, seria o porta-voz para que aquela balbúrdia toda se resolvesse da melhor maneira, e sem necessidade de que eles tivessem que tomar a medida extrema de sair de seu local de atividades. Horácio estava muito temeroso, e nutria um mau pressentimento, mas foi convencido, por fim, por Daniel, de que eles deveriam tentar um caminho do meio, como Buda, ao invés de uma ruptura total como tal comunidade até aquele momento pregara e vivera.
O mau pressentimento de Horácio tinha razão de ser, e não tardaria muito para a confusão ocorrer, pois o filósofo sabia das relações causais de quando se é mal interpretado e os frutos daninhos que a ignorância era pródiga em produzir, principalmente no caso deles, da Sociedade Apócrifa, que poderia ser levada ao pé da letra como desobediência civil no meio de um mundo materialista ao extremo. Horácio passa a dar crédito a Daniel, mas sentia que algo estava se perdendo para sempre, que aquela vida mudaria, que não mais eles, os membros da Sociedade Apócrifa, teriam a paz que tiveram até o momento em que seus meios de vida alternativos viraram objeto de curiosidade mórbida para o bem e para o mal, e o problema era justamente o que o mal estava tramando, e para Horácio, mesmo com o otimismo de Daniel, ele se encontrava com um pessimismo, pois sabia que a humanidade era ambivalente em suas interpretações particulares, e que o perigo existia e já tinha mostrado a cara com o skinhead, o engravatado e a evangélica.
Desta vez, é um repórter da imprensa nacional que entrevista Horácio, e ele dizia que a Sociedade Apócrifa, infelizmente, estava com os dias contados, dizendo o mesmo para a imprensa alternativa americana que lá aportara para também entrevistá-lo. Com a repercussão da Sociedade Apócrifa, velhos colegas de profissão de Horácio decidem resgatar o novo Diógenes de sua viagem mística e readaptá-lo à vida acadêmica, no que não obtêm sucesso, pois Horácio queria uma solução para que a Sociedade Apócrifa sobrevivesse e não morresse, mas ele sabia que teria que fazer logo concessões para não ver o modelo filosófico que ele tratara como a vida autêntica fosse engolida pelo sistema que agora cobrava fortemente um equilíbrio entre ruptura total e vida socialmente aceita pela maioria, e que não era eles, os membros da Sociedade Apócrifa, a maioria, mas o mundo moderno, e o caminho antigo de Horácio finalmente tem o fenômeno de “cair a ficha”, e Horácio entra num tipo de transe e vai meditar atrás de uma nova iluminação, se a vida comunitária da ação direta urbana teria que negociar com o mundo real da cidade que não para, do mundo materialmente construído por imperativos econômicos inexoráveis, a fissura já acontecia, a Sociedade Apócrifa agora virava uma caricatura do mundo antigo no meio da vivência frenética da população ativa do mundo do trabalho, e Diógenes, ou Horácio, estava encurralado.
No meio disso, aparece um empresário que se interessa pela história de Horácio, que se tornara pública, até o episódio da tragédia familiar, e sua fundação da Sociedade Apócrifa, que era também o interesse de tal empresário por colocar aquilo como um tipo de ilha da fantasia no meio tão atribulado da vida economicamente ativa, e o empresário vai na intenção de resgatar Horácio daquela vida, mas o filósofo resiste, ele diz ao empresário que teria de levar até o fim a ideia de desprendimento absoluto para não entrar em contradição, mas o fato era que Horácio estava ferrado e sua premonição intuitiva de que o mal mostraria os dentes logo se confirmaria. Pois no dia seguinte à visita do empresário a Horácio, a Sociedade Apócrifa dormia às três da manhã, e de súbito aparece uma Kombi e dela saem cinco mascarados com porretes e com o barulho de freio da Kombi que para em frente à comunidade, todos os membros acordam, todos eles levam porretadas desses mascarados, e descem mais dois mascarados da tal Kombi e com escopetas disparam contra a Sociedade Apócrifa, os membros da comunidade saem correndo pelas ruas, quinze morrem no ataque, os outros são perseguidos pelas ruas, os mascarados matam mais dois, Alencar é um deles, e Horácio, Daniel e os nove sobreviventes somem pelo mundo, os objetos e acampamentos da Sociedade Apócrifa são queimados por estes mesmos mascarados, que entram, enfim, de volta à Kombi e saem por uma avenida cantando pneus.
No dia seguinte, Horácio, Daniel e os membros voltam ao local de origem da comunidade e veem carros de polícia e ambulâncias em volta, e tudo o que eles tinham, queimado. O empresário que tinha conversado com Horácio, no dia anterior, também estava lá, fotógrafos também, e os universitários que frequentavam a Sociedade Apócrifa como ouvintes da pregação, também no local, estavam inconsoláveis. O empresário finalmente convence Horácio de que tudo aquilo era o sonho ideal de um mundo antigo, que a Sociedade Apócrifa não existia mais, e que ele ofereceria um almoço para Horácio e os membros da comunidade, e que todos eles, e Horácio, trabalhariam na sua empresa, de que também tinha um apartamento em que os membros da comunidade poderiam morar, pois a rua tinha ficado perigosa para eles, e que a volta ao mundo econômico faria bem aos aventureiros que um dia sonharam com a Sociedade Apócrifa. De todo modo, nunca se descobriu quem foram os mascarados que fizeram aquele ataque, e o desprendimento absoluto de Horácio e a força descomunal de Daniel agora estavam a serviço do empresário, e a Sociedade Apócrifa agora não existia mais. Horácio é convidado a voltar a dar aulas como professor convidado na faculdade de filosofia, escreve um livro sobre a Sociedade Apócrifa, que agora era uma lembrança, depois deste trágico incidente com os mascarados, decretando o fim da comunidade. Com o fim da Sociedade Apócrifa, por fim, o empresário faz ser servido um grande banquete aos sobreviventes desta aventura filosófica.

