PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

LEMBRANÇAS ESTOMACAIS

  Pensei em tudo ao largar o cigarro, dei de banda com um gole de cerveja, bebi até não saber mais quem eu era. Fui ao local de minhas memórias: lá moraram todos os amigos, anos bem estupendos, vou e volto, de anos antes ainda retomarei a máquina abortada, de tudo que amei a flor vinga toda raça. Cigarros apaixonados, cerveja no sangue de orfeu, vive o sangue do himeneu. Flertei com a morte, ela estava azul. De noite de supetão tinha uns gringos falando asneiras, não sabia a língua em que falavam, mas por certo que eram asneiras, uma vez que nada se entendia.

04/09/2013 Pequenos Trechos
(Gustavo Bastos)

MULHERES ESQUECIDAS

Os olhos se perdem pela vista.
A cloaca aberta pela rua indômita
pariu um ser de beco,
garrafas de cerveja
lhe cortam o pulso,
seu pulso pulsava mistério
com o fogo do vento.

Mestre de si, o poeta
reunia seu viver revivido.
Encontra em uma fotografia
uma mulher no borrão da tinta
que estourara de um poema,
tinha levado um bofetão
de tal mulher
em anos de juventude,
suas lágrimas caíram
quando viu
que na fotografia
era carnaval.

04/09/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

ROSA FUNDA

As rosas que encantam o fogo de meu corpo
são rosas cálidas e pálidas rosas.
Vem a virtude, qual silêncio,
moldar a estupefação
de minha carne
sob uma erva escarlate.

Rege o tempo o maestro infante,
flor pudenda está em forma,
vai agora na minha paz de aurora!

Queima o nardo, o espanto silvestre.
Tem no mar o hausto viril,
e a vinha a luz deste estio.

Queima a rosa, o fogo do corpo.
Rosa mais funda
que minha pena,
rosa mais bonita
que minha poesia.

04/09/2013 Êxtase
(Gustavo Bastos)

SEM PRETENSÃO

   Vou aqui fazer uma crônica, mas, sem pretensão, na verdade, é uma cronicazinha, ou melhor, não é uma crônica, na verdade eu nem queria escrever essa crônica, mas, sem pretensão, vou escrevê-la.
   A moda agora é essa: tudo que se faz aqui no nosso país, principalmente em arte, agora vem com a ressalva (seria uma ressalva moral?) de que, tipo: Ah, fiz isso, mas foi uma coisa sem pretensão, sabe? E ai de quem afirmar categoricamente que escreveu um livro ou uma peça com pretensão, será execrado, pois agora o trabalho de arte que for "pretensioso" é algo feio, pois agora a ressalva moral é pelo trabalho de arte "sem pretensão", o selo de qualidade é desta falsa modéstia, desta falsa humildade, não que não devamos ser humildes, mas essa estorinha de fazer algo sem pretensão é mentira e só cai nessa lábia de "odaras" quem é muito trouxa.
   Qual seria o mal de fazer algo pensando grande? E mesmo que tivesse pretensão? Onde há pretensão sem respingo de ego não há mal. Mal maior é se meter a fazer arte dizendo que não quer nada com aquilo, que não busca uma gloriazinha sequer, isso é papo pra boi dormir, na boa.
   Agora o sujeito escreve um livro de poesia "sem pretensão", 60 páginas tá bom, senão é ofensivo. Outro faz um disquinho, também "sem pretensão", só uma maneira hipócrita de soar "cool", esses "odaras" são mesmo umas malas, não podemos mais ter a grande arte, pois aí seremos ofensivos, e tome esta profusão de livretos sobre coisas banais, num fetiche da banalidade e que soe bem "cool", é a tomada da turba odara da arte sem pretensão que resulta numa postura hipócrita de fazer algo sem querer fazer. Quer enganar quem, cara pálida?
   Agora temos que nos nivelar por baixo, grande arte virou pecado, blasfêmia, pretensão não é cool ... temos que respeitar os outros, nada de trilogias, só toleramos livro de até cem páginas, nada de trabalhos de fôlego, queremos a banalidade, vamos escrever pouco, mas sem querer escrever, que tenhamos ódio de nós mesmos quando um poema ultrapassar três páginas, e que paguemos penitência por nossas trilogias ou tetralogias, sejamos santos sem pretensão para não ofender ninguém, sejamos cada vez mais "odaras do desapego" (e debaixo desta poeira ainda há ego, mas um ego envergonhado). O que é pretensioso é não ter pretensão, onde a vaidade artística e intelectual não se admite não há sinceridade, eu não sinto sinceridade quando ouço o tal clássico contemporâneo brasileiro: "foi um trabalho legal de fazer, sem pretensão ..." (tá bom, ahãn, tá!)
   É bom que fique claro: fazer grande arte não é respingar ego, mas a ressalva moral de fazer algo que não se quer fazer é hipocrisia, pois tudo que se faz na vida quer ter algum alcance, ou então, se não há pretensão, não faça, será mais verdadeiro do que uma arte que se apresenta, mas tem vergoinha de ofender, é paradoxo e mentira, I`m sorry.

