PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 12 de novembro de 2016

PAUL VERLAINE, A VOZ DOS BOTEQUINS E OUTROS POEMAS – PARTE II

“Vem, vem baixando, Do firmamento, Que o astro ilumina ..., É a hora divina.”

BIOGRAFIA: (CONTINUAÇÃO)
A ligação entre Paul Verlaine e Arthur Rimabud, no entanto, se caracterizou por um embate tumultuoso, que resultou no caso conhecido de um incidente que marcou a biografia de ambos e parte da história da poesia francesa, que foi quando ocorreu um drama: em julho de 1873, em Bruxelas, com Verlaine sob a influência da bebida, este disparou duas vezes com uma arma de fogo contra Rimbaud, o qual o queria abandonar, e Verlaine foi preso.
Durante os dois anos em que Verlaine ficou na prisão, em Mons, este teve que enfrentar, logo a seguir, o pedido de divórcio de sua esposa. Verlaine fica abalado com a notícia e se converte à fé católica. Quando foi libertado da prisão, Verlaine tentou uma reconciliação com Rimbaud, mas foi em vão. Passou a viver no Reino Unido até o ano de 1877, quando finalmente decide regressar à França. Um dos resultados destes períodos de Verlaine entre crise e conversão são os seus dois livros: Romances sans paroles (1874; Romances sem palavras) e Sagesse (1880; Sabedoria). Tais obras revelam, por conseguinte, a influência do gênio de Rimbaud na fluência, nos temas e nos ritmos, o que inovou a sua poesia.
No entanto, mesmo com a sua fama crescente e de ser agora considerado, então, já como um mestre por poetas jovens do simbolismo, Verlaine se via em meio do fracasso de seus esforços por fazer recuperar a esposa de volta e de levar uma vida mais amena e retirada, o que levou o poeta a uma profunda recaída e retorno ao mundo da boêmia e do alcoolismo.
Mesmo assim, Verlaine dá seguimento a sua obra literária, no que se segue trabalhos como “Amour” de 1888, e vieram, junto com este, trabalhos que teriam o caráter ocasional de recuperar seu antigo vigor e magia, em que sua produção posterior teve mais destaque na prosa, como o hoje bem conhecido e famoso ensaio “Les Poètes maudits” (1884; Os poetas malditos), que foi o trabalho mais importante para o reconhecimento público da poesia de Rimbaud, de Mallarmé e outros autores. Por fim, temos as tormentas que foram suas obras autobiográficas como “Mes hôpitaux” (1892; Meus hospitais) e “Mes prisons” (1893; Minhas prisões).
No fim de sua vida, Verlaine entrou num estado de esgotamento e começou a se degradar progressivamente, apesar de sua celebridade e do respeito que ele tinha angariado da nova geração de poetas, a qual o consagrou como o "Príncipe dos Poetas". Desta feita, Paul Verlaine passou a viver de forma miserável de hospital em hospital e de café em café até que veio a falecer em 1896, em Paris.

POEMAS:
O LUAR GRISALHO: O poema começa com a relação de Verlaine com a natureza, que é a imagem pacífica do bosque, este lugar metafísico que está lá na natureza e também em um lugar imaginário, ou melhor, a provocação de imaginação com esta relação com a natureza que se dá, e que na pena de Verlaine resulta em poesia: “O luar grisalho/Brilha no bosque;/De cada galho/Parte uma voz que/Roça a ramada .../Ó bem-amada.” Ele se dirige então a bem-amada, e lhe dá estas visões, e o sonho vem como convite: “Sonhemos: é hora./Um grande e brando/Quebrantamento/Vem, vem baixando/Do firmamento/Que o astro ilumina .../É a hora divina.” O final é brilhante, o sonho tem sua hora, e esta é chegada, e quando se chega ao momento certo, a coda fecha com grande delícia, pois é a hora divina.
O LAR, A ESTREITA LUZ ...: O poema é cotidiano, simples, prosaico, começa na relação de Verlaine com o lar e suas atividades mundanas: “O lar, a estreita luz de uma lâmpada honesta;” (...) “A hora do chá cheiroso e dos livros fechados;/O prazer de sentir o fim de uma noitada;/A adorável fadiga e a espera idolatrada/De uma sombra nupcial e de uma noite doce,/A tudo isso o meu sonho terno dedicou-se”. E agora, ao fim do poema, o prosaico ganha aspecto também metafísico, ou melhor, de uma certa poesia que ultrapassa a visão cotidiana, pois a noitada é um sonho do poeta, e que tem a adorável fadiga, e de uma espera, que é a noite doce, na qual o poeta, com ternura, dedicou este seu pequeno sonho, isto é, seu pequeno poema.
A VOZ DOS BOTEQUINS ...: Este poema é a imagem perfeita dos poetas do século de Verlaine, assíduos da boêmia, e que tem neste ideal a relação direta que se dava entre poesia e dissipação, caminho tortuoso que reflete também na biografia de Verlaine, como vimos acima, e o poema de boêmia começa, nesta imersão no botequim, e a voz que de lá ecoa: “A voz dos botequins, a lama das sarjetas,/Os plátanos largando no ar as folhas pretas,”. O poeta descreve este ambiente, e de forma poética, como convém ao poeta boêmio, e que avança em seu périplo: “Lentamente, o olhar verde e vermelho rodando,/Operários que vão para o grêmio fumando/Cachimbo sob o olhar de agentes de polícia,/Paredes e beirais transpirando imundícia,/A enxurrada entupindo o esgoto, o asfalto liso,/Eis meu caminho – mas no fim há um paraíso.”. O poema também ganha um aspecto cotidiano, na imagem dos operários, os quais também, como os poetas, têm este lado de se dissipar no botequim, e para Verlaine, no fim de tudo, e ele está tranquilo, tem um paraíso, a coda se fecha em esperança, o poema vai da vida de boêmia a uma promessa porvindoura.

POEMAS:

DO LIVRO: LA BONNE CHANSON

O LUAR GRISALHO

O luar grisalho
Brilha no bosque;
De cada galho
Parte uma voz que
Roça a ramada ...

Ó bem-amada.

Reflete o lago,
Espelho puro,
O vulto vago
Do choupo escuro
Que ao vento chora ...

Sonhemos: é hora.

Um grande e brando
Quebrantamento
Vem, vem baixando
Do firmamento
Que o astro ilumina ...

É a hora divina.

O LAR, A ESTREITA LUZ ...

O lar, a estreita luz de uma lâmpada honesta;
O devaneio com um dedo contra a testa
E os olhos a sumir nos olhos bem-amados;
A hora do chá cheiroso e dos livros fechados;
O prazer de sentir o fim de uma noitada;
A adorável fadiga e a espera idolatrada
De uma sombra nupcial e de uma noite doce,
A tudo isso o meu sonho terno dedicou-se
Sem tréguas, contra vãs dilações cotidianas,
Devorando, impaciente, os meses e as semanas!

A VOZ DOS BOTEQUINS ...

