PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 16 de março de 2014

DA FATALIDADE

Dance, menina. Largo-te no imprevisto.
O verso controla a voz poética,
sempre-viva, langores de carne.

Dance à noite inteira,
feroz suicida!

Na cata ao verso, plenilúnio solfeja ritos.
Os poemas, uns palavrões,
doses sequiosas no fundo dos olhos.

Eu lembro dos ataques,
dos contra-fortes absurdos,
da retaguarda protegida,
lembro da anarquia,
dos despotismos,
dos esquizos,
dos risos,
lembro dos olores extasiados,
dos quartos zoneados,
dos papéis manchados,
do sangue caindo das mãos,
do tempo retirado
nas lidas hercúleas
que a nua e crua
fatalidade
eclodiu
de tanta
exaustão.

16/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

BALBÚRDIA ATÁVICA

Penso em te contar:
a dúzia que tirei no milhar, vestimos a blusa,
correu no outro lado da avenida
o mais chato do mundo,
eu antevi na antessala,
corriam outros mais,
fundos psicodramas de pratos,
garfos tortos de raiva,
loucos cães de tesão à mil.

Esta pensata corroeu as últimas quinze horas:
leituras de uma flechada só,
sete mil eventos de balbúrdia,
o relógio espoucando sua razão.

Membros em carne viva,
no outro caderno, anotações velhas,
frases e vermífugos,
ferozes neuropatologias,
ovos e larvas no assoalho,
a janela quebrou sozinha
à meia-noite,
era o silêncio na minha meditação
o pai de todos os dias,
noites em vão,
segredos indispostos,
feras atávicas na mesa,
e a letra pouca do poema.

16/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

PROTETOR DO CANIL

Queimo os dizeres
sem nem mesmo
sabê-los,
pauta socrática,
tiro de pistola,
riso de idiota,
Diógenes como um cão.

Cães latindo na espora dos lobos.
Noite pétrea de drama irrestrito,
as fadas fazem magias,
eu li os arcanos da Carta Magna,
cláusulas, dispositivos,
sete leis de mundo cão.

Queria saber os avisos,
mas sem conhecê-los,
dei um riso
para a tragédia,
osso de omoplata,
fêmur, crânio,
espadas cortando
as dobradiças
do inferno,
porta de Cérbero
quando os poetas
matam os sonhos
num pote vazio.

Lembro-te dos amores náufragos:
os amantes são vira-latas,
gatos são mestres,
pura filosofia,
ratos são histéricos,
loucos parasitas.

Deixa para lá.

Outro dia a febre bruta
seduz os limos da paciência,
quem abre o coração de flauta,
tem uma paixão de raça,
tal é o semblante de fera,
desde sempre fuga e encontro,
pausa para o aniquilamento,
ensaio de perversão,
teatro de fornicação,
e a alma pura e tesa,
como na raiva estalada
que grita.

14/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)




JUÍZO DE ESPORA

Pesou-se as alturas: ralhei com os provérbios,
aforismos mil caíram aos cântaros.

Nota:
Indigente é figura descarnada
no álbum de fotografias
da família,
sempre tem um bêbado palrador
de estórias,
cinzas no travesseiro,
fumei trôpego,
asas da imaginação.

Peguei-me à noite sob lua misteriosa:
cartas aos navegantes,
suor e baba de madrugada.

Seduzi quinze mulheres
em poemas estirados
no chão, aos pés dos cavalos,
sumo-sacerdote,
juízo reto,
um teste de perfeição.

E é assim:
horas náuticas de mar, esmero e tempo.

Logo o dia vai embora,
 a noite cai,
e o pranto não cai mais,
pois no coração
já passou o perigo.

14/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

REZAS DE ESCANSÃO

Lembro-te, do cais ao pacífico luto,
verve funda da tempestade,
com o ócio sortido em flecha.

Noite de trópico, calado o areal,
sede da montanha,
montes sequiosos
de altiplano,
mármore de granito
no poema
bruto
e forte.

Lembro-te do dia finado:
com o poema tenso como cordame,
vetusto no umbral desconhecido,
como é de se ver no sal taciturno
que o sangue exangue exala
de perfume e sândalo,
os olhos veem,
 e o coração vívido
permuta
sua dores
com o canto frívolo
de versos escandidos.

13/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

VEIOS DESCAMPADOS

Pela rua, ao silêncio da noite,
o inferno em festa faz sua cura,
dos doentes ao sol, a flecha corta o sol.

Pausado o canto, a febre densa
estala nos altos dos píncaros,
estrela férrea de chumbo,
ombro de prata no caos noturno.

Eis o templo: duas carnes maduras!
Ao sol o menino dançou com suas caveiras,
um olho seco na areia morreu de bruto dia.