04/09/2013 Crônica
(Gustavo Bastos)
   

OS PROBLEMAS DE UM ROTULADOR

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo."
(Fernando Pessoa)

   Serjão estraçalha os corações, pega todas, se tivesse um segundo pau comeria a si mesmo. Ontem disse que comeu dez, cinco queriam se vingar, olhou outros em volta e foi logo classificando-os por espécimes, pois ele era esperto e perfeito, nada do que existia lhe era demais, posto que ele era o maior.
   Como aquele (a) da família que nem passou dos 32 anos e dizem que é solteirão (ona), ou o nerd ou o geek (e olha que agora tá na moda), a virgenzinha, a songa-monga, o tio mala, o bêbado, o drogado, o maconheiro, o pseudo-intelectual, o "CDF", a patricinha, a baranga, o idiota (Serjão) queria que tudo fosse rebaixado a seu bel-prazer, pois, vivemos no país mais "smart" do universo, tem um malandro em cada metro quadrado, um disputando com o outro pra ver quem passa a perna em mais gente, o mal do malandro é achar que o mundo é bobo, como se dizia desde o tempo do onça ...
   Serjão era o rotulador-mor, seu espelho era a sua fuga, nunca amou ninguém, uma vez que seu ego nunca permitiu essa coisa de maricas que é o romantismo, pois no mundo da malandragem tudo é fake, todos são fortes, todos são invulneráveis, nunca se perdoa a falha, ali ninguém é humano, não existe amor em SP, RJ ... talvez os folhetins sejam o último refúgio de nós, os pobre-coitados e iludidos.
   Bom, a vida foi passando, Serjão encontrou uma mulher espetacular, aquela seria a sua maior "tiração de onda do século", passou duas semanas e ela lhe deu um toco, para desilusão de Serjão, a mulher de seus sonhos era casada com um gordinho, baixinho e assalariado. Ele disse a ela que faria qualquer coisa para tê-la, que ele era o "coisa e tal", que tinha muito dinheiro, que seu pai tinha casa em Angra e essas coisas todas que chovem na noite das "altas". Mas a mulherona disse que era fiel, que o gordinho era o homem de seus sonhos, que não trocaria ele por nenhum outro homem. Então, Serjão ficou indignado, quase tentou puxá-la para si, mas, de súbito, a mulherona de seus sonhos começou a ter uma crise de risos, e então, Serjão saiu dali, e foi para a boate e pegou duas loiras normaizinhas e, de manhã, de porre, guardou aquele mico para si mesmo, seus amigos nunca souberam dessa "falha". E então, Serjão continuou com a sua vidinha de xingar os outros e se divertir com os espécimes criados de sua cabeça, e o rótulo de ter perdido um mulherão para o gordinho nem passava pela sua cabeça, ele nunca entendeu aquela mulher, para ele não passava de uma louca.
   A vida burguesa continuou, inabalável, todos os perfeitos desfilavam com seus carrões, o teatro de quem tinha a pica mais grossa virou um campeonato praticado pelos melhores, e enquanto isso o gordinho comia sua mulherona e nunca disse isso para ninguém.