(CONTO)

OBS : Caros leitores, estarei saindo de férias. Retorno no início de fevereiro de 2019 com muitas novidades. Boas festas, e até a volta.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/beggars-banquet-conto




segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA, O BARROCO E A HISTÓRIA


“O Barroco, quando surgiu, era uma reação ao domínio da linguagem clássica que caracterizava o Renascimento”

Temos o movimento Barroco como um estilo que se propagou intensamente no Brasil, sendo hoje até uma forma pejorativa de discernir certas heranças e características que permanecem até hoje na nossa cultura e na própria expressão geral de nosso país. Por outro lado, originalmente, temos tal movimento como evento próprio que se deu entre o fim do século XVI e início do século XVII.
O Barroco, quando surgiu, era uma reação ao domínio da linguagem clássica que caracterizava o Renascimento, este que, por sua vez, vinha ideologicamente sob o influxo de um antropocentrismo que revivia em base própria as venturas da cultura clássica greco-romana da Antiguidade.
Com a palavra “barrueco” sendo traduzido por “pérola irregular”, temos mais uma vez patente que se trata de um movimento artístico e literário que coloca a arte barroca como oposta à proporção, regularidade e equilíbrio renascentistas. E temos aqui o contexto da expansão do Absolutismo na Europa, a reação da contrarreforma católica em face da Reforma Protestante (aqui com a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, em 1517).
Ou seja, foi na convocação da Igreja Católica para o Concílio de Trento, que se iniciou em 1545, que teríamos o movimento dos jesuítas e o Tribunal do Santo Ofício, além do fim das indulgências e o apoio total às artes sacras, cujo influxo se deu no Barroco, estilo este que era detalhista e rebuscado, sem a ordem pretensamente racional do Renascimento.
No final do século XVI, em Portugal, temos a morte ou desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir, norte da África, em 1578, numa batalha. Resultado : Portugal teve uma crise pela sucessão do trono, e então o país perdeu a sua independência, pois Filipe II instituiu a União Ibérica, marco histórico para o surgimento, por conseguinte, do Barroco de Portugal, cuja presença dos jesuítas foi marcante.
Por fim, o Barroco brasileiro terá a influência dos portugueses e os recursos estilísticos do Barroco espanhol, cujo estro gongórico e quevedista serão tratados novamente no último texto desta série sobre Gregório de Matos Guerra, que será o próximo. Aqui temos a penúltima parte da série.