A voz dos botequins, a lama das sarjetas,
Os plátanos largando no ar as folhas pretas,
O ônibus, furação de ferragens e lodo,
Que entre as rodas se empina e desengonça todo,
Lentamente, o olhar verde e vermelho rodando,
Operários que vão para o grêmio fumando
Cachimbo sob o olhar de agentes de polícia,
Paredes e beirais transpirando imundícia,
A enxurrada entupindo o esgoto, o asfalto liso,
Eis meu caminho – mas no fim há um paraíso.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31462/17/paul-verlaine-a-voz-dos-botequins-e-outros-poemas-parte-ii  


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

DÉJÀ VU

A palavra déjà vu significa, literalmente, “já visto”. O termo foi primeiramente utilizado pelo filósofo e metapsiquista francês Emile Boirac (1851-1917) no livro L`Avenir des Sciences Psychique (O Futuro das Ciências Psíquicas).

Lembrar ou ver de novo, eis que George tinha uma mania de estudar tudo profundamente, mas não como um intelectual, ou um acadêmico, seu conhecimento era muito mais uma coisa mundana, sensorial, ele tinha duas namoradas e vivia às turras com as duas, e uma não sabia da outra. Sua mãe, Helena, era psiquiatra de um instituto público, com tratamentos modernos de novas medicações e de um novo modo de abordar a doença mental.
Helena já tinha estudado a fundo Jung, e toda esta ideia de sincronicidade que muitas vezes virava uma obsessão sua por desvendar se as coincidências eram obra de Deus, do Diabo, ou de um jogo cruel ou virtuoso do que comumente chamamos de acaso. O pai de George era o Jorge, advogado que tinha seu próprio escritório de advocacia, e que resolvia casos escabrosos, também envolvendo coincidências estranhas, muitas vezes entre os diversos casos que tinha enfrentado, e vencido dois terços e perdido outro terço, uma vez que, longe da conciliação moderna, ele se via volta e meia com litígios intermináveis, mas faturava cada vez mais com pro-labore e honorários.
Os estudos sobre sincronicidade de Helena eram testados na prática com seus pacientes, e ela começava a identificar uma continuidade entre os casos de doença mental, o que ia da sincronicidade como uma manifestação quase racional do que Jung chamava de inconsciente coletivo, pois padrões se repetiam, e numa maneira herdada de Nise da Silveira, Helena começava a perceber nos trabalhos de arte de seus pacientes um padrão que muitas vezes se repetia, o aleatório e o acaso se tornavam cada vez mais insuficientes e subvertidos empiricamente com o que ela via como arte psíquica, em que os pacientes, longe de serem indiferentes, como é comum entender dos loucos, eles tinham o inconsciente aflorado de tal maneira que o ego se dissipava e se despersonalizava, mas o padrão resistia ali, naqueles trabalhos de escultura e de pintura, intactos, como se houvesse uma essência desconhecida atuando coletivamente, desde os poros da pele, até aos fundos da psiquê. A alma, se Helena poderia assim chamar, tinha uma possível estrutura regular, e esta se manifestava com maior contundência e evidência na arte.
George também tinha uma irmã mais nova, também filha de Jorge e Helena, que se chamava Lorena, e que seguia os passos da mãe, fazendo uma faculdade de psicologia, mas seguindo já a linha lacaniana, de maior entrada no mundo acadêmico atual, e que fascina tanto Lorena, que ela tenta dissuadir a mãe Helena de suas teses espirituais e místicas do orientalismo junguiano. As duas se dão muito bem, George, no entanto, é uma presença espectral no meio familiar, mas uma bomba em expansão no meio de seus amigos. George está inserido no caso de boêmia e dissipação, apesar de ter passado num concurso público para técnico judiciário no tribunal regional eleitoral, depois de muito sacrifício, pois nunca quis fazer faculdade, ele era prático, apesar da vida desregrada, pois ele sabia separar a hora do trabalho da hora da bebida, o que, no entanto, ele consumia com cada vez mais frequência, agora diariamente, de preferência cerveja, sempre com os amigos, e sempre balançando num esquema temerário de gerir as duas namoradas que, por sua vez, eram duas personalidades completamente opostas, Bruna, com um caráter trabalhador e de classe média baixa, e Sayonara, rica e sem trabalhar, recebendo uma mesada polpuda do pai enquanto faz faculdade de moda.
No entanto, George tinha uma obsessão particular, uma menina que tinha conhecido na infância, aos cinco anos, que era de sua mesma classe, Leila, que ele sempre tentou imaginar com que aspecto estaria na vida adulta, o que estava fazendo, o que sabia da vida, quais eram seus sonhos, se estava casada, se tinha filhos, se era solteira, se era religiosa ou ateísta, se tinha ido para o convento ou se até tinha morrido. George tinha esta monomania, de forma controlada, mas era um de seus planos reencontrar aquela menina que tanto havia lhe fascinado a vida infantil. Leila era o seu enigma favorito e de estimação, e ele sabia, na sua intuição, que algo ainda poderia acontecer nesta ligação quase mística, pois se divertia com Bruna, e muito, e saboreava os devaneios de Sayonara, mas ainda se sentia incompleto, seu trabalho de técnico judiciário lhe dava um salário que ele gastava tudo em bebida e festas, pois ainda estava na casa dos pais, e Helena preferia que ele estivesse perto mesmo, pois sabia das tendências de boêmia do filho, igual ao pai Jorge, mas este, por sua vez, reunia seus amigos em casa regado a uísque escocês ou um bom vinho francês, português ou chileno.
Helena, por sua vez, estava prestes a se tornar a diretora geral do instituto psiquiátrico em que trabalhava, e tinha, dentre vários casos de doença mental que estudava, alguns com peculiaridades extremas: um era de Carlos Henrique, um refratário contumaz das medicações, e que tinha na pintura e na escultura sua válvula de escape daquele mundo fechado em que vivia desde os 19 anos, estava no instituto já há cinco anos, e a família o havia abandonado, portanto, ele passou a preferir ficar dentro do quarto no qual ele estava hospedado no instituto, pintando, esculpindo e até costurando, pois os instrumentos cortantes eram esterilizados e utilizados pelos internos sob a vigília dos enfermeiros, os quais recolhiam tais instrumentos quando tocava o sinal de que era hora do refeitório ou de dormir. Carlos Henrique chamou a atenção de Helena por uma doce obsessão, os padrões em espiral e os olhos lacrimejantes nas pinturas, mesmo que o próprio Carlos Henrique não chorasse nunca, pois tinha sofrido um impacto emocional inicial quando entrou no instituto, e depois disso ficou com o afeto aplainado talvez para sempre, mas paradoxalmente tal afeto explodia na forma expressionista de suas pinturas, com cores vivas e símbolos perturbadores.
Helena se aprofundou no estudo de Carlos Henrique e descobriu, nas entrevistas que fazia com ele, que havia histórias mal contadas por trás daquelas aparentes alucinações, pois ele se referia a pessoas do seu convívio que não apareciam no seu prontuário, na anamnese que teve a participação da família, ele falava de dois amigos gêmeos, que eram denominados por apelidos: Panda e Duda. Ele dizia que os dois tinham sido seus amigos de infância e que apareciam em seus sonhos quando dormia e que os mesmos o orientava através de seus ouvidos quando ele pintava, Panda no ouvido direito e Duda no esquerdo, e que os dois também apareciam em forma espectral com foices e caras pintadas de caveira quando ele surtava novamente. Carlos Henrique dizia que eles diziam quase sempre as mesmas coisas o tempo todo, tais como “pinte com alma” ou ainda “faça esta escultura antes de morrer”. Duda era mais espevitado, Panda o mais calmo, e Helena encarava aquilo tanto como amigos imaginários, o que está na anamnese bem definido clinicamente, embora se abrisse para a “realidade” daquele relato, meio que suspendendo o próprio juízo.
