PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

HAICAI - XLIV

Broto de flor bela
poetisa que mimetiza
num salto de fera

02/11/2017 Gustavo Bastos

HAICAI - XLIII

Vento que me joga
com traço de vil mormaço,
chuva que me molha

02/11/2017 Gustavo Bastos

HAICAI - XLII

Meu cais de razões
vão como dores de tomo,
livro de monções

02/11/2017 Gustavo Bastos

HAICAI - XLI

Cai gota de lágrima
do sal de todo meu mal
que vai em flor mádida

02/11/2017 Gustavo Bastos


CINEMA MÁGICO

(soneto decassílabo heroico)

Cores mádidas ferem meu trabalho,
fundos potes de mel no estro da fúria,
elenco de cinema que marulha
e rege toda morte em ato falho,

fotograma que olha tão no embalo
e vê tudo com prisma que debulha
fortes visões do mar que traz incúria,
filme de guerra trágica em que caio.

Eis que tenho total estro que grita
na relva e no meu pranto que vem solto
do filme bruto e livre das canções,

boa nova da verdade nesta fita
que roda longa estrada do meu mosto,
vinhas febris que surgem nas poções.

03/11/2017 Gustavo Bastos

NA VORAGEM ÉBRIA

(soneto decassílabo heroico)

Resta um porto que a voz ecoa na fossa
e que tem veia crível na voragem,
pois falo do meu verso bem selvagem,
benquisto pelo canto que remoça,

Eu, poeta na vitória da vã bossa,
meu todo é vertigem na margem,
coro de sensação dos que fogem,
e que se encontram ébrios em voz nossa,

Meu Deus que brilha só na busca vã
é vinho que derrama flores céticas
que do estro meu farol gera a maçã,

A fruta doce das visões carótidas
dos oráculos da noite pagã
e que sonha voraz o dia das mágicas.

02/11/2017 Gustavo Bastos

A ESTÁTUA DE DRUMMOND

“a poesia e todos os poetas brasileiros levaram um chute na cara”