POEMAS :

EXPOEM ESTA DOUTRINA COM MIUDEZA, E ENTENDIMENTO CLARO, E SE RESOLVE A SEGUIR SEU ANTIGO DICTAME. : O poema segue esta velha arte de se fazer de tolo, no que o poeta Gregório granjeia bem o que quer, no que vem :“Que néscio, que era eu então,/quando o cuidava, o não era,/mas o tempo, a idade, a era/puderam mais que a razão :”. E o tempo, aqui no poema, e na vida, sempre tem mais poder e luz para o entendimento do que a própria razão tomada em si mesma, no que temos : “vim no cabo a entender,/que o tempo veio a fazer,/o que a razão nunca fez./O tempo me tem mostrado,/que por me não conformar/com o tempo, e co lugar/estou de todo arruinado :”. O poema segue, e o paradoxo é que a hipocrisia tem uma sorte maior do que humildes honestos e na verdade arruinados, a doce fortuna sendo uma luz que se dá no disparate, e o poeta Gregório aqui sendo comparado a um trapo, no que vem : “Muitos por vias erradas/têm acertos mui perfeitos,/muitos por meios direitos,/não dão sem erro as passadas :/cousas tão disparatadas/obra-as a sorte importuna,” (...) “tá, que sou pessoa honrada,/e um homem de entendimento;/qual honrado, ou qual talento?/foram-me pondo num trapo,/vi-me tornado um farrapo,/porque um tolo fará cento.”. E aqui a Bahia aparece em seu esplendor e corrupção, no que temos : “Eia, estamos na Bahia,/onde agrada a adulação,/onde a verdade é baldão,/e a virtude hipocrisia :”. E o poeta, adrede, faz o papel de besta para se dar bem, no que temos : “não sou eu de todo besta,/pois tratei de o parecer :/assim vim a merecer/favores, e aplausos tantos/pelos meus néscios encantos,/que enfim, e por derradeiro/fui galo de seu poleiro,/e lhes dava os dias santos./Já sou na terra bem visto,/louvado, e engrandecido,/já passei de aborrecido/ao auge de ser benquisto :/já entre os grandes me alisto,/e amigos são, quando topo,/estou fábula de Esopo/vendo falar animais,/e falando eu que eles mais,/bebemos todos num copo./Seja pois a conclusão,/que eu me pus aqui a escrever,/o que devia fazer,/mas que tal faça, isso não :/decrete a divina mão,/influam malignos fados,/seja eu entre os desgraçados/exemplo de desventura :/não culpem minha cordura,/que eu sei, que são meus pecados.”. Mas aqui a ideia hipócrita do poeta é, por fim, debelada, e o poeta se coloca em suas desventuras que são seus pecados, mas é a vida de verdade, e não a simulação que lhe daria galardão imerecido, próprio de uma conduta degenerada, o que o poeta, para sua crítica, se mantém na sua integridade de observador dos costumes, portanto, sem se corromper pelos mesmos.