Jorge, por sua vez, enfrentava um caso de disputa de guarda de uma maior de idade que era declarada temporariamente incapaz, pois o casal a havia internado, e que Jorge havia informado isto a Helena, pois a moça estava no instituto em que Helena trabalhava há um ano. O casal estava separado desde a internação da moça, eles se chamavam Roberto e Lílian, e a única filha do casal se chamava Leila. Jorge encaminhou o casal para a terapia que Helena oferecia aos familiares dos pacientes em seu instituto, mas a situação entre Roberto e Lílian, que sempre fora o céu, se convertera no mais cruel inferno desde a internação de Helena, pois um culpava o outro pelo fato, tanto como educação dada e questões financeiras que passaram a assoberbar o ex-casal em luta. Lílian estava com ganho de causa, mas Roberto recorreu, não havia qualquer chance de acordo, e Jorge trabalhava de um lado com Roberto, e Helena pedia a constante presença de Lílian no caso em que ela cuidava da filha dela, Leila.
George, enquanto isso, ainda sonhava com uma Leila da infância, vai atrás de sua escola antiga para levantar os arquivos para saber os sobrenomes da menina que tinha conhecido na infância, mas a escola tinha falido e os arquivos só Deus sabia aonde estavam. Portanto, George só poderia contar com uma sorte improvável de encontrar a tal Leila num lance do acaso, no qual acreditava piamente, pois era um ateísta determinado, sua crença em encontrar Leila contrastava com sua fé no acaso, que do aleatório das situações também prega surpresas, boas e ruins. E a batalha do acaso agora de George era entre as duas namoradas, pois queria terminar com aquela situação temerária de mentir e dissimular o tempo todo, escolhendo uma das duas para ficar e terminar com a outra, mas ainda estava dividido.
Levaria um mês até ele dizer tchau para Sayonara, que sempre lhe parecera fútil, ao contrário de Bruna, que era pobre e batalhadora, trabalhando em lojas sem parar. Quando isto ocorreu, Sayonara ficou revoltada, e George disse a verdade e que estava já há um tempo com Bruna, no que Sayonara surtou de raiva e começou a infernizar a vida de George, dizendo que ele era galinha e difamando ele para seus conhecidos, o que foi um golpe na reputação de George, até entre os próprios amigos. E também Sayonara começou a perseguir George, ligando para o telefone dele a cada meia hora todos os dias, com ele às vezes atendendo e brigando com ela, e muitas vezes atendendo e desligando na cara de Sayonara, que no minuto seguinte ligava outra vez, e o inferno recomeçava. E quando Sayonara cruzou com Bruna, ela avançou e tentou bater em Bruna, mas apanhou feio dela, que já tinha feito judô na infância e era mais vivida que Sayonara em todos os sentidos.
Helena passa a estudar também o caso de Leila, a qual era de um caráter tão sui generis quanto ao que ela encarava com Carlos Henrique, pois no instituto ela passou a pintar compulsivamente, sempre o rosto de meninos, às vezes vermelhos, rosas, amarelos e verdes, espectros azuis muitas vezes, um sol e uma lua, uma escola destruída, cenas dantescas de um menino cercado por demônios, luzes que explodem como numa descrição lacaniana, e vozes que ela ouvia, assim como Carlos Henrique. Leila, apesar de estar na ala feminina, conhece Carlos Henrique no refeitório e se apaixona, mas tinha uma monomania estranha de um tal menino que conhecera quando criança, cujo nome ela não se lembrava e o apelidou de “gino”. Esta figura a acompanhava em seus desenhos constantes de rostos de menino, todos com a mesma feição e os olhos faiscantes como os de um surto psicótico. Carlos Henrique, por sua vez, apresentou suas “vozes” para Leila, que também passou a ouvi-las, como numa sugestão, e se deu, com isso, algo inédito e inusitado para a psicóloga Helena, que naquela semana se tornara, então, diretora geral de saúde mental do instituto.
Jorge, que defendera Roberto no litígio, perdera a causa para Lílian, que agora tinha a seus cuidados Leila, e ainda nutria a esperança de que ela se recuperasse, pois muitas vezes Leila ficava completamente sóbria, embora caísse logo em seguida em delírios renovados e cada vez mais extravagantes. Leila, que dizia ouvir seu “gino” nas pinturas, nos sonhos e nos delírios, julgava que ele voltaria, como num retorno triunfante de Jesus para salvá-la do fogo do inferno. Jorge, por sua vez, sensibilizado com o caso, tinha decidido dissuadir Roberto de sua guerra contra Lílian, decidira, portanto, perder aquela causa de propósito, e a pedidos discretos de Helena, que sabia que Leila tinha mais afinidade com a mãe, enquanto Roberto era frio e estava naquela briga só pelo prazer da contenda, numa disputa mais contra Lílian do que a favor de Leila.
George, por sua vez, agora decidira se apaixonar por Bruna, mas era um sentimento postiço que era mais uma maneira de afastar Sayonara, que vivia cada vez mais louca na sua perseguição e difamação implacável contra ele. George agora só podia contar com o primo, Rodrigo, que ele convencera de tentar dar uns pegas em Sayonara para ver se ela esqueceria aquela obsessão, mas tudo em vão. Sayonara descobriu o acordo e tentou esfaquear Rodrigo e George numa boate, no que foi contida e levada à delegacia, onde pagou uma fiança. E, depois desse susto, ela resolvera dar um tempo de ir atrás dos telefones e da casa de George. Na verdade, ela tinha feito um recuo estratégico, vendo um novo modo de infernizá-lo e botá-lo na cadeia, num recalque contra Bruna e contra todos, que da difamação inicial levada em conta, desta vez, depois do episódio da boate, passaram a defender George de seus ataques. Neste momento, George e Bruna entram de férias e vão para um balneário, já com George com um novo número de celular para despistar Sayonara.
Leila, em uma semana, volta a ficar lúcida, e diz que “gino” só mora na sua imaginação, em mais três semanas ela tem alta e passa a se tratar em casa com medicação. Lílian fica com ela, e passa a sonhar que Leila agora faria uma faculdade e iria trabalhar, mas era um ledo engano, pois Leila não queria saber de nada, só em pintar e esculpir, no que Lílian colocou ela numa escola de artes, só que um mês depois, em novo surto, Leila se vira revoltada em ser doutrinada, de que era uma gênia incompreendida e que o mundo não a reconhecera, e botava a culpa nos professores, que diziam que ela era muito boa, mas era resistente ao ensino acadêmico, e que sua personalidade intransigente poderia destruir o seu próprio esforço, depois disso, Leila passa mais um mês no instituto, agora com a voz de “gino” dizendo que ele voltaria para buscá-la para uma “grande viagem”.
Enquanto isso, Bruna e George voltam do balneário brigados, pois George enchera a cara todos os dias o dia todo, e os dois terminam o relacionamento, e George toma uma decisão temerária, pois vai procurar Sayonara, que tenta arranhá-lo, mas, quando este diz que havia terminado com Bruna, o agarra e beija. Os dois, Sayonara e George, agora estavam juntos de novo. Bruna se sente aliviada, nunca mais fala com George, pois queria alguém mais sóbrio para viver junto, e Sayonara tenta fazer intriga dizendo que Bruna era má perdedora, mas era justamente o contrário, Bruna queria agora se ver livre tanto de George quanto de Sayonara, pois para ela, neste momento, os dois, com suas loucuras, se combinavam, e Bruna, em seu realismo de quem teve que se virar a vida inteira, não via mais chance nenhuma de enfrentar sua paixão por George, se o mesmo era uma esponja titânica que vivia absorvendo álcool como se vivesse constantemente numa festa sem hora para terminar. Sayonara, por sua vez, com George de volta, foi contar a novidade para todo mundo, e as pessoas ficaram perplexas com os extremos dela de amor, indo para o ódio, e voltando para o amor.
Nas conversas entre Leila e Carlos Henrique no refeitório do instituto, os dois passam, novamente, a compartilhar as suas “vozes”, numa contaminação mútua cheia de vibriões astrais, no jargão espírita, e que Helena, que tinha lido algo sobre isso, decidiu não relatar o caso para os demais psicólogos, e ainda tentou uma linha racional de relação com aquela contaminação mútua, tentando dissuadi-los, finalmente, daquelas “vozes”, e não mais alimentando as ilusões de ambos, pois as pinturas dos dois estavam ficando parecidas, com exceção de que os rostos de menino de Leila ganhavam cada vez mais nitidez, até que apareceu o rosto de um homem adulto, com os mesmos olhos faiscantes de surto psicótico, tão comuns nos casos de contenção.
