PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

FIO DA ESPADA

A espada corta em duas frentes,
a lança atravessa o crânio
num golpe seco,
a faca e o machado
são unívocos,
dilaceram.

Por todo o metal que reina
nos exércitos antigos,
ignaros da pólvora militar,
temos as fileiras
que avançam
com brio e fúria.

A energia da força e da raiva,
o patriotismo febril
e a defesa da cidadela,
todos estes guerreiros
são os iludidos do rei,

quando eu retirei um pouco
da poeira da História,
senti que meu coração palpitava
vendo mundos perdidos
ao fio da espada.

15/12/2017 Gustavo Bastos

INFERNO DA ALMA

Uma anedota dá o calibre da facécia,
tenho que o capiroto tem um
baú de cães cérberos
com fundos bravios
de inferno,

cada lado deste baú leva um emblema,
figuras plúmbeas
em baixo-relevo,
um atroz segredo
que respira caos,

a anedota é sobre as feras interiores
dos poetas quando alucinam,

nas colinas e campos,
nos fios de espada
das falanges,

com os comícios dos centuriões
com febres pretorianas
no império da força,

oh máximo terror!
o diabo está ao lado
de minha túnica vermelha,
ele que mora no baú
com seus cães,
e a anedota canta sobre
o inferno de cada um.

15/12/2017 Gustavo Bastos

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

ALMAS EM FLOR



Bem-te-vi, sermos ases e eternos,
vorazes cantos
do salto,

Meus nervos conspiram
anarquia, e eu sou o bufão
da ébria alegria,

sem os ouros e apanágios do rei,
sou o louco da carta brava de mar,

sem os santelmos de uma nave perdida,
brilho elmos com minhas confrarias,

platônico, o poema se tem bruma
como um cadafalso,
e sorri de socorrer
almas floradas
de sal.

14/12/2017 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

ENTARDECER DO VINHO



Um sabor na língua, que enobrece
o termo vinho,
é a saudade eterna
do ébrio,

as estrelas me convidam ao salto
do amor como um fisgo de anzol,
sempiterno e cerúleo,
como numa amálgama.

Sofre teu corsário e ladrão,
alma benta com um dia de trovão,

ergue a alegria os passos fecundos,
leva um ardor bem prolífico,
como asas de fogo,
no delta blues,

um sabor na carne rouca,
uma tarde abismando aurora,
e o vinho que nunca cessa.

14/12/2017 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

DESTINO E ACASO

“quanto ao cético do acaso, ele chama destino de delírio e acaso de nada.”