04/09/2013 Crônica
(Gustavo Bastos)
 
 

domingo, 1 de setembro de 2013

TODA POESIA DE LEMINSKI

“Leminski renasce para a literatura brasileira em Toda Poesia, sua fortuna literária sai do gueto contracultural”

   A obra literária de Paulo Leminski, com o bem-sucedido lançamento, neste nosso ano de 2013, de Toda Poesia, que reúne sua obra poética, que transitou pela contracultura, agora se torna “mainstream”, numa celebração póstuma deste poeta, que também teve várias outras atividades, como a de tradutor, e morreu relativamente jovem, pouco antes de completar 45 anos, em 1989.
   Leminski é bem conhecido e relatado pela crítica literária e pelo jornalismo de literatura como um poeta que conseguiu manter a elaboração de um literato sob uma roupagem pop em poemas lacônicos. Sua linguagem ágil, bem clara, e de forte marca no mundo da cultura alternativa, tornou Leminski uma figura única no cenário da poesia brasileira, um ponto de encontro de várias vozes, uma síntese singular da poesia do nosso país. Leminski é poeta próprio, híbrido, universal e múltiplo.
   Leminski tornou o elemento popular, de doses extravagantes de uma atitude de showman, homem de mídia nato, no meio de uma fervilhante criatividade, a forma de sua poesia, mantendo, contudo, todo o grau de erudição que se exige de alguém que se aventura em poesia, mesmo que a poesia falada e coloquial não tenha no estudo um método, tendo a improvisação tomado a frente do movimento da poesia marginal da década de 70, década que Leminski também viveu, mas correndo numa paralela própria, com valores ainda do concretismo, de Haroldo de Campos, numa veia de propaganda, de slogan mesmo, criando seu próprio rótulo, sua marca.
   Leminski era o poeta da brevidade e da mensagem eficiente, o que posso dizer de minha leitura de Toda Poesia é deste combustível de uma poesia rápida, mas nunca pueril, é um paradoxo, pois da substância das mensagens certas de Leminski, não se esconde uma fácil precariedade, dos haicais se tem a coisa forte da síntese, pois Leminski era também o poeta da síntese, são poucos os poemas mais longos, Leminski tem na sua poesia a carga forte da marca de uma mensagem, tal como se vê em alguns poemas emblemáticos.
   Eis a perfeita síntese: “moinho de versos/movido a vento/em noites de boemia/vai vir o dia/quando tudo que eu diga/seja poesia”. Ou a conclusão sintética poderosa, mais uma vez: “não discuto/com o destino/o que pintar/eu assino”. Ou ainda, uma pedrinha filosofal: “isso de querer/ser exatamente aquilo/que a gente é/ainda vai/nos levar além”. E mais este desacerto, erro, que acerta no jogo: “nunca cometo o mesmo erro/duas vezes/já cometo duas três/quatro cinco seis/até esse erro aprender/que só o erro tem vez”.
   Todas estas citações são exemplos do que eu chamo de as marcas de Leminski, sua arte-slogan, que, embora direta, tem por detrás de si, uma mente estudada, um saber vasto, a meditação do haicai, as experiências gráficas, as referências literárias, o jogo de palavras constante, um exercício criativo de uma experiência literária e poética moderna, dialogando com frentes diversas, tais como o formalismo do concretismo, a síntese do haicai, e a tradição mais erudita sob uma forma diluída em performance de palavras, em apelo pop.
   Leminski dá o seu show, e a poesia não se desfigura em pura performance, mas mantém o registro de ainda ser uma poesia tal qual a chamada poesia da “gabinete” ou “oficial”, Leminski consegue criar uma poesia de face pop, com o coloquialismo próprio da poesia falada, que nascia na década de 70, e mantém, ao mesmo tempo, um teor de saber, de conhecimento, de uma arte laborada sob um regime de estudo profundo, mas sem as afetações de um lirismo que deixa de ser lírico, e que é, na verdade, uma poesia de esteta.
   Leminski passa longe dos tiques de beleza que alguns poetas têm (digo, poetaços), e consegue manter uma dignidade de simplicidade aparente, que é, na verdade, uma atitude, uma conduta, uma postura diante da vida, onde poeta e vivente se fundem, e criam a poesia viva. Poesia viva que é vida e arte mais do que num diálogo, mas numa verdadeira e autêntica fusão.
   Leminski renasce para a literatura brasileira em Toda Poesia, sua fortuna literária sai do gueto contracultural, e acaba de ser deglutido pela cultura aburguesada do mainstream, o que, antes de deformar o poeta em questão, favorece os poetas e a poesia que se faz no Brasil como um todo. Que bom.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.