O poeta Carlos Drummond de Andrade levou um chute na cara, digo, sua estátua levou um chute na cara. Passo pelo calçadão de Copacabana quase todos os dias para fazer a minha caminhada de oito quilômetros, e nesses dias não fui, ainda não vi o resultado de mais um ataque contra o Drummond, digo, a estátua, ou melhor, o Drummond. Tem um tal do fetiche pelos seus óculos, suas hastes são tentadoras ao vândalo, o burro fundamental da nossa espécie, que também pode ser brilhante com Drummond, mas que vive uma decadência cultural enorme que tem como resultado um cara de madrugada chutar a cara do Drummond.
Sua obra vastíssima é uma das mais abrangentes da poesia brasileira, sem falar das crônicas, também valorosas. Drummond é o poeta do boitempo, de alguma poesia e do claro enigma, conhece, vândalo? Vou te apresentar o poeta da pedra no caminho e da quadrilha, ele é legal, não precisa chutá-lo, a poesia não é um monstro incompreensível, e não é por você não entender poesia que tem que chutá-la. Repito, meu caro vândalo, Drummond é gente boa, mas você não o conhece, e ficou com raivinha de uma estátua estar ali plena no seu banquinho contemplando a madrugada, fenômeno da noite que você, vândalo, também não entende, pois você não entende nada.
Drummond, meu caro vândalo, recebe agora e sempre um grande reconhecimento, um cara que foi funcionário público, pois poesia não dá dinheiro, com exceção do Nobel que foi Pablo Neruda, é bem difícil um poeta viver de poesia, poetas vivem de jornal ou de aulas, ou outra atividade inusitada. Quer dizer, Drummond, meu caro vândalo, pode lhe explicar a noite e a madrugada, e você pode melhorar as suas prioridades, pois não é porque você não entende que não existe. Drummond existe, está aí, mas você não sabia. Meu caro vândalo, vou te explicar uma coisa : bater em estátuas é burrice, elas não sentem dor, são inanimadas, e bater numa estátua de uma pessoa que você não sabe quem é, por favor, foi mais burro ainda.
Agora vivemos o paradoxo de uma obra que virou cânone, ensinado nas escolas, um Drummond que a maioria ama, pois já vi uma moça tirando selfie e beijando a estátua do Drummond, sim, esta estátua já recebeu vários carinhos, vamos ser justos. Mas, não sei, tem gente que tem problemas com hastes de óculos e estátuas, um ódio primal, filho da burrice, um ódio gratuito contra a cultura, que em sua manifestação, sem falar apenas do vandalismo, vai pela rota conhecida do anti-intelectualismo e do recalque contra a imaginação dos escritores e artistas.
Vivemos cercados por um ódio contra a cultura que, no caso do vandalismo, é uma burrice tonta e voluntária. E temos também, falando da burrice voluntária, o caso da anti-literatura dos que gostam de dizer que são fodões da vivência, certamente regada a álcool, isto depois de ficar enfurnado num escritório, e achando um pintor, um youtuber, um ator, uma atriz, um cineasta, um poeta, todos vagabundos, que não trabalham, isto é, não lambem as botas de um sistema que sempre foi anti-intelectualista e que sempre fechou as portas para artistas e sobretudo poetas, que o diga os inéditos, estes que mandam livros para editoras que não respondem, o que é um hábito já de muitos anos, o fenômeno espetacular do editor mudo, do editor esnobe que só trabalha com indicação, do editor blasé que não gosta de inéditos.
Pois sim, Drummond levou um chute na cara, ou melhor, a poesia e todos os poetas brasileiros levaram um chute na cara. Somos sistematicamente subestimados, poetas sempre foram a poeira do cocô do cavalo do bandido, já passou da hora da sociedade acordar e respeitar todo o processo histórico inexorável da produção literária, o mundo hostil contra o que é literário tem que ter um fim, não gostamos de levar chute na cara, ninguém gosta, não gostamos de editoras que não leem nossos inéditos, nem que seja para dizer que foram recusados.
Não gostamos de levar chute na cara, Drummond quer seus óculos de volta, roubar seus óculos é exatamente a miopia existencial de um cegueta que não tem lente e nem sabe quem foi Drummond, ele não sabe, ele não sabe de nada, e de outro lado a decadência e o ódio à cultura nos leva a um mundo aparentemente funcional que censura a criatividade, que sabota, limita, mente, ignora, finge que não vê, e nos dá mais um chute na cara.
Drummond e sua estátua estão expostas ao fracasso cultural e intelectual de uma sociedade e de um mundo que deveria respeitar estes poetas, poetas não escrevem para levar chute na cara, nem bomba e nem tiro, um cientista não trabalha pelo progresso humano para ser assassinado na esquina, como foi meu irmão, uma pessoa brilhante que partiu e que sei que um dia vou rever.
A cultura tem que estar na frente, ela é o veículo nobre do conhecimento, urbano ou acadêmico. O respeito às manifestações artísticas são a chave de mudança de uma parte da sociedade que vê a arte como coisa pouca, de gente que não trabalha, acha que poetas fazem sabonete de hotel, souvenir, e não trabalho sério, parte de um processo histórico cada vez mais necessário e que deve ser encarado como tal, numa sociedade que não fecha as portas para seus artistas, poetas, pensadores e cientistas, uma sociedade do conhecimento que supere a decadência cultural, do ódio anti-intelectual, do modelo pragmático que nunca entendeu metáfora ou alegoria, que nunca entendeu nada que não seja funcional, isto na concepção deles.
A decadência cultural é aquela que não entende arte e poesia, e resolve chutá-la, ou varrer os escombros de um monstro para debaixo do tapete, pois isto também, para variar, eles não entendem. E quem não entende, passa a odiar, e aí chuta. A decadência cultural tem este resultado, uma estátua que já foi vandalizada onze vezes. Meu caro vândalo, eu sei que você não vai entender isto que estou lhe dizendo, pois você não vai ler esta crônica, vai estar chutando a cultura que você não lê, não conhece, e que vai morrer sem entender. E uma das coisas mais tristes do mundo é um homem ou mulher viver e morrer sem ter entendido nada, triste.
Mas, o poeta levar chute na cara, os artistas, intelectuais e cientistas, todos nós, diante da decadência cultural, levamos chute e tiro por sermos assim, livres, pois quem é preso é o vândalo, prisioneiro de sua estultícia, o bandido que tem um ódio contra uma estátua que ele nem faz ideia do que se trata, a única ideia brilhante dele foi chutar a estátua, mas nem assim foi original, roubou as hastes que foram roubadas por outros com o mesmo tino para a criatividade da ignorância. Os vândalos de Drummond são mais inanimados do que uma estátua.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36404/14/a-estatua-de-drummond


 


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

FILOSOFIA DO ESPELHO

O espelho, um poliedro das
faces, refletia a alegria
mansa dos poetas,

o espelho sem estilhaço,
escorreito como numa
métrica perfeita
e silente,

espelho mais simples,
amável e dançante,
que o poeta em face
de nuvem
voa como
um anacoreta
no êxtase,

um pouso suave
no poliedro,
espelho de todos
os ângulos,
a face decifrada,
a substância universal
dos duplos imaginários,
seu todo ser todo potente,
seu total ser pleno de plenitude,

poema no espelho,
que é face em flor.