Duas palavras opostas, de certa forma antagônicas, destino e acaso lutam como duas faces de um jogo na escrita do mundo, uns se aferram ao certo de que o destino traça e já traçou tudo, como uma grande linha reta e racional, aonde vale o escrito acima de tudo, e tanto sabe, que sabe e saberá do futuro, recorrendo até mesmo a um complexo de bola de cristal, pois para isso temos as cartas do tarô, seja este de Marselha ou cigano, temos as runas e também o jogo de búzios, e quanto ao acaso, este é subversivo, teimoso e do contra, vamos a ele também.
O acaso é o dogma dos céticos, o universo visto por alguém que crê na imagem fiel da descrença, portanto, é este devoto do que nada se sabe, o devoto do acaso, seja ele ateu, agnóstico ou cético. O acaso funciona para este tipo de postura mental como um certificado de segurança de que tudo pode acontecer, o reino da necessidade de um Spinoza ou de uma harmonia preestabelecida de um Leibniz aqui soçobram frente à ferocidade de um jogo de probabilidades de um empirista radical, e seu nome é David Hume.
O destino tem uma elegância, joga com os elementos do mundo de forma combinada, o acaso é caótico, gosta de improvisar, entende o mundo como abertura radical em que cabe tudo e em que, por outro lado, nada nem ninguém faz sentido, para o partidário do acaso vale tudo, o jogo é feito por quem joga e não por um ente oculto que na mitologia eram as parcas do destino, tecendo a sorte e o revés, e que no cristianismo ganhará o nome de predestinação. O acaso é um revolucionário que diz ao destino que ele só se dá com o que já aconteceu, o que virá é sempre um susto ou até um surto, o caos das decisões humanas estão imbricadas no nada, e nada faz sentido para o acaso.
Quanto ao ler o futuro nas cartas ou nas pedras, ou ainda em conchas, esta é a tentação dos que creem no jogo de sorte e revés e diz que o mundo tem olhos ou um olho que tudo vê e que já sabe de tudo de antemão, ao contrário do acaso que é cego e diz que o mundo é cego e no extremo é como um gênio maligno que nos leva à demência, ou ainda tem como resultado a desistência do jogo, que é quando na Antiguidade um cético pirrônico suspende o seu juízo sobre as coisas e afirma que a palavra verdade é inútil, pois esta não existe no mundo em que vivemos, e até mais, tanto este mundo não faz o menor sentido, como pior, não existe outro mundo.
E, voltando à leitura do futuro, quando falamos de destino, este só nos é evidente na perspectiva fácil do que já ocorreu, isto é, com as coisas que já se sucederam, pois estas se encaixam com mais facilidade no que damos o nome de destino do que o que se sucederá, pois a certeza do sido é mais evidente e joga mais fácil com a palavra e conceito destino do que a incógnita do futuro e, portanto, quando o destino quer ser um caminho de decifração do futuro, queremos providenciar a mesma evidência e sentido que temos de nossa experiência pretérita e até presente para o futuro.
Por sua vez, no destino visto pela adivinhação estamos diante de um futuro que também é fruto da necessidade e que é tecido matematicamente por parcas plenamente conscientes do que estão fazendo, e no jogo de adivinhação este futuro tem a mesma evidência de uma experiência pretérita já bem processada como sentido, pois para o destino, tudo faz sentido, e no extremo o crente das parcas é tão poderoso que pode ver o que quiser.
Quando um adivinho abre as cartas de um Tarô de Marselha, por exemplo, o sentido é depreendido de uma combinação já preestabelecida, o destino precisa da harmonia dos elementos, o destino através da leitura do futuro quer dar nome aos elementos e dizer que eles são uma consciência viva, vivíssima, que faz tudo funcionar com uma estética que é como de um universo esférico, e é tão perfeito que, o destino, este desejo de saber o todo de todo jeito, este é o desejo.
Destino, desejo, pois o jogo de adivinhação é uma combinação do desejo do consulente com a palavra destino embarcando na sua viagem que tem no consultor mais um condutor de seu desejo, satisfação e frustração, como a aritmética do destino que vê através de adivinhações milenares o segredo do mundo, ou melhor, o feitiço do tempo, e o anseio é respondido, pois para o crente do destino esta é a única resposta que ele admite, senão está perdido.