Agora, as espirais também apareciam em torno dos rostos, numa mimética do estilo de pintura de Carlos Henrique, e “gino” agora dialogava com os gêmeos Panda e Duda nas tintas visionárias de Leila. “Gino” ganhava contornos e contextos, ele aparecia tanto como personagem, como companheiro dos delírios românticos de Leila que, mesmo apaixonada por Carlos Henrique, alimentava uma relação platônica com seu gino imaginário. E Helena dizia a Lílian que Leila tinha grandes chances de se recuperar, que aquilo tudo era um momento espontâneo, apesar do fundo biológico e químico envolvido, pois ela sabia, de acordo com Jung, que a consciência, no seu todo, também não era pertencente exclusivamente ao fundo biológico, e esta era sua esperança, trabalhar a cosmovisão de Leila, ao passo que ela sabia que no caso de Carlos Henrique, como refratário, isso era impossível e já era uma tese descartada empiricamente. Quanto às “vozes” de Carlos Henrique, a dissuasão toda não lhe retiraria as suas ilusões, mas poderia torná-lo um pouco mais funcional, pois, mesmo sendo o melhor pintor e escultor do instituto, ele era um dos mais disfuncionais do lugar, e os cuidados com ele eram sempre mais especiais e específicos.
“Gino” ganhava vida, e Leila, mesmo se recuperando, voltando novamente para a casa da mãe, decidiu, para não ser mal interpretada, guardar agora aquele segredo, e começou a conversar com seu gino imaginário, como numa dispersão necessária das novas cobranças de Lílian para ela sair de suas ilusões e trabalhar para viver, que aquele papel de louquinha dela já estava fora de contexto, e de que não iria mais aguentar seus rompantes e dissipações, ela teria que tanto tomar a medicação diariamente como se tornar responsável por suas atividades cotidianas, ainda que Lílian patrocinasse suas pinturas expressionistas, com gino participando daquilo como um grande jogo e com Leila alimentando seus sonhos da tal prometida “grande viagem”. O que poderia ser, na verdade, uma premonição simbólica, e não algo literal, como poderia, porventura, entender o senso comum, e Helena já sabia disso, e portanto, ficava tranquila, e a própria já tinha orientado Lílian de botar pressão em Leila para ela não mais se dispersar indefinidamente na vida.
Sayonara, agora, era só amores com George, e não havia um dia em que ela não fosse para a casa dele, os telefonemas não eram mais tão irritantes, pois agora ela estava segura de que seu território estava novamente dominado, mas ainda ficava num recalque explícito em relação a Bruna, na mesma situação de dizer que Bruna havia “perdido” a batalha, o que era mentira, pois tinha sido Bruna a abandonar o barco, com balneário e tudo, na relação tortuosa com George, no que Bruna, neste momento, já havia desligado a “chavinha”. E, então, Sayonara tinha tal manha mais por sua personalidade e tendências belicistas, pois a sua natureza era a do combate, ao passo que o combate de Bruna era pela vida e não para brigar com as pessoas.
Na verdade, Bruna não estava mais nem aí, tanto para Sayonara como para George, mas Sayonara dizia para todos que via que Bruna havia “perdido a guerra”. Bruna, então, num dia que cruzou com Sayonara na rua, tentou fazer entender que ela não tinha mais nada a ver com aquilo, que Sayonara já havia levado uma coça dela, e que não era mais para difamá-la por aí, pois Sayonara, na verdade, era uma criancinha mimada estudando corte e costura para ser madame. Bruna não queria mais saber, e encerrou a conversa, mas, mesmo assim, Sayonara não se convenceu dos argumentos de Bruna, e continuou a fazer saraivadas de críticas a sua adversária, a esta altura uma contenda e uma adversária que só morava na sua imaginação fértil e em seu ímpeto belicista.
Helena, por sua vez, tentava entender a origem de gino na imaginação de Leila que, mesmo agora, com alta da internação, tinha acompanhamento semanal, medicação e terapia, e Helena queria saber se aquilo era mesmo algo de sua imaginação ou algo de sua infância, como ela dizia o tempo todo. Não sabia por onde começar, propôs jogos para Leila, que se saiu bem em todos, pois, apesar de Leila ser um tanto disfuncional, tinha uma inteligência específica para algumas coisas, e Helena descobriu que ela adorava jogos, além de pintura.
Helena não sabia ainda o que faria com aquilo, e resolveu trabalhar de maneira cifrada com Leila naqueles jogos, com palavras chaves como “rosto” e “espiral”, até propor a “busca da origem”, e nisto fez uma saraivada de sugestões a Leila, todas relacionadas ao gino. Helena agora parecia começar a saber que a infância de Leila era lúcida, o tal gino não poderia ser só uma imaginação, tinha algo real e que era uma ferida biográfica de Leila, que aflorava na pintura do rosto de menino. Ela propôs, então, a Leila, a desenhar um rosto masculino adulto para compará-lo aos padrões do rosto de menino, para ver se havia continuidade entre ambos, e na sua ideia fixa de sincronicidade, ela tentou e conseguiu, pois os padrões eram iguais entre o menino e o adulto, e portanto, havia um enigma que começava a ser desvendado naquelas pinturas expressionistas de rostos, e então Helena propôs a Leila tentar desenhar e pintar o gino com cabeça e corpo, no que suas suspeitas de realismo contra imaginação se confirmaram, gino tinha sido um menino que Leila conhecera na infância, pois a carga simbólica não poderia mais dar conta do fenômeno, era uma fratura biográfica, com elementos que Helena agora sabia que eram reais, e mais do que isso, ainda bem vivos na percepção de Leila.
George, por sua vez, começava a se sentir sufocado entre a presença de Sayonara e sua infância de uma Leila que desaparecera para sempre. Sayonara, numa noite, pegou George falando dormindo, e nesta conversa onírica ouviu o nome Leila, e ela ficou apavorada e acordou George no susto perguntando quem era aquela biscate de Leila, e George, ainda bêbado de sono, deu um esporro em Sayonara, de que não tinha Leila, nenhuma, para Sayonara parar com aquilo, de que ele não iria fugir dela, mas, no dia seguinte, George viajou sozinho e passou a não atender novamente os telefonemas de Sayonara, que agora trocara sua contenda com Bruna por uma Leila que ela acreditava piamente ser uma amante de George.
Sayonara, no entanto, não sabia o paradeiro de George, e ele estava novamente no mesmo balneário em que estivera com Bruna, e ele decidiu ligar para Bruna pedindo desculpas, no que Bruna aceitou e disse para ele ser feliz, mas que não mais a procurasse, pois estava sobrecarregada de trabalho, e não queria mais saber de alcoólatras como ele. Bruna gostava de George, mas não tinha mais paixão por ele, tinha se desligado completamente desta história, e somente não queria mais ser importunada, e via Sayonara com pena e George com compaixão, porém com desdém de quem tinha se livrado de um cara que trabalhava, mas ainda assim permanecia num mundo ilusório de cerveja e festas.
George volta, procura Sayonara, e diz que estava tudo terminado, e novamente disse que não havia nenhuma Leila. Porém, logo as coisas iriam mudar, logo apareceria uma Leila, e era o que ele menos esperava, pois seria numa situação inusitada, a qual mudaria a sua vida, talvez na confirmação de uma ideia que ele perseguira. Neste ínterim, ele tem uns namoricos que não vão para a frente, e uma sensação de pesar em relação a Bruna, que ele sabia que era bem melhor do que ele, e torcia muito por ela, mesmo sabendo que Bruna não precisava de ninguém, e que era uma pessoa safa e que conseguiria tudo na vida. A tal Leila, que ele passou a sonhar em suas noites já na figura de uma mulher adulta, com os mesmos padrões de sua versão criança, que era a memória de George criança, tinha agora cada vez mais nitidez, aparecia com cabeça, corpo e voz, e os dois conversavam quase todas as noites, fazendo com que George, apesar de ateu e um crente do acaso, passar a entender aqueles sonhos como premonitórios.