30/10/2017 Gustavo Bastos

FLÂNEUR

Bendita carne, eu regava as plantas
nos paraísos da montanha,
um incenso de alfazema
ou um de sândalo
depois da festa,

encontrei os amigos de antanho
no bar do seu zé,
garçons lutavam
entre si,
os dinheiros todos
na mesa
do bilhar,

três da manhã :
os amigos sorriem extasiados,
quero um canto meu em Copacabana,
com gatos encrenqueiros,
arrotos na mesa
sem querer,
ar condicionado ligado
no máximo,
infinitas anotações
do que fazer
e do que não fazer,

quero um tempo com relógios coloridos
como uma cena de blow-up
ou uma explosão floydiana
como um zabriskie point,

ah, que sombra delgada,
é um fantasminha camarada,
seu nome é júnior,
ele morreu de tísica
no século dezenove,
diz ser um poeta romântico
que bebia e ia a inferninhos
como um poeta que era,

volto ao disco, minhas visões
de fantasmas arrefeceram,
e fico no meu quarto
com um som bacana
de Grace Slick,
como dizia Rimbaud
nas iluminuras :
já havia se aquietado
a ideia do dilúvio.

30/10/2017 Gustavo Bastos


CINEMA VERDADE

Os fotogramas mostram
do documento político
o fruto das revoluções,

insurreições, revoltas,
armas em punho,

canhões e balas,
bombas no dorso
das feras,

cambalhotas de tanques,
o império da força
e da violência
da guerra,

ah, me dá uma paz celeste,
deus de barro e de colunas,
deus meu, me dá um nirvana
bem longe
destas tramas
de sangue!

30/10/2017 Gustavo Bastos

SÓIS ANARQUISTAS

Verte na aurora teu pano
e tuas vestes,
anêmona ou medusa,
vai com os colares e miçangas
dos nenúfares,

verte silente poema
de um poeta palhaço,
um clown espirituoso
que ri e chora,

com toda a aurora fulminante
que irrita os olhos,
com ligas de aço
nos roncos das máquinas,
com limites geográficos
e acidentes geológicos
da História,

o poeta embrutece e amolece
num mesmo grito silente
de coração pomposo
e rebuscado
com seus sóis
anarquistas.

30/10/2017 Gustavo Bastos

CHUVA

Vai-te chuva torrencial
molhar meu caos de água,
soçobra com seus trovões
oh plena chuva,

vai, tonitruante, molhar
o solo afortunado
do destino,
chuva torrencial
que rompe
na cachoeira
e no rio,

chuva torrencial
que agita o mar
como uma bomba,

vai-te como um grito primal
na tempestade,
oh chuva torrencial
que faz das plantas
rainhas e da cidade
um pântano.

30/10/2017 Gustavo Bastos

MÔNADA

Quando está o sol com sua
pata de fogo
sobre o crepúsculo,
a alma do mundo
sussurra
iluminação
e delírio,

o êxtase dos ases e dos anjos,
o sol que explode
vermelho e amarelo
e laranja
nas flores furiosas
que comem a tarde
mádidas e formosas,

oh, quanto vento que o lótus
proclama, e o sol que lhe
abre o terceiro olho
que é um pequeno átimo
de uma mônada transcendental.

30/10/2017 Gustavo Bastos

O CÂNCER E A VIOLÊNCIA

Peste bubônica das feras,
uma fera abrupta
corrompe
os altares,

tem frio da sibéria,
em seus capitéis de gelo
do ártico,
sovietes delirantes
de gulags,

vento forte sopra e derruba
a estátua de lênin,
mao mata de fome
os miseráveis,

sim, os contornos da fera bruta
que rosnava no terceiro reich,
nos alucinados dos pogroms,
nas astutas fúrias da blitzkrieg,
nos apedeutas de mussolini,

ah, como agora vejo anão em fúria,
com mísseis e binóculos
na febre contra seul,
os fogos de duterte
no círculo de fogo,
e a doença terminal
de republicanos
e fundos abutres.