DEFENDE O POETA POR SEGURO, NECESSARIO, E RECTO SEU PRIMEYRO INTENTO SOBRE SATYRIZAR OS VICIOS. : O poeta diz a que veio, e o que já fez, no que vem : “Eu sou aquele, que os passados anos/cantei na minha lira maldizente/torpezas do Brasil, vícios, e enganos.”. E segue o poeta : “Arda Baiona, e todo o mundo arda,/Que, a quem de profissão falta à verdade,/Nunca a Dominga das verdades tarda./Nenhum tempo excetua a Cristandade/Ao pobre pegureiro do Parnaso/Para falar em sua liberdade.”. E o poeta defende mais uma vez a verdade, e tudo que se diz é sentido, mas nem sempre se diz tudo o que se sente, no que vem : “De que pode servir calar, quem cala,/Nunca se há de falar, o que se sente?/Sempre se há de sentir, o que se fala!/Qual homem pode haver tão paciente,/Que vendo o triste estado da Bahia,/Não chore, não suspire, e não lamente?”. Mais uma vez o retrato crítico da Bahia, e a descrição do néscio, que não percebe o valor das coisas, no que vem : “O néscio, o ignorante, o inexperto,/Que não elege o bom, nem mau reprova,/Por tudo passa deslumbrado, e incerto./E quando vê talvez na doce trova/Louvado o bem, e o mal vituperando,/A tudo faz focinho, e nada aprova./Diz logo prudentaço, e repousado,/Fulano é um satírico, é um louco,/De língua má, de coração danado./Néscio : se disso entendes nada, ou pouco,/Como mofas com riso, e algazarras/Musas, que estimo ter, quando as invoco?/Se souberas falar, também falaras,/Também satirizaras, se souberas,/E se foras Poeta, poetizaras.”. Portanto, o néscio só entenderia poesia e sátira se as fizesse, e o poeta segue : “Quantos há, que os telhados têm vidrosos,/E deixam de atirar sua pedrada/De sua mesma telha receosos.” (...) “Todos somos ruins, todos preversos,/Só nos distingue o vício, e a virtude,/De que uns são comensais, outros adversos./Quem maior a tiver, do que eu ter pude,/Esse só me censure, esse me note,/Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.”. E a crítica do poeta aqui se consolida com uma coda de humor áspero e ao mesmo tempo otimista, ao fim, desejando saúde.

CONTEMPLANDO NAS COUSAS DO MUNDO DESDE O SEU RETIRO, LHE ATIRA COM O SEU APAGE, COMO QUEM A NADO ESCAPOU DA TROMENTA. : Aqui temos um poema de vileza, no bom sentido, com mordacidade e pornografia de um Gregório humorístico, no que vem : “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa :/Quem mais limpo se faz, tem mais carepa :/Com sua língua ao nobre o vil decepa :/O Velhaco maior sempre tem capa./Mostra o patife da nobreza o mapa :/Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;/Quem menos falar pode, mais increpa :/Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.”. E pela lei do ladino, termina-se em onomatopeia num jogo de linguagem poética inteligente, e ao mesmo tempo simples, no que vem : “Para a tropa do trapo vazo a tripa,/E mais não digo, porque a Musa topa/Em apa, epa, ipa, opa, upa.”.

ENCONTRO QUE TEVE COM HUMA DAMA, MUY ALTA, CORPOLENTA, E DESENGRAÇADA. : O poeta aqui faz homenagem à musa, rainha soberana, mui alta e mui poderosa, no que vem : “Mui alta, e mui poderosa/Rainha, e Senhora minha,/por poderosa Rainha,/Senhora por alterosa :/permiti, minha formosa,/que esta prosa envolta em verso/de um Poeta tão perverso/se consagre a vosso pé,/pois rendido à vossa fé/sou já Poeta converso.”. O poema segue e o poeta busca sinal amoroso neste ar de coração lastimado, no que temos : “permiti, belo luzeiro/a um coração lastimado,/que por destino, ou por fado/alcance um sinal de amor,” (...) “Fodamo-nos, minha vida,/que estes são os meus intentos,”. E o amor, que enfim encontra paz nos instintos do sexo, bem justo para um poeta sem papas na língua, no que temos : “eu sou da vossa medida,/e com proporção tão pouca/se este membro vos emboca,/creio, que a ambos nos fica/por baixo crica com crica,/por cima boca com boca.”.

POEMAS :

EXPOEM ESTA DOUTRINA COM MIUDEZA, E ENTENDIMENTO CLARO, E SE RESOLVE A SEGUIR SEU ANTIGO DICTAME.