Quanto ao acaso, na senda radical de sua suspensão do juízo de verdade, joga mais com o erro e o susto, gosta do improviso e da combinação aleatória de sucessos e fracassos, estes como frutos de um livre-arbítrio que joga cego no seu caminho em que tudo cabe e nada faz sentido. Até mesmo no determinismo biológico e evolucionista, nas teorias sociais em que a pessoa se forma e se comporta pelo seu contexto, o acaso, mesmo assim, tem mais força do que uma visão religiosa de predestinação.
Pois, para o cético o jogo cego do acaso comanda até mesmo mecanismos evolucionários, adaptações ao meio, caminhos da espécie, pois aqui não temos o comando de nenhum Deus ou panteão de deuses, e muito menos de parcas, a natureza aqui não nos dá um sentido absoluto, não dá socorro, o susto continua, o acaso conduz a natureza sem deuses e cegamente até mesmo em possíveis continuidades biológicas e sociológicas, pois o reino do acaso não prevê as regras, as coisas acontecem desta maneira e não de outra por adaptações naturais que não recebem influxo ou centelha de nada que crie o universo inteligentemente, as coisas simplesmente são e são como são.
Num terceiro ponto, tentando quase inutilmente jogar simultaneamente com destino e acaso, e isto com a palavra futuro, uma vez que as coisas são como são, temos que talvez não nos caiba chamar isto de moira (destino) ou acaso, isto é, dar o nome de Deus e necessidade ou de nada, mas por serem coisas, são coisas simplesmente, um sendo todo e qualquer ao mesmo tempo. Por conseguinte, num nível subatômico vemos o mundo se desmanchar em ondas e partículas (o que seria vários pontos a favor do acaso), e de outro lado jogar com sincronicidades junguianas (um destino que estaria no lusco-fusco de uma lógica combinatória de coincidências), seja destino (Deus) ou acaso (nada), prefiro chamar de sucessão, tempo, natureza, sociedade, psiquê, tudo junto, num grande jogo em que necessidade e improviso são a mesma coisa.
Estamos diante de um jogo duplo entre a ideia de predestinação e a ideia de um improviso puro e bruto em que se tem toda gama de matizes, de sentidos e faltas de sentido, de coisas em que tudo se encaixa (desejo de destino) e em que nada se encaixa (a frustração do acaso), dando o crente do destino a palavra destino como sinônima de sorte, e à palavra acaso como sinônimo de azar, e quanto ao cético do acaso, ele chama destino de delírio e acaso de nada.
O crente do destino, no extremo, acha que tem uma missão no mundo, e se torna messianista, sua missão é espiritual, e seu destino é sua missão, como missionário ele diz que aquele que joga com o acaso é louco, herege, ímpio, quanto a este, o cético do acaso, ele vê na missão espiritual um delírio, e também vê esta missão como uma megalomania que tem o nome destino, que no consultório psicanalítico, por sua vez, será desejo e inconsciente.
A missão é daquele que deseja escrever a sua missão, mas ele é um fervoroso desejante, mais do que sua fé, ele tem em seu desejo a sua certeza, e o destino dele é o de um missionário, sendo aqui o messianismo o dom visionário em que o desejo do homem imortal quer tudo e pela fé tem esta certeza, a fé impõe a sua certeza, “evangeliza”, e sua certeza é sua missão, o destino aqui é o extremo ao qual este pode chegar, ao qual damos o nome de messianismo.
Quanto ao cético do acaso, seu desejo está no mundo, o mundo da vida, na sua simplicidade, ele é um filósofo do prosaico, ou melhor, ele é um cronista e não um filósofo, ele é um cronista que vive seu cotidiano e se faz como pessoa neste cotidiano, sua indagação foi diluída, não se tem vida após a morte, imortalidade da alma, iluminação espiritual, e muito menos destino, ele até mesmo pode se livrar de qualquer reino da natureza, seja este reino até mesmo a teoria evolucionista, e viver num grande caos, pulando carnaval, e tudo terminando na quarta-feira.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36921/14/destino-e-acaso