30/10/2017 Gustavo Bastos

SOM DO PLANETA

O planeta atávico me confere
o distinto karma,
brotos e cantos telúricos,
o brilho da maçã
e a sonora laranja,
meus olhos lacrimais
que choram cebola,
tubérculos e raízes fortes,
um chá xamânico,
uma flor psicodélica,
o caos do mistério
uivante,

o planeta tem um sabor
de terra arrasada,
de fundo de martelo,
de pista escorregadia
de granizo,

o planeta é um soco na barriga
que morre faminta,
seus espantos são refrescos
poções e infusões de poetas,
planeta germinado
de libélula e de borboleta,
planeta flácido ou rijo
gerado da samambaia,
do folclore e do
teatro mambembe,

planeta florido que é música,
ente de terra roxa com mansardas
de meia-água e de pé-direito
demolido, terra de ninguém
nos ócios e nos insultos
de cada dia,

planeta dos pães ázimos
que fundam a cabala,
planeta oco e bolorento
das fadas sopradas,
planeta enfadonho
dos povos,

eis que o poeta lhe dá a cara
mais ritmada que lhe possa
ser conferida,
da poesia do hiperurânio
ou do verme e do vírus
mais rudimentar,

eis que o poeta
lhe dá carne
e espírito,
planeta de cantores
e de assassinos.

30/10/2017 Gustavo Bastos

O SOLO

O solo fraturado da broca,
sulcos e rasgos da matéria,
um físico e um geólogo
lhe dão o aspecto terroso
e embrutecido,
arqueólogos lhe fazem
revelar as relíquias,
potes e vasos,
estátuas,
colunatas
enterradas
do tempo antigo,

figuras ancestrais
que são fantasmas do tempo,
o solo de rocha metamórfica,
o fundo sedimentar,
magmático,
sísmico.

30/10/2017 Gustavo Bastos

A FEIRA

Fecha o pregão da feira,
maçãs todas arrumadas,
os pomos que brincam
no mercado,

laranjas que pulam na corte
dos feirantes, o suco de morango
que derrama seu rosa,

ah, pastéis e caldos,
o sumo abençoado
dos glutões,

fecha o fim da feira
com cascas de banana,
alfaces abandonadas,
rabanetes, cenouras,
chuchu, tomates
amassados, muitas
batatas entre os detritos,

o caos alimentar me dá um sonho
de fome e de diversão,
a feira com seu coro orquestrado
de vendedores de prazer.

30/10/2017 Gustavo Bastos

AUGUSTO DOS ANJOS – EU E OUTRAS POESIAS – PARTE I

“uma obra que refletia uma polifonia que não se fundava numa única escola literária”