Foi então que, numa noite, em um bar, no meio de várias garrafas de cerveja, com os amigos, que ele conhece uma Leila, e que tinha todo o aspecto físico e voz do que ele vira em sonho, começa a entabular uma conversa com a mesma, tentando identificar algo da sua infância, e que se ela se lembrava de quando tinha cinco anos, no que esta Leila responde que sua memória ia dos seis anos em diante, e começou a achar muito estranha aquela curiosidade toda de George por ela, portanto, Leila não gostou da abordagem de George, e ele percebeu que poderia ter encontrado a Leila de sua infância, só que agora a liga desandara, poderia ser que ele estivesse enganado, que esta Leila não era a mesma do seu sonho ou de sua infância, mas ele insistiu, e depois de duas horas de conversa, começou a receber um gelo de Leila, que desconversou e foi atrás de outras pessoas do bar, e naquela noite George ficou intrigado se não tinha perdido a Leila verdadeira ou se tinha apenas se enganado de Leila. Na verdade, ele não tinha sido competente na sua abordagem e exagerara na sua curiosidade sobre uma pessoa que acabara de conhecer, e que agora sabia que seria difícil de ver novamente ou que nunca mais veria, e bateu um certo desespero, ele então passou a acreditar que os seus sonhos não tinham sido premonitórios e que deveria a partir dali esquecer toda essa história, mas não conseguiu, pois os sonhos persistiram, e o aspecto era parecido ainda com a Leila real do bar, no que George ficou mais perturbado ainda, mas sabia que era uma batalha perdida, a moça não tinha ido com a sua cara, definitivamente.
Enquanto isso, Helena prossegue na pesquisa de Carlos Henrique e de Leila, e faz associações livres ao extremo para, no meio do caos, encontrar padrões para confirmar a sincronicidade junguiana, tanto nas entrevistas como nas pinturas de seus pacientes, e Leila volta a ficar obcecada por gino, que ganha cada vez mais nitidez nas pinturas e nos desenhos, e não havia como Helena encarar mais aquilo como imaginação, Leila havia tido um gino em sua vida, e isso retornava como “voz” e como metáfora, Leila estava controlada, tinha arrumado um emprego de faxineira, pois não tinha curso superior, e Lílian teve o dia mais feliz de sua vida ao ver que Leila, apesar de suas estórias malucas, estava se tornando finalmente funcional, não entrava mais em surto, mas seu acompanhamento com Helena se tornava cada vez mais intricado.
Leila dizia que conhecia gino na palma de sua mão, que ele era real, era o seu amiguinho de infância, e que teria a tal “grande viagem” com ele. Leila via gino com cada vez mais realismo, até em suas pinturas sumiam os tons expressionistas e simbólicos como as espirais, e o realismo e nitidez dos traços evoluíam freneticamente, gino se tornara o centro daquela memória que se expandia e se renovava, pois agora Helena já tinha a percepção de que aquilo jamais poderia ser somente a imaginação de Leila, aquela atividade psíquica era real, e fundada em alicerces firmes da percepção de Leila.
Enquanto isso, George procurava uma solução para o fora que tinha recebido de Leila, ele tinha a sensação de que havia perdido a sua chance de decifrar seu enigma, e que ficaria com aquela equação em aberto para sempre, ele perdia as esperanças e ficou cada vez mais perdido, afundando na cerveja, pois todo dia, depois de seu trabalho, bebia e virava as noites nos bares, num périplo por encontrar novamente esta Leila do bar, e de ser menos impetuoso na sua entrevista, e causar uma outra impressão na mesma. Pois demora três meses até ele encontrar novamente a moça, que lhe dera um gelo, e desta vez ele foi mais discreto, e desta vez Leila gostou dele e o convidou para seu aniversário que seria na próxima semana, numa sexta, e ele vai na esperança de decifrar o tal enigma, com uma alegria no coração que havia muito tempo ele não sentia. O que ele não sabia, é que na rede de amigos do aniversário, também estariam Sayonara e Bruna, já que o mundo é pequeno, do tamanho de uma noz.
Chega o dia do aniversário de Leila, George está ansioso, não se contém de alegria, parecia para ele de que se tratava da Leila de sua infância, e na noite, chegando na festa, dá logo de cara com Leila, a aniversariante, com outro homem de mãos dadas, e ela apresenta aquele que seria o seu futuro marido, e que também tinha o nome de George, no que o George que imaginava sua Leila de infância fica desconcertado e seu mundo desaba em uma fração de segundos. Ali, ele percebeu que o jogo estava perdido, e para um seu xará.
No entanto, pela recepção calorosa de Leila para ele, George mantém a aparência impassível, mas estava com seu enigma para sempre perdido, e começou a pensar se a Leila de infância não poderia ser a aniversariante, no que encontra Sayonara se atracando com outro homem, e Bruna com seu namorado novo, ele se vê sozinho e derrotado, bebe horrores na festa, mas não causa escândalo, pois ele era um bebedor voraz, mas nunca fazia cenas ou chatices comuns a bêbados contumazes. Pois agora ele sabia que teria que desencanar de desvendar seu enigma, mas volta para casa, completamente bêbado, tem náuseas e vomita, e quando dorme e sonha, tudo recomeça, Leila, a aniversariante, aparece em seu sonho, que agora não era só premonitório como recorrente, ele acorda pesado e desiludido e na segunda vai ao trabalho como um rebotalho que perdera na festa todas as suas ilusões, não havia mais escapatória, ele teria de arrumar um jeito de esquecer tudo aquilo, que a Leila não era a Leila, e que o George da Leila que não era a Leila era outro George que não era ele.
Nesta semana, em que George estava se recuperando do tranco com muito trabalho, Helena, sua mãe, se aprofundava também em seu enigma que tinha também uma Leila como objeto e sujeito de ação, e agora com Helena fazendo um trabalho primoroso de esclarecimento de Leila para que gino terminasse a sua missão, de que a “grande viagem” de Leila com ele deveria ser colocada de lado, que Leila deveria ter outro tema dominante em sua pintura. Helena consegue, um pouco, com um fenômeno de Leila voltar a seu expressionismo original e uma progressiva abstração, chegando às raias da loucura de uma action painting de Jackson Pollock, só que com forma própria e original, e parecia que naquele momento Helena conseguira dissuadir Leila de seu gino, a “voz”. No entanto, gino volta meses depois, com mais força, e Leila é mais uma vez internada, desta vez ela diz que gino aparece já adulto em seus sonhos, e diz que “o leite de minha mãe está contigo”, no que Helena tenta interpretar tais sonhos, mas não chega a nenhuma conclusão além da tese do sonho recorrente como desejo sublimado, aplicando agora Freud ao invés de Jung, e tornando a questão menos metafísica e mais prática, pois ela sabia que naquele momento deveria reforçar seus ataques contra a presença de gino na percepção de Leila, em vão. Leila entra em novo surto, no qual tem que ser contida, e começa a gritar: “Gino! Gino! Gino!”.
George, por sua vez, agora enfrentava uma depressão branda, como a velha melancolia, e agora, neste “spleen” poético, começava a beber mais, sua degradação era progressiva, ele sabia que teria que procurar pelo fim de seu enigma, dando um fim a ele bem no meio, sem chegar na linha de conclusão. Ele liga para Bruna novamente, que não atende os telefonemas, faz o mesmo com Sayonara, que atende, mas lhe dá um fora. Agora, ele tinha a Leila do aniversário em seu sonho, mas não tinha contato com ela, e o outro George seria o seu marido, ele leva então em conta a a percepção de que se esborrachara no chão, de que deveria ser forte, e afogar as mágoas na bebida, ao mesmo tempo dando um fim provisório a elas no trabalho.
Ele começa a ter o sonho recorrente de que vê Leila criança e depois adulta, a aniversariante, e ela dá tchauzinho para ele e some numa nuvem rosa, ele grita pelo nome dela, mas se vê afogando num rio também de aspecto rosa, que, segundo alguns pretos velhos, é a cor do amor, ele se debate no sonho, mas se afoga e acorda sempre suando frio, ele vai até sua mãe Helena e conta que não está bem, mas não diz o porquê, tenta dissimular que estava estressado, e Helena diz na lata que ele tinha que ir para uma clínica para parar de beber, e ele faz isso, fica um mês na rehab, e sonha, sonha muito, com a mesma Leila, no mesmo rio rosa, na mesma nuvem rosa, e numa certa manhã, num ataque de sonambulismo, sai para o pátio da clínica gritando: Leila! Leila! Leila!

