PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 14 de abril de 2018

METAL FERVIDO

Nos jardins suspensos
eu tenho as garras
do que me impulsiona,
estes caros livros
de vultos e sopros,
os cantos setentrionais
e meridionais,
os ventos austrais e boreais,
poemas divinos e satânicos,
noites negras e dias solares,
setas de corações convulsos,
borrões de poemas incultos,
vastas formas estouradas
de versos petrificados,
imensos rios que desaguam
como uma golfada
de literatura,
ah, como me faz bem
este pouco poema
de estrela e de cometa
que volteia
como supernova
e quasar,
como me faz bem
ser este meio
e mensagem
com a fúria
do metal fervido.

14/04/2018 Gustavo Bastos

PEQUENA BIOGRAFIA POÉTICA

Me convenço que estas notas febris
são paixonites mórbidas,
um telefone telepático
mordisca a nuvem da ideia,
quando ando em fuga
meus miasmas somem
comigo,

ah, que a luta e a lida não me
deformem a forma poética,
pois um canto oscila
e faz melismas
no ócio,
seu trinado depende
também da preguiça,
ah, este canto,
esta música sentimental!

Oh, que quanto mais eu somo
meus poeminhas,
estes saltam do asco
e se perfilam
como um exército
brancaleone
de versos
aparvalhados,
como uma sinfonia
de mambembes,
oh poemas bonitos
e burilados eu tenho!

Que mais queime tudo,
o corpo, a alma, o espírito,
as ideias e as ações,
que queime a literatura,
que queime os olhos e a boca
estes poemas crédulos
e semeiem novos mundos
de fábula e ardor,

ah, me dê esta cara de medusa
no campo lutuoso
dos orbes macabros,
touro indômito
que deixa a chaga
em seu oponente,
o poema luta com força
e fibra motora
seus elencos de um
parque industrial,
de uma usina louca
de som e fúria,

este poeta canta seu canto
de zênite e nadir,
com sua história
mesmerizada
em pranto e riso
de um viver
em desassombro.

14/04/2018 Gustavo Bastos

A DOR POÉTICA

A praia me detém
com uma gaivota
ou um albatroz
no arrebol,

o poema nomeia a falange solar
que inunda a tela dos pintores,

caiam todas as máscaras,
ceifem os atores canastrões,
suicidem os poetaços,
morram os filosofastros,

eis que tenho uma boa nova :
os novos poemas
são imprevistos,
são bons,
são vitoriosos,

o tempo dos poetas tristes passou,
o tempo dos poetas suicidas
saiu de moda,
hoje o mundo oprime tanto,
que nem de morte e tristeza
vive mais o coração do poeta,
mas da ácida ironia
que transforma dor
em poesia.

14/04/2018 Gustavo Bastos

DOS POETAS DOENTES

Amando as setas de poesia
caio em luva e máscara,
sofro de paralisia muscular
com os anti-inflamatórios,
meu suco pancreático
destrói minha bílis,
meus ossos sofrem e doem
como guilhotinas
em minhas células
túrgidas,
meus tecidos todos corroem
minhas glândulas
e eletrólises sopram
em sinapses como
axônios que se dendritam
em cápsulas de cianureto,
oh, quantos nervos
sulcam as faces malditas
de poesia e de poetas,
seres nervosos em colapso,
filhos do vento nodoso
das equimoses e dos traumas
anímicos, seres hipocondríacos
com elencos de câncer
e de gota,
seres estelares
com corpos rebeldes
e infensos
à saúde benquista.

14/04/2018 Gustavo Bastos

ESPERANÇA

Por olvidar o que lhe é inculto,
a inteligência cósmica e perene
se orna com lustros de experiência,
formas acabadas de percepção,
olhos que veem como lupas
seus corações mais brandos,
uma lufada de calor
que levita a alma,
os cortes de argumento
que estabelecem as teorias,
as práticas bem estruturadas
de um tempo mais sábio e sutil,
de todas as esferas estudadas
nada do ardil dos que não
conhecem o outro, estudar o
rosto humano é de antemão
o exercício do autoconhecimento,
este que combina instinto, razão
e fé num arcabouço de
sistemas de pensamento e de
filosofias de vida,
ó mãe natureza,
me leve em tuas mãos
ao seio da verdade,
teu ciclo e minha
esperança.