PERSPECTIVA CRÍTICA - PARTE I

Temos duas fases na crítica literária que foi feita acerca da obra poética de Augusto dos Anjos, fases que correspondem tanto a momentos históricos como a diferentes modelos de interpretação feito pelos críticos, sendo os primeiros impressionistas, amadores, como poetas fazendo crítica de poesia, e os segundos com um abordagem mais reflexiva e acadêmica, profissional, feita com embasamento de pesquisa bem estruturada, quando a crítica literária brasileira deixou de ser amadora e virou profissional.
Antes de abordarmos a crítica literária da obra de Augusto dos Anjos, se faz necessário evidenciar o contexto histórico em que se deu a feitura da obra do poeta, e que corresponde a Belle Époque. Tal período histórico que tem no Brasil um caráter literário de ecletismo e influência estrangeira, sobretudo francesa, de um modo subserviente, imitativo, como um epígono do que já tinha sido feito na Europa. No Brasil, isto ocorrendo numa fronteira literária entre o fim do simbolismo e do parnasianismo e o surgimento do modernismo.
Temos na chamada Belle Époque brasileira o ano de 1902 quando são publicados Canaã de Graça Aranha e Os Sertões de Euclides da Cunha, saindo também a segunda edição da História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, num movimento que vinha como uma miscigenação que pode ser bem definida de Pré-Modernismo, também sendo  chamado de Ecletismo, Sincretismo e Transição, num enfraquecimento do velho simbolismo de um século XIX que agonizava e um caminho rumo à modernidade que viria em 1922.
E foi nesta Belle Époque brasileira, portanto, num contexto de falta de originalidade literária generalizada, que Augusto dos Anjos escreveu a sua obra de poesia, e que foi ignorada, pois foi um poeta extemporâneo, mas que se afirmou historicamente como um dos poetas mais importantes da literatura nacional, reconhecido por sua temática original num momento em que a poesia brasileira andava afrancesada ou emulando poetas europeus.
Augusto dos Anjos conseguiu, por conseguinte, num momento de transição que envolvia o início da belle époque do Canaã de 1902 e o início do Modernismo em 1922, surgir bem em 1912, com uma obra que captou sensivelmente muito do que certamente passou batido por outros poetas que ainda tentavam imitar os modelos europeus e sobretudo franceses,  e tendo então a poesia de Augusto dos Anjos sido um fenômeno tão sui generis, até como uma forma insólita, que nem mesmo uma identidade desta poesia com o espírito mais avançado que poderia residir na Belle Époque ou ainda na chamada art nouveau, tal obra já está tão singularmente situada, que seu movimento já é de negação e superação de tudo que a rodeava. 
O caráter singular da obra poética de Augusto dos Anjos é assim tanto em relação à época em que foi concebida, como também no plano geral da literatura brasileira, incluindo aí também a revolução dos modernistas, uma obra que refletia uma polifonia que não se fundava numa única escola literária, uma obra que através de seu meio e forma multifacetados, alcança então, por esta mobilidade, uma voz individual, própria, original, com a marca do poeta Augusto dos Anjos.
A primeira fase da crítica literária sobre a obra poética de Augusto dos Anjos, que se deu entre o período de 1914, ano em que o poeta morreu, e o ano de 1941, tem um caráter impressionista, com tendências apologéticas, tematizando a poesia como um reflexo direto da biografia, envolvendo uma análise rasa de características psicológicas do poeta e situações concretas de sua vida real, sem fundamentação crítica ou acadêmica, sem uma pesquisa de método, com um amadorismo e imaturidade.

POEMAS :

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA : A evolução aqui tem uma veia biológica que se mistura à poesia, e Augusto dos Anjos tem um repertório riquíssimo de referências nas ciências naturais, no que segue : ““Sou uma Sombra! Venho de outras eras,/Do cosmopolitismo das moneras .../Pólipo de recônditas reentrâncias,/Larva de caos telúrico, procedo/Da escuridão do cósmico segredo,/Da substância de todas as substâncias!/A simbiose das coisas me equilibra./Em minha ignota mônada, ampla, vibra/A alma dos movimentos rotatórios .../E é de mim que decorrem, simultâneas,/A saúde das forças subterrâneas/E a morbidez dos seres ilusórios!”. Qual mônada, o poeta é um ser primário, um prisma em que confluem as coisas na forma do pólipo, da crisálida, do ente mais simples da natureza, no que segue o poema : “Na existência social, possuo uma arma/- O metafisicismo de Abidarma –/E trago, sem bramânicas tesouras,/Como um dorso de azêmola passiva,/A solidariedade subjetiva/De todas as espécies sofredoras.”. E aqui o orientalismo ganha uma metafísica do ínfimo e do amplo sofrimento universal, que contém o universo na solidariedade dos seres viventes, e o poeta coloca então o drama universal da existência nas mãos do filósofo moderno, claro que numa perspectiva crítica e bem crônica, como um doido das origens que está diante de um mundo que lhe humilha e reduz as formas nobres a rebotalhos ínfimos, no que temos : “Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,/Trazendo no deserto das ideias/O desespero endêmico do inferno,/Com a cara hirta, tatuada de fuligens/Esse mineiro doido das origens,/Que se chama o Filósofo Moderno!/Quis compreender, quebrando estéreis normas,/A vida fenomênica das Formas,/Que, iguais a fogos passageiros, luzem .../E apenas encontrou na ideia gasta/O horror dessa mecânica nefasta,/A que todas as coisas se reduzem!” (...) “Num suicídio graduado, consumir-se,/E após tantas vigílias, reduzir-se/À herança miserável de micróbios!”. E a luta filosófica e o que ela tem, em certo aspecto, de esforço vão e patético, o poeta deixa evidente com suas imagens precisas e bem estudadas, pérolas do mundo cruel da natureza cega, e que tem, ao fim, um lenitivo na Arte : “Cresce-lhe a intracefálica tortura,/E de su`alma na caverna escura/Fazendo ultra-epiléticos esforços,/Acorda, com os candeeiros apagados,/Numa coreografia de danados,/A família alarmada dos remorsos.” (...) “Ah! Dentro de toda a alma existe a prova/De que a dor como um dartro se renova,/Quando o prazer barbaramente a ataca .../Assim também, observa a ciência crua,/Dentro da elipse ignívoma da lua/A realidade de uma esfera opaca./Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,/Abranda as rochas rígida, torna água/Todo o fogo telúrico profundo/E reduz, sem que, entanto, a desintegre,/À condição de uma planície alegre,/A aspereza orográfica do mundo!/Provo desta maneira ao mundo odiento/Pelas grandes razões do sentimento,/Sem os métodos da abstrusa ciência fria/E os trovões gritadores da dialética,/Que a mais alta expressão da dor estética/Consiste essencialmente na alegria./Continua o martírio das criaturas :/- O homicídio nas vielas mais escuras,/- O ferido que a hostil gleba atra escarva,/- O último solilóquio dos suicidas –/E eu sinto a dor de todas essas vidas/Em minha vida anônima de larva!”” (...) “Era a elegia panteísta do Universo,/Na podridão do sangue humano imerso,/Prostituído talvez, em suas bases .../Era a canção da Natureza exausta,/Chorando e rindo na ironia infausta/Da incoerência infernal daquelas frases.” A natureza aqui tem a sua face mortal e precária, os seres lutam contra o inóspito, e no mundo humano temos o homicídio e o suicídio como enfim a face fatal de um mundo hostil.