 


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

ANTOLOGIA POÉTICA CASSIANO RICARDO – PARTE II

CASSIANO RICARDO E SEU LADO POLÍTICO

“o poeta Cassiano Ricardo irá militar no movimento chamado Bandeira”

Cassiano Ricardo é conhecido pela sua participação relevante nos principais movimentos literários do início do século XX, mas também temos a figura deste poeta como alguém que tomou a frente na política brasileira, sobretudo dos anos 1920 aos 1940, como um dos que, ao fim, defenderam e se beneficiaram do que viria a ser o Estado Novo varguista, que durou, sob o governo autoritário do presidente Getúlio Vargas, de 1937 a 1945.
Na sua biografia, o poeta Cassiano Ricardo teve contato tanto com a teoria positivista como com o parnasianismo, num primeiro momento. O poeta, no seu nacionalismo e ativismo político subsequente, colocou a imagem do poeta Olavo Bilac como um seu ideal de poeta soldado, engajado nas causas políticas e nacionais, este que chegou a compor marchas para o exército brasileiro. E o poeta Cassiano Ricardo, por sua vez, sobretudo a partir da década de 1930, será atuante literária e politicamente no sentido de um chamado aos intelectuais brasileiros para o engajamento destes nas causas nacionais, na atuação como pessoas públicas, e na busca de uma identidade nacional, isto é, de uma originalidade da cultura brasileira, sendo este ímpeto e busca de Cassiano Ricardo tema de sua literatura nas obras que surgem dele a partir dos anos 1930.
Ainda na década de 1920, por sua vez, Cassiano Ricardo abandona o parnasianismo de seus primeiros escritos e abraça o modernismo, e junto com figuras como Plínio Salgado e o poeta Menotti Del Picchia, dentre outros, participa do “Movimento Verde-amarelo”, que viria a ser uma das vertentes mais conservadoras do Modernismo brasileiro. Movimento este que vai se esmerar na luta contra a influência europeia e estrangeira e defender uma cultura brasileira completamente original, do que também poderia ser chamado de “brasilidade”, e para tal defendiam um governo capaz de preservar esta identidade nacional, sendo então tal governo ideal de cepa autoritária, daí o caráter conservador deste nacionalismo do qual Cassiano Ricardo é um dos seus expoentes.
Em contraponto ao movimento integralista (Ação Integralista Brasileira) e a herança que este recebe do fascismo italiano, com a liderança de Plínio Salgado, o poeta Cassiano Ricardo irá militar no movimento chamado Bandeira, o qual recusará qualquer influência política estrangeira, com a ideia de um estado forte (autoritário e conservador) e nacionalista, num movimento de crítica ao liberalismo e ao comunismo, ideologias estrangeiras, evocando no nome do movimento Bandeira o bandeirismo, a marcha dos bandeirantes, que seria a grande obra original do Brasil, consumando uma visão a favor de um novo governo centralizador.
E é na sua atuação política que, por conseguinte, já sendo um dos que defendem o nacionalismo do movimento Bandeira, que o poeta Cassiano Ricardo logo vai aderir ao Estado Novo de Getúlio Vargas, e então ele será tanto o poeta do Martim Cererê como também o ideólogo estadonovista, sendo o livro Martim Cererê, por sua vez, um dos frutos literários mais importantes deste nacionalismo do poeta Cassiano Ricardo, livro que é lançado em 1928 e junta o Brasil dos meninos, poetas e heróis, com ilustrações de Di Cavalcanti, em sua primeira edição. Livro este que parte da história do marinheiro branco Martim, narrando a origem do Brasil, Martim que busca ganhar o amor da índia Uiara, traz a noite (os escravos, na analogia) da África, e desta junção nascem os Bandeirantes, que viriam a ser os desbravadores e heróis do Brasil.

POEMAS :

O SANGUE DAS HORAS (1940)

O SANGUE DAS HORAS : O poema luta com a sensação de falta e de incompletude, o sangue das 
horas é a insone noite que traz as necessidades insaciáveis, e o poeta deixa estes versos : “Queixei-me de não ter pão/e a noite me disse não./Mostrei-lhe a varanda nua/e a Noite me trouxe a lua ...” (...) “São verdes como a esperança/as horas em que sou triste :”. Um certo spleen, ou ainda, a tristeza de uma noite vazia, toma o coração do poeta, no que o poema segue : “procuro o que não existe.” (...) “Que dúbio alvor de camélia/anda lá fora a flutuar?/É a Noite que, de tão velha,/Tão velha,/criou cabelos de luar .../A insônia do meu relógio/durante a noite passada/crivou-me o corpo, já enfermo,/de punhaladas sonoras .../Meus olhos são duas feridas/por onde/escorre o sangue das horas.” (...) “Tomei café sem parar./Bebi treva em goles mudos .../Criei cabelos de luar.”. O poeta aqui já se funde ao cenário noturno, criando seus cabelos de luar, o que lhe resta de seu vazio escuro da noite.

UM DIA DEPOIS DO OUTRO (1947)