Calo o peito, peito ferido.
As águas, da funda pólvora,
dá à carcomida luz o emblema,
faustos de lápides
ao veio das esculturas,
o sol é o riso estranho e macabro,
como na luz das veredas perdidas,
como na sombra dos campos inférteis,
o sol posto e a lua augusta,
fervendo o tempo no cais ferino,
luta corpórea de dois amores sólidos,
como no negativo preto e branco
dos beijos de sal,
como era na noite
de uma lua bem-aventurada.

Eu digo ao poema, na certeza da sarça:
que de fogos o mármore e a cal,
pintura escultórica de rostos esponsais,
como na carne se figura o dia,
e a alma noturna
se encerra de mar,
e o alto sonho febril,
com suas marcas,
encarna toda a filosofia solar
da iluminação espiritual,
e o paiol de fúria
mata pássaros
no corte denso
dos caçadores
de coração.

13/03/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)

O NATIMORTO DE MUTARELLI

"os cigarros fazem parte da paisagem, e o jogo do destino é o vício. Cartas de tarô."

   Esta resenha encerra minha série sobre os livros de Lourenço Mutarelli (por enquanto). Falei do livro A arte de produzir efeito sem causa, na resenha anterior, e fecho o raciocínio, aqui agora, com mais um livro, desta vez, sobre o lançamento de 2009, pela Companhia das Letras, do romance O Natimorto.
   Lourenço Mutarelli parece flertar sempre com um processo de loucura em seus personagens (protagonistas), é ele ali, mas também não é só seu duplo, é uma experiência de ficção, antes de tudo. Na resenha anterior, também se falou num processo de surto psicótico, este mais literal. Desta vez, o romance O Natimorto, também tem algo de loucura, mas é menos literal do que a estória que se passa com o protagonista de A arte de produzir efeito sem causa. No romance O Natimorto, o protagonista é um bipolar, ele é agente de talentos, e começa sua trajetória ao receber uma cantora lírica para encaminhá-la a um maestro.
   O protagonista recebe a alcunha, no romance, de O Agente, e a cantora passa a ser chamada de A Voz. O romance vai alternar entre uma estrutura semiteatral com diálogos dinâmicos, e outra semipoética, no decorrer, com linguagem aparentemente versificada, num neoconcreto do desespero, a obsessão do Agente pela associação entre imagens de advertências presentes no lado de trás das embalagens de cigarros e as cartas (arcanos) do tarô.
   O Agente busca A Voz na rodoviária, compra um maço de cigarros Cowboys Light, atrás do maço: Estampado, o Natimorto. O Agente, logo, vai colocar A Voz dentro de um plano excêntrico, começando por sua dissertação da relação entre as imagens dos cigarros, avisos, e os arcanos do tarô que, diga-se de passagem, também são tipos de advertências. Teoria: as imagens dos cigarros possuem oito arcanos, as cartas do tarô, vinte e dois, contando com a carta sem número e a carta sem nome. A carta sem nome é a Morte, a sem número, O Louco.
   Depois de um jantar na casa do Agente, em que a esposa do mesmo lhes serve uma carne queimada, numa crise de ciúmes, o Agente leva A Voz a um hotel, aonde ela ficaria hospedada, e acaba que O Agente insiste e convence A Voz de que ele ficaria lá com ela. Ele diz que não é broxa, como diz sua esposa, mas um assexuado. O Maestro, por sua vez, aparece como referência apenas, ele é o cara que come a esposa do Agente, segundo o mesmo. Logo, o Agente já sabe que A Voz, que irá fazer um teste com O Maestro, para ver se é aprovada para cantar em recitais, seria mais uma conquista sexual do Maestro, no que ele não se engana, num dos trechos finais deste romance de Mutarelli.
   O Agente faz a proposta: ele tem economias suficientes para pagar o quarto de hotel em que ambos estão (O Agente e A Voz) por cinco a seis anos. Ele propõe à Voz que os dois fiquem ali dentro, que ambos não saíssem mais dali. A Voz quer um meio-termo, não pode comprometer a sua carreira de cantora lírica. O Agente quer ficar no cantinho do quarto. O meio-termo de A Voz também se relaciona com o sexo, ela não é assexuada, como O Agente. Haveria de ter um acordo, mesmo que no começo A Voz não acreditasse muito a sério que a proposta do Agente era de fato verdadeira. De qualquer modo, ficou acordado de que A Voz poderia sair dali, enquanto que O Agente ficaria no quarto, enfurnado fumando cigarros, e fazendo livres associações entre as imagens dos cigarros, e as cartas do tarô.
   O Agente fica obcecado pela imagem nova de um maço: a lemniscata (o símbolo do infinito, que é representado por um oito deitado). A imagem a que se faz referência é de um homem acendendo um cigarro no outro. Era o vício, para A Voz. Mas era a lemniscata, para O Agente. O ciclo contínuo era o significado da imagem do maço. O Agente faz especulação avançada, e que é nada mais que passar da conjectura à livre associação, e, no extremo, passar da livre associação ao delírio puro e simples.