AGONIA DE UM FILÓSOFO : Aqui o poeta considera a luta indócil da busca de conhecimento e da sabedoria espiritual diante da constante condição precária e torturante da angústia, e que tem no inferno do inconsciente o fundo da alma que não é plena no mundo dos mortais, no que temos : “Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto/Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo .../O Inconsciente me assombra e eu nele rolo/Com a eólica fúria do harmatã inquieto!” (...) “No hierático areópago heterogêneo/Das ideias, percorro, como um gênio,/Desde a alma de Haeckel à alma cenobial! .../Rasgo dos mundos o velário espesso;/E em tudo, igual a Goethe, reconheço/O império da substância universal!”. Mas a lida é total, a substância universal é o objeto do desvelamento em que a ideia encontra o gênio do poeta.

A IDEIA : Aqui o poema vem de um ente platônico, a ideia, e a coloca como um mero epifenômeno da natureza mais bruta da matéria e não fruto de uma abstração ou de uma metafísica toda especial, no que temos : “De onde ela vem? De que matéria bruta/Vem essa luz que sobre as nebulosas/Cai de incógnitas criptas misteriosas/Como as estalactites duma gruta?!/Vem da psicogenética e alta luta/Do feixe de moléculas nervosas,/Que, em desintegrações maravilhosas,/Delibera, e depois, quer e executa!”. A faculdade volitiva é uma interação molecular que delibera naturalmente, sem alma.

SONETO : O soneto lamenta o filho morto, o poeta Augusto dos Anjos, mesmo aqui, tem neste poema também os seus pendores biológicos, que se encerra num panteísmo que se dissolve no nada, no que temos : “Agregado infeliz de sangue e cal,/Fruto rubro de carne agonizante,/Filho da grande força fecundante/De minha brônzea trama neuronal,” (...) “Porção de minha plásmica substância,/Em que lugar irás passar a infância,/Tragicamente anônimo, a feder?!/Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,/Panteisticamente dissolvido/Na noumenalidade do NÃO SER!”.

VERSOS A UM CÃO : O cão, ser como um tipo rudimentar de rapsodo, dá seu latido, no que temos : “Que força pôde, adstrita a embriões informes,/Tua garganta estúpida arrancar/Do segredo da célula ovular/Para latir nas solidões enormes?!” (...) “Cão! – Alma de inferior rapsodo errante!” (...) “E irá assim, pelos séculos, adiante,/Latindo a esquisitíssima prosódia/Da angústia hereditária dos seus pais!”. A prosódia balbuciante de uma cadeia hereditária, o latido do cão.