A IMAGEM OPOSTA : O poema retrata o espelho tanto como o reflexo da verdade como o repositório ideal de todos os segredos humanos, a intimidade do poeta aqui é refletida no espelho que ele descreve no poema, e também é este espelho o que o poeta oculta ao mundo, no que temos : “Espelho, sub-reptício espelho,/meu professor de disfarce./Quem poderá disfarçar-se/sem recorrer ao seu conselho?” (...) “Suspenso defronte à janela,/falador, não obstante mudo,/ele é o meu jornal tagarela/que em segredo me conta tudo./Graças ao seu préstimo avisto/tudo o que se passa lá fora./E vejo, sem jamais ser visto,/a vida que se vai embora ...”. E segue o poema, como um conselheiro que diz tudo o que se passa no mundo, este que é aqui a rua, no que temos : “Espelho, só pra contemplar-se,/em sua superfície nua,/tudo o que se passa na rua .../Espelho, só que me disfarce./Professor de realismo? Nunca./Há um rosto, que ele não me mostra./Sozinho, sou uma pergunta,/em meu reflexo uma resposta.”. E é no espelho que o rosto do poeta se reflete, no que segue o poema : “O meu rosto é apenas a tampa/de um noturno labirinto./Pois em verdade nunca estampa/a grande verdade que eu sinto./O meu ar de fácil espanto/diante da verdade ou do erro,/o rir com que disfarço o pranto,/a dor com que acompanho enterro,/tudo isto aprendi num espelho,/secretamente, sem alarme./E como agora fantasiar-me/de novo, sem o seu conselho?/O olho de cristal, severo!/com que a minha face investigo./Digo-te tudo, só não digo/que me ensinaste a ser sincero.”. O conflito do poeta ganha este corpo de cristal do espelho, seu dilema ou imbricação existencial tem no poema sobre o espelho a imagem fiel de um drama e de uma história que se vê na sua conjunção de erro e verdade.

GEOMETRIA CIVIL : O poema aqui trata do dever civil e de uma certa vida em ordem ou com este fetiche da ordem acima de tudo, no que temos : “Eu tenho um corpo/feito de barro vil/mas cheio de deveres/e obediência civil./Sou um transeunte/em dia com o código/da ética pedestre.”. E aqui a ordem conjuga a palavra exatidão, no que segue : “Exato no meu fato/azul, sob medida;/exato na cesura/de um verso alexandrino;” (...) “Exato – se procuro/te beijar no escuro/não erro a tua boca/entre os pontos cardeais/de minha geografia/amorosa;”. E eis que a ordem ganha corpo e mestria, no que segue : “Sofro, também, de ordem./Da irrecorrível ordem/que aceitei por herança./Em vão as vespas/da revolução me mordem./Minha geometria/é uma coisa viva/feita de carne e osso.”. É o sofrimento da ordem, que o poeta tanto enaltece, no entanto, no que o poema segue em seu ímpeto :  “Ah, eu sofro de ordem,/mas em vão;/pois não ganhei, com isso,/nenhum laurel, comenda,/ou condecoração.” (...) “Pertenço – e é só – à ordem/em que estão colocadas,/no céu, as estrelas./E à outra ordem –/A em que, no futuro,/Estarão colocadas,/Em redor do meu corpo,/Quatro velas acesas ...”. E aqui a ideia abstrata de ordem no poema ganha o conteúdo concreto do poeta diante de seu futuro e da morte, esta ordem maior chamada natureza ou universo.

A FACE PERDIDA (1950)

CANÇÃO DO MEDO : Aqui o poeta teme mais a vida do que a morte, com toda a demanda da vida, o temor da morte desaparece, o que o poeta teme neste poema é toda a profusão caótica e perigosa da vida, no que temos : “A vida está sempre escondida/no seu grande, seu feroz segredo./Não é a morte que me põe medo;/é a vida.” (...) “Não é a morte que me intimida,/é a vida./Não há nada que me desperte/maior temor do que o destino./O que está por acontecer.”. A figura enigmática da vida então aqui ganha um nome próprio, destino, no que o poema segue : “Destino, noturno destino/que sabemos estar nos espiando/como um misterioso conviva/pelo olhar da pessoa viva./Não é a morte que me amedronta;/é a vida.” (...) “Não é a morte que me põe medo;/é a vida.”. O medo do destino é o medo do enfrentamento da demanda da vida, destino aqui é chamado à ação, no entanto, o poeta diz a verdade disto, o temor que está contido na cobrança visceral de estar vivo.

TESTAMENTO : O poema tem aqui uma forma testamentária do que o poeta nos deixa de herança, no que segue : “Deixo os meus olhos ao cego/que mora nesta rua./Deixo a minha esperança/Ao primeiro suicida./Deixo à polícia o meu rasto,/a Deus o meu último eco.”. As imagens do que o poeta deixa são de uma beleza profunda, e o poema segue : “Deixo o meu suor ao fisco/que me cobriu de impostos;” (...) “Às coisas belas do mundo/deixo o olhar cerúleo e brando/com que, nas fotografias,/as estarei, sempre, olhando .../Aos noturnos assistentes/de última hora – aos que ficam,/o sorriso interior e sábio/que nunca me veio ao lábio.”. O poema então acena com um sorriso que o próprio poeta poupou em vida, coda poética por excelência.