   Os paralelos entre as imagens dos cigarros e as do tarô, feitas pelo Agente, se referem ao tarô de Marselha, de Grimaud. Dizem que o tarô seria um livro, o único, que escapou das bibliotecas egípcias incendiadas. A teoria de Court Gébelin, um pastor francês que viveu no século XVIII, que estudou o tarô, dizia que os ciganos seriam originários dos egípcios que se dispersaram pela Europa e, dessa forma, disseminaram o costume de ler a sorte nas cartas.
   O Agente passa o tempo todo deitado, seu único contato com a realidade, neste momento, é com A Voz. A imagem do natimorto nos maços de cigarros é a imagem da Pureza. O Agente diz que o natimorto é um ser imaculado, viveu uma vida intrauterina e morreu sem se contaminar com o mundo, para o Agente, isso é sublime. A Voz pede ao Agente para esquecer "essa história de tentar antever a vida no maço de cigarro." Neste ponto, O Agente está deitado na cama há três dias, e lhe vem a imagem de uma pintura de Magritte: uma menina comendo um passarinho. Seria nesta imagem que se concluiria a missão do Agente, no desfecho em que se dá o romance há uma direta ligação entre o ponto de partida de Magritte, na cabeça do Agente, e sua conclusão maléfica, a mutação animal de seu delírio.
   Tudo é o jogo do destino, o tarô. E, no quarto de hotel, O Agente tem, nisso, a realidade, onde tudo se explica em maços de cigarros. No romance, temos um desfile dos malefícios do cigarro; junto com as imagens, as frases de impacto. E, no romance, os arcanos de Grimaud dialogam, num símbolo, irmão dileto do delírio e da loucura, com as imagens interpretadas pelo Agente. O tarô de cigarros, sentido encerrado no romance, palavra doentia do fim do Agente em sua tela de Magritte. Obsessão. Na lemniscata se abriu a porta, em Magritte se fecha. O Agente cuidaria da Voz, e vice-versa. E o romance, na coda típica das estórias de Mutarelli, termina com uma sugestão. De Magriite, com a menina comendo um passarinho, se dá a ideia macabra do Agente, coda para a conclusão óbvia, mas sem terminá-la. Leiam o livro e descubram.
   Lourenço Mutarelli tem na loucura sua temática recorrente, o protagonista sempre é um homem impregnado de niilismo. Em O cheiro do ralo, A arte de produzir efeito sem causa, e neste romance O Natimorto, o romance niilista e urbano de Mutarelli lida com o cotidiano. Mas, em seus romances, não se trata do cotidiano clichê, de um suposto realismo. Se trata de um método de escrita sui generis na forma, com boas sacadas e inovações, até no desenho de que se compõe suas estórias, e da sua brilhante transgressão do realismo, colocando o cotidiano dentro de uma trama psiquiátrica. O delírio sempre aparece dentro de um contexto prosaico de situações, linguagem cotidiana do delírio. Este é o paradoxo de Mutarelli: o cotidiano, o prosaico, até um tom naturalista, se mantêm, enquanto o realismo é transgredido sem ser de todo negado. O interior de seus protagonistas, dentro de um contexto urbano e rotineiro, ao passar do tempo, se engolem em tramas delirantes, que saem do prumo, e caem no símbolo e na magia.
   Mutarelli maneja imagens, e não as tira de seu contexto habitual de situações comuns de pessoas mais que comuns. O incomum fica por conta da vida interior de seus protagonistas, uma coleção de Mutarellis mórbidos, mas não muito, eles ainda são personagens. E nem é forçoso determinar, numa sanha psicanalítica, personagem com autor, nem sempre isso é certo, ambos os sentidos, imagem ideal ou pervertida, são e não são o autor.
   Mutarelli joga em forma de desenho, junta delírio, referências literárias, e os colocam num prosaísmo que, se não houvesse tanta simbologia, poderia passar por mais um romance sobre vidas comuns, depauperadas de niilismo. Este é o ponto: o niilismo, em Mutarelli, vira trama psiquiátrica, e culmina nos extremos da vida. Ou seja, as fronteiras cotidianas são quebradas, e isto, no próprio universo de suas situações previsíveis, a loucura é ali, o inaudito, e o sentido dos romances  de Mutarelli.
   O romance O Natimorto, de Lourenço Mutarelli, também foi adaptado ao cinema. O filme, Natimorto, foi lançado em 2011, com direção de Paulo Machline. O próprio Lourenço Mutarelli aparece no filme, como ator, no papel de O Agente. A Voz fica por conta de Simone Spoladore. E a esposa do Agente tem participação especial de Betty Gofman. Nazi, o músico que tocou no grupo de rock Ira!, é o narrador do filme. Recomendo a leitura do livro, e, logo depois, ver o filme. As duas obras são complementares, o romance tem uma carga simbólica maior, e o filme passa mais pelo delírio, os cigarros fazem parte da paisagem, e o jogo do destino é o vício. Cartas de tarô.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/15865/14/o-natimorto-de-mutarelli