14/04/2018 Gustavo Bastos

TRAMA ATÔMICA

Como os pedaços de carne
que caíam em Chernobyl,
caio com surtos atômicos
e um passo a mais
detono os isótopos
da usina,

febril o poema se estende
e se expande como o sol,
reto e firme,
o poema tece seu hinário
com os rasgos de câncer
das formas de polímeros
e de cadeias moleculares
rotundas,

febre o poema se retorce
e vira um todo geométrico,
em Chernobyl nasce
um asno sem rosto
e sem cérebro,

produz-se aos montes
os herdeiros de Hiroshima
e Nagasáki,
seres sem olhos
como a bomba que secou
os corações do sol nascente.

14/04/2018 Gustavo Bastos














































































































quarta-feira, 11 de abril de 2018

DA POSSESSÃO

"Vejam como o fogo se levanta! Queimo como deve. Vá, demônio!"

(Do poema Noite no Inferno, do livro Uma Temporada no Inferno, Rimbaud, Arthur)


Este eflúvio ou sangue que explode é a loucura, plena e sarcástica. Como se dá a plenitude? Ilusão demoníaca ou a mais pura graça divina em seu êxtase e esplendor? A psiquiatria tem uma resposta pronta e cientificizada, os espiritualistas divergem quanto à origem da possessão. O remédio amargo da luta espiritual é interrompida por uma brutal injeção, o ser é contido, alvejado, paralisado, amordaçado, Alice acorrentada se chama em todas as letras antes das tesouras libertadoras que lhe retiram da cama da morte, ele viu a morte, viu a face de Cristo pela madrugada doentia. O exorcismo foi feito, sem as agruras mistificadoras de Anneliese Michel.
Se chamou Exú na encruzilhada, despencou da virtude com a voz trevosa, se colocou às alturas na entrada do hospício, regurgitou em todas as esquinas em sua corrida louca pelo trabalho, a luta pelo salário que lhe meteu a loucura em todas as ruas, a rua da estrela, mortal como a queda de sete anjos desfigurados.
Se chamou Rimbaud, viu a África como uma miragem numa viagem de trem movida à ópio, fez a regressão, se fez chinês, se fez francês numa guerra brutal e viu Guilhotin morrer de febre.
Igual Joana D`Arc! A voz espiritual lhe empestiou o cadafalso. Viu o Apocalipse, verteu a fórmula, dançou como Cristo, aniquilou a festa com Che na cara inchada. Surto psicótico delirante. Sintomas do espectro esquizofrênico. Bipolaridade. Sintoma do tempo. Sintoma de época. Cerne inenarrável da poesia. Esteve enfermo num sono de Morfeu. Amou o sono com a sonoridade psicodélica da paz dos paraísos artificiais. Lia Baudelaire, e explodiu com Rimbaud ao estridente trompete de Miles Davis em Bitches Brew ... Um soco!
Voltou vivo! O esplendor se levantou de novo numa simples pescaria, pescou o sono na luz divina. Sorriu, vivo.
Hipnose. Conversas literárias. A Filosofia se condensava em sua cabeça, não tinha tempo a perder. Vingou-se sem fazer nenhum gesto. O silêncio tonitruante de Deus ou seja lá o que for se manifestou e queimou a inveja mais anódina da História.
Quadro de humor irritado, afeto aplainado, interpretações delirantes e símbolos, eis o simbolista fracassado, eis o Parnaso retumbando palavras, teve que beber outros, sair do ciclo dos antiquários, beber poesia moderna, fazer do som Neruda embriagado de Lorca, fazer peste e amor, encontrou o amor.
A possessão é: psicologia interpreta o louco, a Igreja "cura", no terreiro só tem possessos, veja um psiquiatra numa sessão de Umbanda, veja os loucos numa sessão de tortura. Veja a tortura da mentira. Não, não veja nada, já viram demais, a visão do visionário pode derreter a própria cabeça, não ouse resgatar do inconsciente perigos jamais vistos, fantasmas do Espiritismo, leia apenas, seja pensador, jamais feiticeiro ou prestidigitador, louco apenas de prosa, é mais seguro do que ser possesso, mais "clean". O espírito da letra leva ao Espírito, este é o caminho.