11/11/2016 Leite com Carne (livro de contos) – Gustavo Bastos


  





  


domingo, 6 de novembro de 2016

MÁXIMO GORKI E SUA PEÇA PEQUENOS BURGUESES

“era uma peça com o espírito de seu tempo e repleta de sentido político e social”

O SURGIMENTO DA PEÇA
Pequenos Burgueses foi concebida em 1900, e Máximo Gorki levou um tempo neste trabalho, até que se atingisse uma forma que desse à peça sua versão definitiva, podendo ser lembrado, falando nisso, de que o título inicial da peça era até outro, Cenas em Casa dos Bessemenov, que consistia num esboço dramático feito em quatro atos. E é bom lembrar, que no seu conteúdo, a peça não segue uma linha reta ou única na sua ação, pois foi feita como um tipo de mosaico em que as situações são multilaterais, e que tem como linha comum, no entanto, para se dar o caráter da peça e o sentido de sua unidade, apesar do complexo de ações, em personagens com um tipo de linha constante, que é a construção realizada com êxito de caracteres (sem o sentido aqui do termo para a comédia) de figuras sociais  representativas da vida russa da época da peça, e que era, portanto, uma peça com o espírito de seu tempo e repleta de sentido político e social, uma peça de conteúdo diretamente relacionado à vivência e dilemas do contexto russo do início do século XX.
INTRODUÇÃO AO SENTIDO DA PEÇA
Por sua vez, entrando na esfera específica da peça, temos fatos reveladores da visão do próprio autor sobre a sua peça, o que podemos ver numa carta de Máximo Gorki para Stanislavski, na qual afirma que as personagens principais de Pequenos Burgueses são Nil e Pólia. Sendo, entretanto, o caráter geral da peça o retrato da situação da lenta e progressiva deterioração da pequena burguesia, a qual conduz a peça até no título.
A peça, portanto, se faz como as reflexões de Gorki sobre o mundo pequeno-burguês. O que inclui um conteúdo universalizante e geral que se refere desde a própria vida ou vivência desta classe, indo para as expectativas materiais classistas, a construção psicológica dos personagens que refletem, por sua vez, tanto o caráter de conduta como de cosmovisão dominante, e os valores que são expostos em suas contradições e tipos diversos de hipocrisia e faces sub-reptícias da ação e das situações e contextos de significações. O que, ao fim, denotam com acuidade fundamentada e artisticamente bem realizada a chamada “multidão cinza e entediada”, embora Gorki alcance nesta peça uma expressão riquíssima e bem mais discernida na profundidade e vitalidade que ele confere ao proletariado em suas observações.
Mas tal discernimento e profundidade, que tem mais este sentido positivo de vitalidade, revela, contudo, um paradoxo. Pois o proletariado, não só nesta peça, como em grande parte da obra de Gorki, tem um certo sentido ideal, uma forma chapada e acrítica, que revela caracteres que, embora mais bem construídos, são por isso, contraditoriamente, linhas regulares numa montagem didática, na constância de caráter e vitalidade que são a força do proletariado em Gorki, e que tem como efeito colateral o fato de revelar, ao fim, seres sem contradições, numa retidão que é nada mais do que o artifício ideológico de Gorki para mostrá-los em suas virtudes irrepreensíveis, e que são nada mais que o retrato de uma marcha pretensamente triunfante na direção da vitória final, ápice universal em que não resta nada do que poderia ser um caráter particular e real.
OS PERSONAGENS DA PEÇA
Os personagens de Pequenos Burgueses, no contexto geral da peça, vivem num meio de mesquinhez, numa confrontação com o sentimento de impotência para superar as barreiras desse meio, o que se dá, então, em níveis diversos, mas que são o dilema geral das situações retratadas e dos personagens. O velho Bessemenov, ponto de confluência da peça, aparece na peça como alguém que está perdendo a autoridade para se impor diante de sua própria família, e a dedicação acéfala da velha Akoulina, por sua vez, se revela como um esforço patético de manter uma ordem que se torna cada vez mais imaginária e fora da realidade, numa tentativa desesperada de impedir os choques inevitáveis entre os vários membros da família. Tatiana e Pietr, por sua vez, são o elemento real de tensão diante deste mundo ideal de Akoulina, que têm cada um os seus motivos para se debater contra esse contexto asfixiante e artificial do círculo familiar.
Na carta supracitada de Gorki para Stanislavski, Gorki pontua tal problemática dentro do seio familiar dos Bessemenov: “Akoulina está toda no amor aos filhos e ao marido, no desejo de ver os que a rodeiam amarem-se uns aos outros ...”. Por conseguinte, Akoulina aqui é o aspecto extremo do artifício que visa por todos os meios cumprir com a sua imaginação e dissociação acrítica e irreal, com o fito único e forçado de evitar as discussões familiares. Ela, então, neste esforço patético e demasiado, adota a política dos “panos quentes” o tempo todo, e com isso decide se colocar entre os demais para receber todos os golpes.
Mas, Akoulina, no seu amor à família, é profundamente egoísta. Sua imaginação de ser generosa, ao absorver todos os impactos de seu meio, não é nada mais que um apego egoísta de manter uma ordem que já não obedece a sua vontade. E nesta falsa generosidade, Akoulina faz um movimento de marginalizar os “de fora” e não hesita em se portar de maneira vil e injusta na defesa dos seus familiares, o que de defesa não tem nada, pois ganha o sentido de uma cilada em que ela enreda os mesmos que visa defender. Contudo, Akoulina, apesar de nunca perceber, pois vive na sua imaginação, não consegue realizar o seu empreendimento, e apesar de sua vontade de impedir rupturas, não consegue, contudo, qualquer união no seio da família, e tanto soçobra como comete um erro crasso de avaliação, por ser irreal. Pois, na peça toda, os personagens encontram-se sozinhos, este sim o elemento real das situações da peça, de pessoas que se veem isoladas por um muro forçado de falsos deveres e de obrigações acéfalas e automáticas.
OS CONFLITOS DOS PERSONAGENS DA PEÇA