O DEUS-VERME : O poema tem no verme a sua imagem mais dinâmica da metamorfose, a natureza em seu estado pútrido e criativo, no que temos : “Fator universal do transformismo,/Filho da teleológica matéria,/Na superabundância ou na miséria,/Verme – é o seu nome obscuro de batismo.” (...) “Almoça a podridão das drupas agras,/Janta hidrópicos, rói vísceras magras/E dos defuntos novos incha a mão .../Ah! Para ele é que a carne podre fica,”. Aqui o verme é senhor da natureza, ente que devora a morte em toda a sua podridão.

OS CISMAS DO DESTINO : O poema começa na ponte de Recife, no que temos : “Recife. Ponte Buarque de Macedo./Eu, indo em direção à casa da Agra,/Assombrado com a minha sombra magra,/Pensava no Destino, e tinha medo!” (...) “Lembro-me bem. A ponte era comprida,/E a minha sombra enorme enchia a ponte,/Como uma pele de rinoceronte/Estendida por toda a minha vida!/A noite fecundava o ovo dos vícios/Animais. Do carvão da treva imensa/Caía um ar danado de doença/Sobre a cara geral dos edifícios!/Tal uma horda feroz de cães famintos,/Atravessando uma estação deserta,/Uivava dentro do eu, com a boca aberta,/A matilha espantada dos instintos!”. A natureza dos instintos começa a gritar, o destino tem aqui parte direta com a hora da morte, a crueldade natural sempre presente, que é um dos pontos nevrálgicos da poesia de Augusto dos Anjos, no que segue : “A corrente atmosférica mais forte/Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,/Julgava eu ver o fúnebre candeeiro/Que há de me alumiar na hora da morte.” (...) “A vingança dos mundos astronômicos/Enviava à terra extraordinária faca,/Posta em rija adesão de goma-laca/Sobre os meus elementos anatômicos./Ah! Com certeza, Deus me castigava!”. A morte sempre vista como castigo, uma nêmesis cega de uma sofisticação absolutamente desconhecida ao olho humano, e que o poeta pontua, evocando então a doença romântica da tísica, como um tipo de mal coletivo e universal, no que temos : “Quisera qualquer coisa provisória/Que a minha cerebral caverna entrasse,/E até ao fim, cortasse e recortasse/A faculdade aziaga da memória./Na ascensão barométrica da calma,/Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,/Que uma população doente do peito/Tossia sem remédio na minh`alma!/E o cuspo que essa hereditária tosse/Golfava, à guisa de ácido resíduo,/Não era o cuspo só de um indivíduo/Minado pela tísica precoce./Não! Não era o meu cuspo, com certeza/Era a expectoração pútrida e crassa/Dos brônquios pulmonares de uma raça/Que violou as leis da Natureza!”. A expectoração aqui repete a dinâmica da nêmesis como um tipo de mal coletivo agora chamado tísica, o pecado original que vem especialmente da vida poética para o carma humano universal, no que segue : “Na alta alucinação de minhas cismas/O microcosmos líquido da gota/Tinha a abundância de uma artéria rota,/Arrebentada pelos aneurismas./Chegou-me o estado máximo da mágoa!/Duas, três, quatro, cinco, seis e sete/Vezes que eu me furei com um canivete,/A hemoglobina vinha cheia de água!” (...) “Escarrar de um abismo noutro abismo,/Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,/Há mais filosofia neste escarro/Do que em toda a moral do cristianismo!”. O fumo e o escarro ganham aqui caráter filosófico fundante e mais intenso até mesmo que toda a moral cristã e seus sonhos de salvação, e o poema ganha aqui então a descrição da desarticulação de que todo o horror da matéria é feito, um ente não de universais ou formas, mas de puro e bruto caos, com o fedor das carnes mortas de brinde, no que temos : “Foi no horror dessa noite tão funérea/Que eu descobri, maior talvez que Vinci,/Com a força visualística do lince,/A falta de unidade na matéria!/Os esqueletos desarticulados,/Livres do acre fedor das carnes mortas,/Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,/Numa dança de números quebrados!” (...) “Em tudo, então, meus olhos distinguiram/Da miniatura singular de uma aspa/À anatomia mínima da caspa,/Embriões de mundos que não progrediram!/Pois quem não vê aí, em qualquer rua,/Com a fina nitidez de um claro jorro,/Na paciência budista do cachorro/A alma embrionária que não continua?!”. A prisão da alma rudimentar é opaca, e o despertar linguístico que ainda não ocorreu, e que o poeta delineia, é um esforço de expressão vulgar, que a natureza busca, no que temos : “A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,/Acho-a nesse interior duelo secreto/Entre a ânsia de um vocábulo completo/E uma expressão que não chegou à língua!” (...) “Tempo viria, em que, daquele horrendo/Caos de corpos orgânicos disformes/Rebentariam cérebros enormes,/Como bolhas febris de água, fervendo!/Nessa época que os sábios não ensinam,/A pedra dura, os montes argilosos/Criariam feixes de cordões nervosos/E o neuroplasma dos que raciocinam!” (...) “Todos os personagens da tragédia,/Cansados de viver na paz de Buda,/Pareciam pedir com a boca muda/A ganglionária célula intermédia.”. Os seres saem do refúgio búdico e voltam à carga na vida bruta da matéria, e o poeta se julga um covarde que se debate no mesmo esforço vão dos seres todos, no que temos : “E, apesar de já ser assim tão tarde,/Aquela humanidade parasita,/Como um bicho inferior, berrava, aflita,/No meu temperamento de covarde!” (...) “A hipótese genial do microzima/Me estrangulava o pensamento guapo,/E eu me encolhia todo como um sapo/Que tem um peso incômodo por cima!/Nas agonias do delirium tremens,/Os bêbedos alvares que me olhavam,/Com os copos cheios esterilizavam/A substância prolífica dos semens!”. E a gênese humana é toda feita de gerações idiotas, no que o poeta segue na sua descrição : “Fabricavam destarte os blastodermas,/Em cujo repugnante receptáculo/Minha perscrutação via o espetáculo/De uma progênie idiota de palermas.”. E a presença da morte humana, que no mundo animal é o comum abate, o mundo cruel e hostil da vida material segue com um esforço exangue de filosofia que o poeta tenta empenhar contra o limite inexpugnável da putrefação e dos esqueletos, no que segue : “Por que há de haver aqui tantos enterros?/Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata .../Há o malvado carbúnculo que mata/A sociedade infante dos bezerros!” (...) “Morte, ponto final da última cena,/Forma difusa da matéria imbele,/Minha filosofia te repele,/Meu raciocínio enorme te condena!/Diante de ti, nas catedrais mais ricas,/Rolam sem eficácia os amuletos,/Oh! Senhora dos nossos esqueletos/E das caveiras diárias que fabricas!/E eu desejava ter, numa ânsia rara,/Ao pensar nas pessoas que perdera,/A inconsciência das máscaras de cera/Que a gente prega, com um cordão, na cara!/Era um sonho ladrão de submergir-me/Na vida universal, e, em tudo imerso,/Fazer da parte abstrata do Universo,/Minha morada equilibrada e firme!/Nisto, pior que o remorso do assassino,/Reboou, tal qual, num fundo de caverna,/Numa impressionadora voz interna,/O eco particular do meu Destino :”. A imersão inconsciente num éter ou numa indiferença de estátua é um sonho vão do poeta que tem seu destino carnal e intenso, sendo que o desejo do nada é apenas um abismo no qual a angústia universal tem que lidar, no entanto, com a totalidade do mundo.