O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO (1950)

O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO : O poema é uma grande alegoria de um elefante que foge do circo, e aqui temos a descrição física e as ações deste tal elefante, no que segue: “Velho elefante, tão cheio de brincos/e enfeites, que feroz determinismo/se apossou do teu corpo, qual demônio,/que não mais obedeces a ninguém?/Para que venhas, pela rua 15,/desembestado, interrompendo o trânsito?” (...) “Quantas vezes aceitaste o governo/dos histriões e dos imperadores./Eras um coração de pomba. Os pássaros/poderiam gorjear na tua tromba.” (...) “Entretanto com que surpresa enrolas,/na tua tromba, agora, os policiais./Com que fúria, com que desembaraço,/esmagas, sob as tuas patas, um/a um, a qualquer de nós, pobres lírios.”. A força descrita pelo poema que tem o elefante é descomunal, e o poema segue : “Foste um dos animais da preferência/de Noé, para a arca. Não te lembras?/Talvez o mais amado das crianças/pelo que tens de mágico, alegórico./Há qualquer coisa, mesmo, de um monstruoso/brinquedo em teu perfil, teu gordo ser,/que é mui feio, mas gentil de se ver.”. E tal força ganha aqui um ar de encantamento, um ser monstruoso de tamanho, mas que é um ser gordo e gentil que agrada as crianças.

POEMAS :

O SANGUE DAS HORAS (1940)

O SANGUE DAS HORAS

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua ...
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste :
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura ...

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
Tão velha,
criou cabelos de luar ...

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras ...
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos ...
Criei cabelos de luar.

UM DIA DEPOIS DO OUTRO (1947)

A IMAGEM OPOSTA

Espelho, sub-reptício espelho,
meu professor de disfarce.
Quem poderá disfarçar-se
sem recorrer ao seu conselho?

É diante dele que componho
não só a gravata, meu enfeite,
mas o meu jeito de rir, tristonho,
para que o mundo me aceite.

Suspenso defronte à janela,
falador, não obstante mudo,
ele é o meu jornal tagarela
que em segredo me conta tudo.

Graças ao seu préstimo avisto
tudo o que se passa lá fora.
E vejo, sem jamais ser visto,
a vida que se vai embora ...

Vejo o amigo ... (ah, eu o compreendo)
o amigo que mais considero.
Aquele que só é sincero
por não saber que o estou vendo.

Por uma questão de consciência
não censuro o meu amigo,
só sincero na minha ausência
e não face a face comigo.

Também – nos atos que pratico –
não quero um espelho defronte
que me censure, que me conte
a estranha cara com que fico.

Espelho, só pra contemplar-se,
em sua superfície nua,
tudo o que se passa na rua ...
Espelho, só que me disfarce.

Professor de realismo? Nunca.
Há um rosto, que ele não me mostra.
Sozinho, sou uma pergunta,
em meu reflexo uma resposta.

Ao sinal do menor percalço
já comigo não me assemelho.
O próprio choro fica falso
se chorado diante do espelho.

O meu rosto é apenas a tampa
de um noturno labirinto.
Pois em verdade nunca estampa
a grande verdade que eu sinto.

O meu ar de fácil espanto
diante da verdade ou do erro,
o rir com que disfarço o pranto,
a dor com que acompanho enterro,

tudo isto aprendi num espelho,
secretamente, sem alarme.
E como agora fantasiar-me
de novo, sem o seu conselho?

O olho de cristal, severo!
com que a minha face investigo.
Digo-te tudo, só não digo
que me ensinaste a ser sincero.

GEOMETRIA CIVIL

Eu tenho um corpo
feito de barro vil
mas cheio de deveres
e obediência civil.

Sou um transeunte
em dia com o código
da ética pedestre.