O velho Bessemenov, por sua vez, “está numa situação absurda, desoladora. Viveu o diabo sabe quanto, trabalhou sem descanso, trapaceou para reforçar o resultado do trabalho e, de repente, vê que tudo foi em vão!”. Ele aparece neste embate clássico de gerações que se sucedem, no qual há uma incompreensão dele do tempo em que vive, de sua época, e que é, por fim, a ignorância absoluta sobre as novas gerações, com seus hábitos e comportamentos próprios.
Bessemenov, neste contexto, reage à nova realidade com mistificações, colocando tudo em termos extremados e passionais de desacato, imoralidade, e ao fim como sinais apocalípticos. Sua distância da realidade, então, é um pouco diversa da de Akoulina, pois enquanto esta imagina uma ordem, Bessemenov só enxerga desordem, num ímpeto intransigente, imutável, inflexível, conservador, e que é a imagem do patriarca frustrado, que imaginou e viu outra realidade, ao passo que Akoulina imaginou e se perdeu em sua imaginação. O chefe de família falido aparece na peça como aquele que não consegue, apesar de todo “sacrifício” pelo bem-estar da família, ver concretizadas algumas de suas expectativas em relação aos filhos, pois Pietr está suspenso da Universidade, por suas atividades políticas, e se apaixonou por Elena, a quem o velho atribui uma conduta imoral; e Tatiana, com 28 anos, é uma solteirona que ele desejaria ver casada, pelo menos para evitar as insinuações dos amigos.
Bessemenov, como um típico burguês, pensa na própria reputação, e se incomoda com a opinião alheia sobre seu fracasso como pai. Pois, no seu contexto particular, não consegue obter de Pietr senão promessas frívolas e vagas de que um dia fará qualquer coisa: e, por fim, a situação piora para Bessemenov, pois Pietr o provoca quando decide viver ao lado de Elena, o que o deixa aturdido. De Tatiana, por sua vez, ele recebe a presença constante, mas ela está numa situação delicada entre a tensão de permanecer próxima, por devoção familiar, embora isto seja o disfarce de uma sombra em que ela se vê amargando uma vida medíocre.
Bessemenov e Akoulina, por sua vez, se veem condenados a um tipo de solidão existencial, esta que não é a solidão física, mas a de ideias, de aspirações, pois não desejam nada mais que manter valores anacrônicos, e decidem imprecar contra o mundo novo toda a sua má sorte de ver a dissolução familiar. Eles,  pois, entram numa fase tenaz de negação psíquica, na qual não se veem como são, entidades opacas, e perdendo vitalidade, diante do caos que Bessemenov percebe, e se enfraquece, e que Akoulina finge não ver, sendo então o elo mais fraco de todos, no sentido psicológico, justamente por sua cegueira voluntária.  Portam-se, o casal de velhos, numa clausura em que estão apenas as suas ideias, seres imersos que são na morbidez e na incompreensão, em que o sentido da vida é uma aparência, um sentido que por ser artificial, é como a solidez que se desmancha no ar, ideia esfumaçada, evanescente, e que está implodindo, e a solidez que é ar, justamente como o esforço final dos dois de responsabilizar e acusar todos quantos se oponham às suas ideias.
MAIS PERSONAGENS
E Nil, o filho adotivo da família, aparece aqui como o caráter dileto de Gorki na peça, junto com Pólia, e se torna o bode expiatório, pois é da classe operária, e quando se fala de Gorki, aparece na sua forma ideal, repleta de virtudes, no movimento contrário do caráter dominante da família Bessemenov. E Nil, aqui também, aparece como uma das esperanças evanescentes de Tatiana, que sonha em se casar com ele. “Nil” escreveu Gorki, “é um homem tranquilamente convicto de sua força e do seu direito de reconstruir a existência de acordo com sua própria compreensão das coisas (...) Irritando-se, fala firme e distintamente, como quem dá machadadas. A indignação, a ira, tudo nele é firme, sadio ...”.
Por sua vez, Nil não ama Tatiana, e sim ama Pólia, que é uma semelhante, e com quem ele crê ser feliz. Nil lhe diz: “Nós vamos viver muito bem; você vai ver. Você é uma boa companheira. Você não tem medo da pobreza”. Gorki, então, faz também uma descrição de Pólia, que aparece para o autor como alguém “simples, modesta e capaz de qualquer heroísmo, sem nenhuma ostentação. Se ama é para a vida toda; se acredita em algo, também.” Teteriev, de forma colateral, é a figura mais solta da peça, e é nada mais do que um filósofo vagabundo, imerso em seu niilismo, e que está sempre incapacitado de lutar ou de fazer algo por si mesmo, e se torna, portanto, não um intelectual como o epíteto de filósofo pode fazer crer, mas sim um espectador passivo da vida que passa. Teteriev diz: “Eu sou um homem um pouco estranho”, e diz a Tatiana; “não participo muito dos acontecimentos terrenos ... Vivo por pura curiosidade ...”.
Teteriev nutre admiração por Nil, este que é o seu oposto, cheio de vitalidade, uma força da natureza, com alegria de viver, amando Pólia, a qual Teteriev também ama, e o filósofo também aprecia Elena, esta em toda a sua exuberância e generosidade; e que é, contudo, condescendente com Chichkin, mas ao mesmo tempo, apesar de ser um homem errático, fala a Tatiana que ela se encontra enterrada viva, e por fim acha os velhos Bessemenov e Akoulina detestáveis, e não tem nenhuma esperança em relação ao mais errático que ele até, Pietr.
No fim da peça, temos uma das partes mais emblemáticas do texto da peça, que é quando o velho Bessemenov, que se vê desesperado com o filho que está indo embora com Elena, ouve as seguintes palavras de Teteriev, este na sua tentativa de persuadir o velho de que Pietr voltará: “E será, com o tempo, tão avarento quanto você, tão seguro de si mesmo como você ... Tão mau como você ...”. Por sua vez, “Teteriev”, diz Gorki, “quis ser herói, mas a vida o alquebrou, amassou-o e ele a odeia por isso. Considerando-se muito dotado, trata as pessoas de cima para baixo (...) Odeia profundamente os pequenos burgueses, considerando-os, com toda razão, como inimigos dos homens que pensam e sentem livremente, como destruidores da vida”.