Ocultismo. Das visões egípcias guarde apenas o que viu, da meditação apazigue a teoria, rejuvenesça em cada campo de saber, vivifique seu bom, não seu mau. O demônio só entra em portas escancaradas, a mente segura é a mente da atenção, a mente segura é a mente prevenida, até ao amor seja prudente, sobretudo no amor.
Tese materialista sobre um possesso: Delírio de grandeza. Síndrome do grande gênio. Van Gogh. O inferno de Rimbaud, de novo? Três vezes, é mais do que o suficiente para saber de todos os segredos místicos dos nervos, é o bastante para a pena inspirada, terá que retumbar por toda a vida, até a eternidade!
Tese materialista sobre a possessão: Vítimas de mistificação, autossugestão, hipnose, Charcot, Wundt explicam. Viés reencarnacionista é rechaçado pelas evidências científicas, o Pensamento ainda é cartesiano. O fogo atômico-quântico é inexplicável e inaplicável para entender o "Homem". O ser integral é quântico, o pensamento lógico é necessário, a distinção cartesiana não é um artifício, é o método psiquiátrico, não adianta contestar, senão terá que fugir e pular muralhas, o canalha de si mesmo é a contestação, todo possuído é um contestador, todo possuído é um anarquista, todo possuído é um ente perturbador das leis, até das leis físicas, ele levita como uma pena como troça fundante do espanto. Exú foi expulso da rede inextricável da Psiquiatria, é certo, eu acho certo, errado é ser legião onde o melhor é ser indivíduo.
Minha tese espírita é cética e agnóstica, eu falo de ideias, de conclusões lógicas, à parte mediunidade, comprova-se muito destas verdades. O conluio com os duendes que é a parte da farsa, o lamaísmo tibetano nos orienta muito bem sobre estas coisas, parcimônia, afinal os magos negros estão por aí, orai e vigiai. A correção budista: despertai tu que dormes. O ascetismo, no entanto, é um engodo. A compaixão é seu acerto, pensamento e ação corretos. E a chave da sabedoria: o caminho do meio.
Tese espírita sobre a possessão: primeiro a obsessão simples, depois a fascinação, e por último a subjugação. Também é verdade. Mas a química é mais verdadeira ainda! As moléculas são a salvação da alma, cuide da sua alma medicando o seu corpo, o cérebro é destruído na fascinação, não tem volta, as medicações cortam o canal comunicador, a sensatez e a serenidade viram a nova obsessão. Não tem pajelança, é química para os doentes, com civilidade, sem isolar do campo humano, sem ser a velha fábrica de monstros. Tenho que ler Basaglia e Foucalt, como num contraponto, tenho que estudar como tudo funciona, neurociência, a cura não tem, mas estudo tem, e disciplina. O possesso é o doente imaginário de Moliére, a imaginação só serve bem à arte, em mais lugar nenhum! Júlio Verne nos dá a chave deste caminho.
A subjugação é foda. A pessoa escreve em todos os lugares, até em paredes, é uma rede, é uma teia, o esperto percebe esse assédio, mas o neófito cai, e pode morrer se não tomar conta de si, o cuidado de si é a sabedoria primeira, a compaixão (o cuidado do outro) é o objetivo final da vida, mas ponha-se de si a ordem que encontrou, só depois pense nos outros. A ordem de si irradiará ao mundo, e sua missão será cumprida, a tese da possessão: as duas estão corretas. Olho vivo!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/38320/14/da-possessao










terça-feira, 10 de abril de 2018

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT – PARTE V

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT, CONSIDERAÇÕES FINAIS

“o homem de negócios que foi Schmidt não eclipsou em nada o seu caráter de artista”