Não raro invento dívidas
só pelo prazer
de saldá-las lesto,
antes do protesto.
Para depois entrar
entre festões vermelhos
num salão de baile
cumprimentando-me cordialmente
nos espelhos.

Exato no meu fato
azul, sob medida;
exato na cesura
de um verso alexandrino;
exato se combino
um encontro de dois,
pois chego à hora certa,
nem antes nem depois.

Exato – se procuro
te beijar no escuro
não erro a tua boca
entre os pontos cardeais
de minha geografia
amorosa;
enfim, sou tão exato
como é o número
do meu sapato.

Sofro, também, de ordem.
Da irrecorrível ordem
que aceitei por herança.
Em vão as vespas
da revolução me mordem.

Minha geometria
é uma coisa viva
feita de carne e osso.
Um ângulo quebrado
logo escorre sangue.
Todo o meu futuro
é um retângulo obscuro ...

Estes meus dois braços
são linhas paralelas
que se cruzarão em viagem
para algum infinito.
A lua, esfera fria,
me ensinou, em garoto,
a riscar bolas de ouro,
sem compasso,
na aula de geometria.

Ah, eu sofro de ordem,
mas em vão;
pois não ganhei, com isso,
nenhum laurel, comenda,
ou condecoração.
E nem pertenço à Ordem
Do Cruzeiro.

Pertenço – e é só – à ordem
em que estão colocadas,
no céu, as estrelas.
E à outra ordem –
A em que, no futuro,
Estarão colocadas,
Em redor do meu corpo,
Quatro velas acesas ...

A FACE PERDIDA (1950)

CANÇÃO DO MEDO

A vida está sempre escondida
no seu grande, seu feroz segredo.
Não é a morte que me põe medo;
é a vida.

Fere-me ouvir, durante a noite,
o meu coração funcionando ...
Pobre coração errado
culpado da minha alegria.
Parece que o ouço, algum dia,
como um músculo que soluça
já retirado do meu peito
e ainda vivo, sobre a mesa,
para alguma experiência russa.
Não é a morte que me intimida,
é a vida.

Não há nada que me desperte
maior temor do que o destino.
O que está por acontecer.
O mistério que nos irmana
(por qualquer coisa de divino)
a outra criatura humana.

Destino, noturno destino
que sabemos estar nos espiando
como um misterioso conviva
pelo olhar da pessoa viva.
Não é a morte que me amedronta;
é a vida.

Há uma rosa rubra, é a rosa
de sangue que ficou na calçada,
depois da fúria homicida.
As rosas que eram cor-de-rosa
agora estão brancas de medo.
Não é a morte que me põe medo;
é a vida.

TESTAMENTO

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
Ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
Ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando ...
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO (1950)

O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO

I

Velho elefante, tão cheio de brincos
e enfeites, que feroz determinismo
se apossou do teu corpo, qual demônio,
que não mais obedeces a ninguém?
Para que venhas, pela rua 15,
desembestado, interrompendo o trânsito?

Mal feito, a pele mal adstrita ao corpo,
como uma vestimenta já sem dono,
suja e antiquada, olhos ainda bíblicos
no século XX. Ainda africano
na concepção do movimento, próprio
para os passeios régios, com escada

de seda verde, pela qual os pajens
sobem-te ao dorso – dorso em ouro e prata.
Quantas vezes aceitaste o governo
dos histriões e dos imperadores.
Eras um coração de pomba. Os pássaros
poderiam gorjear na tua tromba.
A qualquer hora, mal surgisse a aurora.
Entretanto com que surpresa enrolas,
na tua tromba, agora, os policiais.
Com que fúria, com que desembaraço,
esmagas, sob as tuas patas, um
a um, a qualquer de nós, pobres lírios.
Movendo as dobras e agitando as sobras
da pele flácida, velha capa preta
com que passeavas, solto, na floresta,
ou entre deusas, nos festins assírios.

Foste um dos animais da preferência
de Noé, para a arca. Não te lembras?
Talvez o mais amado das crianças
pelo que tens de mágico, alegórico.
Há qualquer coisa, mesmo, de um monstruoso
brinquedo em teu perfil, teu gordo ser,
que é mui feio, mas gentil de se ver.
(obs : este poema é longo e continua, aqui temos apenas a sua primeira parte).

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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