Que néscio, que era eu então,
quando o cuidava, o não era,
mas o tempo, a idade, a era
puderam mais que a razão :
fiei-me na discrição,
e perdi-me, em que me pes,
e agora dando ao través,
vim no cabo a entender,
que o tempo veio a fazer,
o que a razão nunca fez.

O tempo me tem mostrado,
que por me não conformar
com o tempo, e co lugar
estou de todo arruinado :
na política de estado
nunca houve princípios certos,
e posto que homens espertos
alguns documentos deram,
tudo, o que nisto escreveram,
são contingentes acertos.

Muitos por vias erradas
têm acertos mui perfeitos,
muitos por meios direitos,
não dão sem erro as passadas :
cousas tão disparatadas
obra-as a sorte importuna,
que de indignos é coluna,
e se me há de ser preciso
lograr fortuna sem siso,
eu renuncio à fortuna.

Para ter por mim bons fados
escuso discretos meios,
que há muitos burros sem freios,
e mui bem afortunados :
logo os que andam bem livrados,
não é própria diligência,
é o céu, e sua influência,
são forças do fado puras,
que põem mantidas figuras
do teatro da prudência.

De diques de água cercaram
esta nossa cidadela,
todos se molharam nela,
e todos tontos ficaram :
eu, a quem os céus livraram
desta água fonte de asnia,
fiquei são de fantesia
por meu mal, pois nestes tratos
entre tantos insensatos
por sisudo eu só perdia.

Vinham todos em manada
um simples, outro doudete,
este me dava um moquete,
aqueloutro uma punhada :
tá, que sou pessoa honrada,
e um homem de entendimento;
qual honrado, ou qual talento?
foram-me pondo num trapo,
vi-me tornado um farrapo,
porque um tolo fará cento.

Considerei logo então
os baldões, que padecia,
vagarosamente um dia
com toda a circunspeção :
assentei por conclusão
ser duro de os corrigir,
e livrar do seu poder,
dizendo com grande mágoa :
se me não molho nesta água,
mal posso entre estes viver.

Eia, estamos na Bahia,
onde agrada a adulação,
onde a verdade é baldão,
e a virtude hipocrisia :
sigamos esta harmonia
de tão fátua consonância,
e inda que seja ingnorância
seguir erros conhecidos,
sejam-me, a mim permitidos,
se em ser besta está a ganância.

Alto pois com planta presta
me vou ao Dique botar,
e ou me hei de nele afogar,
ou também hei de ser besta :
do bico do pé à testa
lavei as carnes, e os ossos :
ei-los vêm com alvoroços
todos para mim correndo,
ei-los me abraçam, dizendo,
agora sim, que é dos nossos.

Dei por besta em mais valer,
um me serve, outro me presta;
não sou eu de todo besta,
pois tratei de o parecer :
assim vim a merecer
favores, e aplausos tantos
pelos meus néscios encantos,
que enfim, e por derradeiro
fui galo de seu poleiro,
e lhes dava os dias santos.

Já sou na terra bem visto,
louvado, e engrandecido,
já passei de aborrecido
ao auge de ser benquisto :
já entre os grandes me alisto,
e amigos são, quando topo,
estou fábula de Esopo
vendo falar animais,
e falando eu que eles mais,
bebemos todos num copo.

Seja pois a conclusão,
que eu me pus aqui a escrever,
o que devia fazer,
mas que tal faça, isso não :
decrete a divina mão,
influam malignos fados,
seja eu entre os desgraçados
exemplo de desventura :
não culpem minha cordura,
que eu sei, que são meus pecados.

DEFENDE O POETA POR SEGURO, NECESSARIO, E RECTO SEU PRIMEYRO INTENTO SOBRE SATYRIZAR OS VICIOS.

Eu sou aquele, que os passados anos
cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios, e enganos.

E bem que os decantei bastantemente,
canto segunda vez na mesma lira
o mesmo assunto em plectro diferente.

Já sinto, que me inflama, ou que me inspira
Talia, que Anjo é da minha guarda,
Dês que Apolo mandou, que me assistira.