Finalizando a nossa análise do poeta Augusto Frederico Schmidt, podemos reiterar a sua grandeza dentre os poetas brasileiros, conhecido sempre como o autor de “Canto da Noite”, um poeta lírico por excelência, em meio ao fervilhar do Modernismo, movimento este de caráter mais iconoclasta e renovador do que propriamente lírico, num primeiro momento.
Podemos dizer que Schmidt traçava uma linha paralela que só seria reencontrada, mais tarde, com poetas como Vinícius de Moraes e Cecília Meireles, já em chaves líricas mais avançadas do que uma herança direta do romantismo e do simbolismo, caráter poético este que ainda pulsava na escrita poética de Augusto Frederico Schmidt. Por fim, Schmidt é um dos poetas ideais, destes da chamada “Poesia imperecível”, a qual Novalis dizia ser o “autêntico real absoluto”.
Biograficamente, o homem de negócios que foi Schmidt não eclipsou em nada o seu caráter de artista, e nem a sua verve lírica de poeta herdeiro da tradição romântica e simbolista, ou ainda sua própria produção poética e literária como um todo.
A poesia de Schmidt, mesmo sendo levantado aqui no texto que tem forte influência de uma tradição romântica e simbolista, nunca deixou de também estudar formas e conteúdos modernos, e seu lirismo, por outro lado, também era reflexo forte de nossa velha poesia de Portugal, que sempre foi influência para muitos dos poetas no Brasil, e por muito tempo.
Por fim, um aspecto que liga muito a poesia de Schmidt a uma imagem consolidada de poesia tradicional, pode ser o fato de que ele era um poeta também adepto de um grande transbordamento verbal.

POEMAS :

AURORA LÍVIDA (1958)

POEMA DE NATAL : O poema levanta a imagem do poeta Ungaretti, e nos lembra da tragédia pessoal deste poeta que perdera um filho que morreu criança, no que temos : “A IDEIA de escrever um/poema de Natal/Traz-me à lembrança o poeta Ungaretti,/Na sua casa em Roma,” (...) “Ungaretti é um pássaro revoando,/Volteando, girando e, de súbito,/molhando/As largas asas duras nas águas/Onde pousa e, às vezes, se move/A imagem do seu filho perdido.”. Logo Schmidt evoca liricamente o poeta italiano e de como esta dor tão central definiu grande parte da poesia de Ungaretti, no que segue :  “Ungaretti possui um tesouro,/E este dia de Natal reabre-lhe/Não só a ferida, mas também/a vontade de viver/Para que viva nele e com ele o seu fruto.” (...) “Possui a sua própria dor a queimar-lhe/o peito e a acompanhá-lo./E enquanto sua lembrança esvoaça/Em torno do filho pequeno que partiu,/Poupa-lhe Deus miséria igual à minha :/Contemplar nesta hora festiva/A face morta da criança que eu fui.”. E Schmidt mal compara, por fim, sua imagem infantil desaparecida como algo melancólico, sem a chama de uma tragédia como a de Ungaretti.

BABILÔNIA (1959)

OUVE A TARDE CHEGAR ... : O poema nos evoca Jerusalém, a imagem de Babilônia, e um deserto logo se abre, no que temos : “OUVE a tarde chegar em Babilônia./O rio leva suas águas mansas/Até onde se ergueu Jerusalém/E hoje é o deserto, a ruína, a solidão.” (...) “Pensa em Jerusalém e no destino/O Profeta. O fumo da tarde que se vai/Hesita, e na sombra por fim repousa triste./_ Ó meu Deus de Israel! – exclama o Doido –/Corta-me logo as ligações com o tempo/E aquieta no Teu seio o meu tormento!”. A prece é por um Deus, esta conhecida entidade de Israel, que nos corta as ligações com o tempo, para que seja aplacado o tormento deste mundo aflito, prece de um doido, de um profeta.

ÀS VEZES, QUANDO SÓ ... : O poema segue com uma meditação ou reflexão sobre o Mal, no que temos : “Às vezes, quando só no quarto estreito/Do hotel, em Babilônia, meditava/Sobre as desditas deste feio mundo/E no Mal triunfante em toda parte;/Quando a aurora da atroz desesperança/Rasgava o véu consolador da noite,/A Rainha do Céu o visitava,/Em doçura e tristeza toda envolta.” (...) “Ó milagre de amor, estranho e forte,/Do próprio desespero vitorioso,/Que as feridas do mundo em flores muda!”. A presença materna de uma Rainha do Céu então salva o poeta da visão desolada que ele tinha, a visita desta divindade feminina aquieta o coração de Schmidt, e então ele descansa.