E Elena, por fim, atua como uma espécie de sal da existência na casa dos Bessemenov. Pois é uma viúva que desfruta da própria liberdade, e que, segundo Gorki: “ela sorri com clara alegria, tem muitos gestos vivos, gosta de que lhe façam a corte e de que a vida, em volta dela, ferva de alegria e de risos. Ama Pietr por compaixão, ou melhor, nem o ama, porém quer contaminá-lo com a felicidade da existência, quer que ele ria”. Elena, Pertchikin, Chichkin, Tzvetaieva, Nil e Pólia fazem parte daquela multidão dos que sentem e pensam livremente, dos que se opõem aos pequenos burgueses, àquilo que é velho e falido. Para Máximo Gorki, eles serão os herdeiros da Terra e os motores da vitória final da nova sociedade. Há aqui um embate de classes que, no sentido de valores, é a tensão mais que conflitiva entre liberdade e conservadorismo.
CONTEXTO CRÍTICO DA PEÇA
Gorki escreveu sua primeira peça, “Pequenos Burgueses”, devido a pedidos insistentes dos “pais fundadores” do Teatro de Arte de Moscou – K. Stanislavski e V.  Nemiróvitch-Dantchenko. Portanto, segundo as palavras de Stanislavski, Gorki se tornou “o principal iniciador e criador da linha sócio-política no teatro”, e isto se estendendo, por conseguinte, ao que viria a ser o drama moderno. Gorki, como dito, inicia a confecção de sua peça em 1900, e dizia que, neste início, para ele, na peça “havia muito barulho e nervos”, mas “faltava fogo”. E como também dito, a peça teve inicialmente outro título que era “Cenas na casa dos Bessemenov. Esboço dramático em 4 atos”.
Gorki, quando fez este primeiro esboço, enviou um de seus primeiros exemplares para que Anton Tchekhov desse uma opinião, no que o autor famoso de peças como “A Gaivota” e “Três Irmãs” respondeu de pronto, e sem delongas, que, embora a peça fosse “muito boa, tinha sido escrita à maneira de Gorki: muito original e muito interessante, mas havia nela um defeito, um defeito visivelmente incorrigível, como são os cabelos ruivos na cabeça de um ruivo: o conservadorismo da sua forma. O senhor faz os novos e interessantes personagens cantarem novas canções, mas seguindo partituras que apresentam um aspecto gasto, batido: há na sua peça quatro atos, e os personagens se estendem em lições de moral, sente-se um temor diante das prolixidades, etc, etc...”.
Contudo, após uns meses, em uma carta dirigida ao ator Iújin, Tchekhov observa que havia um mérito na peça, que era o fato de Gorki “ter sido o primeiro, na Rússia, e até no mundo inteiro, a começar a falar com desdém e repulsa da mentalidade pequeno-burguesa, justamente no exato momento em que a sociedade estava preparada para este protesto. Do ponto de vista cristão, ou econômico, ou de qualquer outro ponto de vista que fosse, a mentalidade pequeno-burguesa não passa de um grande mal; ela é igual a uma barragem no rio que sempre serviu apenas à estagnação...”.
MONTAGEM DA PEÇA
O texto de “Pequenos Burgueses”, no entanto, sofreu diversas censuras, e teve, portanto, seu conteúdo original retalhado muitas vezes, o que foi uma luta de Gorki contra as “tesouradas” czaristas, no que, ao fim, foi bem sucedido. E, voltando à visão de Tchekhov, a forma estrutural de “Pequenos Burgueses”, como ele observara no início, era bastante tradicional, vinculada ao tipo bem disseminado de “drama familiar”. E, em seu artigo intitulado “Notas sobre a mentalidade pequeno-burguesa”, Gorki escreve que esta mentalidade consiste de “uma estrutura da alma do atual representante das classes dominantes. As principais particularidades da mentalidade pequeno-burguesa são: um senso de propriedade, distorcido, um desejo tenso de que sempre haja tranquilidade dentro e fora de si, um medo intenso diante de qualquer coisa que possa, de uma forma ou de outra, perturbar esta tranquilidade; e uma aspiração, persistente, de poder encontrar uma explicação para tudo aquilo que venha a fazer oscilar este equilíbrio que se estabeleceu na alma, ou que possa destruir os pontos de vista, já estabelecidos, sobre a vida e as pessoas”.
No entanto, apesar dos rumores de que a peça de Gorki poderia se tornar uma espécie de arena política e de propaganda ideológica foi amenizada pelo diretor Stanislavski, o qual não tinha a intenção de criar um espetáculo “engajado” e dava-se conta, perfeitamente, de que “a tendência e a arte são incompatíveis, um exclui o outro. Logo que alguém se aproxima da arte com intenções tendenciosas, com propósitos utilitários ou outros que não sejam artísticos, ela fenece, como a flor nas mãos de Siebel. Em arte uma ideia estranha, uma tendência, deve transformar-se em sua própria ideia, realizar-se em sentimento, tornar-se uma aspiração sincera, uma segunda natureza do próprio artista. Neste caso, ela integrará a vida do espírito humano do ator, do papel, da peça como um todo e deixará de ser apenas uma tendência, tornando-se o próprio credo. E, por sua vez, o espectador terá que tirar suas conclusões e criar sua própria tendência a partir do que percebeu no teatro.”
MAIS IMPRESSÕES DA PEÇA
E também, para finalizar, podemos citar as impressões sobre a peça em Leonid Andreiev, que era mais um dramaturgo famoso e contemporâneo de Gorki, que veio a publicar uma resenha sobre o espetáculo, na qual, escreve: “As peculiaridades da primeira peça de M. Gorki é que nela não existe aquilo que se chama de ação dramática e não há, também, personagens secundários. Retrata-se um pedaço do quotidiano, tal como ele é, com sua ação lenta, marcando passo... enquanto isso, as personagens envelhecem, geram filhos, morrem, aparentemente sem realizarem qualquer “ação”... Bebem, comem, conversam, brigam, se separam,  participam de “acontecimentos”, no meio de uma enorme massa inquieta, movendo-se  para adiante e sem destino certo. E só quando se percebe quão longe todos eles avançaram, e que o fim não se assemelha ao início, então é aí que se sente e se compreende que, atrás desta ausência aparente de ação, ocultam-se poderosas forças de uma vida que destrói, pune, julga e cria. Esta historicidade artística da vida, que fora  primeiramente introduzida no drama russo por Tchekhov, é levada ao total e brilhante desenvolvimento em “Pequenos Burgueses”, o qual o autor chamou, a meu ver, de modo totalmente infundado, de esboço dramático...”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31365/17/maximo-gorki-e-sua-peca-pequenos-burgueses