Arda Baiona, e todo o mundo arda,
Que, a quem de profissão falta à verdade,
Nunca a Dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a Cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade.

A narração há de igualar ao caso,
E se talvez ao caso não iguala,
Não tenho por Poeta, o que é Pegaso.

De que pode servir calar, quem cala,
Nunca se há de falar, o que se sente?
Sempre se há de sentir, o que se fala!

Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?

Isto faz a discreta fantesia :
Discorre em um, e outro desconcerto,
Condena o roubo, e increpa a hipocrisia.

O néscio, o ignorante, o inexperto,
Que não elege o bom, nem mau reprova,
Por tudo passa deslumbrado, e incerto.

E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem, e o mal vituperando,
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço, e repousado,
Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.

Néscio : se disso entendes nada, ou pouco,
Como mofas com riso, e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?

Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras Poeta, poetizaras.

A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não, por não ter dentes.

Quantos há, que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada
De sua mesma telha receosos.

Uma só natureza nos foi dada :
Não criou Deus os naturais diversos,
Um só Adão formou, e esse de nada.

Todos somos ruins, todos preversos,
Só nos distingue o vício, e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.

Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.

CONTEMPLANDO NAS COUSAS DO MUNDO DESDE O SEU RETIRO, LHE ATIRA COM O SEU APAGE, COMO QUEM A NADO ESCAPOU DA TROMENTA.

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa :
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa :
Com sua língua ao nobre o vil decepa :
O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa :
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa :
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa :
Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

ENCONTRO QUE TEVE COM HUMA DAMA, MUY ALTA, CORPOLENTA, E DESENGRAÇADA.

Mui alta, e mui poderosa
Rainha, e Senhora minha,
por poderosa Rainha,
Senhora por alterosa :
permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou já Poeta converso.

Fui ver-vos, vim de admirar-vos,
e tanto essa luz me embaça,
que aos raios da vossa graça
me converti a adorar-vos :
servi-vos de apiedar-vos,
ídolo d ´alma adorado,
de um mísero, de um coitado,
a quem só consente Amor
por galardão um rigor,
por alimento um cuidado.

Dai-me por favor primeiro
ver-vos uma hora na vida,
que pela vossa medida
virá a ser um ano inteiro :
permiti, belo luzeiro
a um coração lastimado,
que por destino, ou por fado
alcance um sinal de amor,
que sendo vosso o favor
será por força estirado.

Fodamo-nos, minha vida,
que estes são os meus intentos,
e deixemos cumprimentos,
que arto tendes de comprida :
eu sou da vossa medida,
e com proporção tão pouca
se este membro vos emboca,
creio, que a ambos nos fica
por baixo crica com crica,
por cima boca com boca.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :   https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/gregorio-de-matos-guerra-o-barroco-e-a-historia      

domingo, 16 de dezembro de 2018

OBSERVATÓRIO

A rua está doida,
uma briga de gatos
no cio, mendigos
abatendo sobras
de um açougue,
maviosas faces
da praia,
um senhor jogando
sueca com outro senhor,
bêbados em plena
tarde de terça-feira,
relógio apontando
quarenta graus,

ah, oh, eu sou um poeta
da urbe que se admira
facilmente com banalidades,
sou um documentarista
das coisas ínfimas,
dos gauches que
circulam sem eira
nem beira.

16/12/2018 Gustavo Bastos

NOITES PRETAS

O vulto das coisas evanescentes
saem de uma metafísica árida,
o meu bom conceito busca
debalde a firmeza de um chão,

meus olhos lacrimejam ardendo,
a poeira, a fuligem,
uma tempestade d´areia
me invade o coração,

se eu me lembro das dores,
como posso tê-las em ordem?

o vulto some qual fantasma
nas paredes, sombra mórbida
que sulca o horror da febre,

meu senso de tempo e espaço
se esboroa no ar,
o vulto me traz
o pavor do poema,

um vulto sem nome
e sem história,
me assombrando
nas noites pretas.

16/12/2018 Gustavo Bastos