O CAMINHO DO FRIO (1964)

O CAMINHO DO FRIO : O poema evoca o frio, no que temos :“Foi um fruto que caiu da árvore,/Foi alguém que passou na estrada,/Foi um pássaro,/Foi a história de uma viagem que pousou em mim,” (...) “E senti que ressurgiste com tuas mãos pequenas/Com teus olhos que não tinham cor certa;” (...) “E me indicavas o início do caminho do frio dizendo :/“_ É lá, onde se alinham aquelas árvores/Magras e feias, que começa o caminho do frio.””. A presença misteriosa do poema indica, por fim, ao poeta este caminho do frio que dá título ao poema.

POEMAS :

AURORA LÍVIDA (1958)

POEMA DE NATAL

A IDEIA de escrever um
poema de Natal
Traz-me à lembrança o poeta Ungaretti,
Na sua casa em Roma,
Via Remuria, 3.

Vejo-o impassível, o rosto difícil
De florir um sorriso,
Com os seus olhos que parecem
cansados
De contemplar o fundo do mar.

Ungaretti é um pássaro revoando,
Volteando, girando e, de súbito,
molhando
As largas asas duras nas águas
Onde pousa e, às vezes, se move
A imagem do seu filho perdido.

Ungaretti tem – e é seu consolo –
A certeza de que o filho
Não tocou no mal,
Que não chegou a perceber
Que os seres são sempre órfãos
E caminham sozinhos.

Ungaretti possui um tesouro,
E este dia de Natal reabre-lhe
Não só a ferida, mas também
a vontade de viver
Para que viva nele e com ele o seu fruto.

Penso com inveja em Ungaretti.
Invejo a tristeza do poeta.
Quem tem uma tristeza assim,
Não está de todo abandonado,
Não perdeu os últimos sinais
Que reconduzem à cidade da infância.

Neste dia de Natal, na sua casa em Roma,
Via Remuria, 3,
O poeta Ungaretti está menos só do que eu.

Possui a sua própria dor a queimar-lhe
o peito e a acompanhá-lo.
E enquanto sua lembrança esvoaça
Em torno do filho pequeno que partiu,
Poupa-lhe Deus miséria igual à minha :
Contemplar nesta hora festiva
A face morta da criança que eu fui.

BABILÔNIA (1959)

OUVE A TARDE CHEGAR ...

OUVE a tarde chegar em Babilônia.
O rio leva suas águas mansas
Até onde se ergueu Jerusalém
E hoje é o deserto, a ruína, a solidão.

Um pássaro volteia no ar, às tontas,
Retardatário, branco e inquieto. As asas
Tocam nas sombras ainda muito leves
Que anteciparam da noite a plenitude.

Pensa em Jerusalém e no destino
O Profeta. O fumo da tarde que se vai
Hesita, e na sombra por fim repousa triste.

_ Ó meu Deus de Israel! – exclama o Doido –
Corta-me logo as ligações com o tempo
E aquieta no Teu seio o meu tormento!

ÀS VEZES, QUANDO SÓ ...

Às vezes, quando só no quarto estreito
Do hotel, em Babilônia, meditava
Sobre as desditas deste feio mundo
E no Mal triunfante em toda parte;

Quando a aurora da atroz desesperança
Rasgava o véu consolador da noite,
A Rainha do Céu o visitava,
Em doçura e tristeza toda envolta.

Nos seus braços maternos o tomava
Como se infante fosse, e o embalava
E o fazia dormir um sono ameno.

Ó milagre de amor, estranho e forte,
Do próprio desespero vitorioso,
Que as feridas do mundo em flores muda!

O CAMINHO DO FRIO (1964)

O CAMINHO DO FRIO

Foi um fruto que caiu da árvore,
Foi alguém que passou na estrada,
Foi um pássaro,
Foi a história de uma viagem que pousou em mim,
Foi uma hora de ausência em que voltei a mim mesmo.

E senti que ressurgiste com tuas mãos pequenas
Com teus olhos que não tinham cor certa;
Estávamos assentados no alto muro de pedra.
No sítio em que as águas se dividem.
E me indicavas o início do caminho do frio dizendo :
“_ É lá, onde se alinham aquelas árvores
Magras e feias, que começa o caminho do frio.”

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/38307/17/augusto-frederico-schmidt-consideracoes-finais