POEMAS :

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras ...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios ...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
- esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papírus
E a miséria anatômica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma
- O metafisicismo de Abidarma –
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.

Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho ...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,
Trazendo no deserto das ideias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem ...
E apenas encontrou na ideia gasta
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!

Será calor, causa ubíqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi ; clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares –
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece ...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?! ...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável de micróbios!

Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo ...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta ...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do aríete
E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descarnada de um duende,
Que, tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su`alma na caverna escura
Fazendo ultra-epiléticos esforços,
Acorda, com os candeeiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.

É o despertar de um povo subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
- Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.

As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam ...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionisíaca do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca ...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígida, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas :
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas –
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!”

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases ...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.

E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!

AGONIA DE UM FILÓSOFO

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo ...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto! ...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de polo a polo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das ideias, percorro, como um gênio,
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial! ...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!


 A IDEIA

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

SONETO

               Ao meu primeiro filho
            nascido morto com
           7 meses incompletos.

                          2 de fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronal,

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
       
VERSOS A UM CÃO

Que força pôde, adstrita a embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar,
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! – Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais ...

E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos seus pais!

O DEUS-VERME

Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão ...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

AS CISMAS DO DESTINO

I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa da Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia ... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma-laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh`alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os açoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigmeias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopeias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos pólipos.

Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E, apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata ...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino :

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36355/17/augusto-dos-anjos-eu-e-outras-poesias