PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 20 de abril de 2018

PARA QUE FILOSOFIA?

“é melhor existir do que o nada”

Quando penso em porque alguém escolhe filosofar e, pior que isso, escolhe a filosofia como meio de vida, tal como eu, tem claro o futuro que lhe aguarda, uma vez que sabe que vai ter que pensar sem cessar e, no dito meio de vida, ensinar o que não se ensina, ou seja, filosofar e não filosofia.
Devaneio? Aí é um paradoxo, já que a filosofia, no entendimento do senso comum, trabalha com a razão, mas o devaneio é a escolha por tal labuta, o filosofar exige de nós uma disposição para a reflexão e a construção de um pensamento que nem todos tem, não é para qualquer um!
Uma consciência torturada? Diria outro alguém que desdenha das questões da vida. Bem, talvez ... vai saber, né?! No meu caso eu fui um jovem de certo modo torturado pelas questões da vida e com o tempo isso ganha em disciplina e complexidade, mas deixa de ser tortura e vira indagação seletiva, nem tudo se pergunta, é o que descobrimos com o passar do tempo e com as leituras, como também nem tudo se responde, é a outra obviedade como efeito colateral do questionar.
E me vem à cabeça de porque fiz esta escolha que eu diria ser, sem falsa modéstia, de corajosa. Talvez, na juventude, façamos escolhas inconscientes totalmente conscientes. Ora, novo paradoxo? Sim, é claro! Trabalhamos com paradoxos a vida inteira, e não adianta o filósofo vir com o princípio de não-contradição, uma das estruturas da chamada razão ou raciocínio, é que é uma loucura alguém filosofar em tempos tão bicudos e medíocres, é um fato.
Certa vez eu me indaguei se fiz o certo, ou se deveria ter virado homem de negócios e deixar essas questões existenciais de lado, mas havia uma força maior e inexorável que sempre me conduzia para a filosofia e para a busca de alguma verdade ou sentido na vida. Por quê? Para quê?
Tenho que responder, mas sabendo que é em vão, tudo na vida quando se quer arriscar pode ser em vão, pois a filosofia é em vão em razão de suas respostas mas não em razão de suas perguntas, eis, eureka! Pois então a pergunta é mais importante para o filósofo do que a resposta, pois toda resposta denota certo sinal de arrogância intelectual ou pretensão descabida e irrefletida, já que uma vez sabendo da resposta a questão cessa e torna-se necessária nova ocupação, fato.
Mas a verdadeira ocupação do filósofo é a pergunta e, mais do que isso, a qualidade da pergunta, ou seja, temos que aprender a perguntar para filosofar de fato, senão seremos presas fáceis da falácia e do sofisma, seremos manipulados pela ilusão ardilosa de um raciocínio intempestivo, é preciso então refletir calmamente, a pressa não é própria do filosofar, é preciso ruminar antes de falar, só se fala do que se tem a devida medida, e do que não se pode falar simplesmente calamos, essa é a medida que diferencia os que estudaram dos cabeças de bagre.
Mas, volta a pergunta fundamental, para quê isso tudo? Para quê uma história tão vasta e milenar se até hoje não temos nenhuma conclusão de nada! Ora, às favas com a filosofia! (Diria agora um incauto ... ) Ora, porque perder meu tempo com perguntas fundamentais se não há resposta fundamental. Qual a razão disso? Qual é o mérito da filosofia e do filosofar? Ora, não temos que sobreviver, trabalhar? O tempo acabou! O tempo acabou! Não temos tempo para pensar, quanto mais filosofar! (Mais uma vez, aqui temos o argumento cético do incauto insistente, é a ignorância presa da falácia e do sofisma da qual eu avisei logo acima, todo cuidado é pouco ...) Mas, e então filósofo? Me responda, para quê filosofia? ....
Tal pergunta é da mesma natureza de outra pergunta fundamental que é a seguinte:
Para quê a vida?
Então temos aí o cerne do problema, pois perguntando pela filosofia estamos também e ao mesmo tempo perguntando pela vida, já que, num entendimento que eu chamaria de filosofia honesta e não formal, a pergunta pela filosofia desemboca na pergunta pela vida, aí reunimos duas perguntas da mesma natureza que podem se fundir e recriar a questão numa indagação pelo sentido das coisas, coisas? Objetos? Não, é sentido lato e não o estrito, a filosofia, ao contrário de saber acadêmico estrito, sempre pergunta em sentido lato, já que a pergunta pela vida também está e se dá em sentido lato, para “responder”.
Enfim, precisamos viver bastante e nada de resposta peremptória sobre o porquê ou o para quê, mas uma resposta numa pergunta, uma resposta que pergunta e se instaura no que é importante, por que o mundo? Para quê o mundo? E respondemos: para ensinar o homem a viver, pois é melhor existir do que o nada, que é o impensável.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/38408/14/para-que-filosofiaij



segunda-feira, 16 de abril de 2018

BORGES, OS SONHOS BÍBLICOS E MAIS DESCRIÇÕES ONÍRICAS

“um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da vida individual neste mundo”

Borges nos fornece neste seu Livro dos Sonhos uma perspectiva em que a ficção mais uma vez se faz como uma aparente crítica literária, mas no caso deste livro temos um caso mais específico ainda da literatura borgiana, temos uma espécie de documento transcrito, vide o relato inicial da História de Gilgamesh, seja no trecho em que se dá os diversos relatos bíblicos do plano onírico e de como o terreno do sonho sempre foi, na era antiga e demais contextos, também associado com uma faculdade profética ou de adivinhação.
Na abertura do livro temos, portanto, a História de Gilgamesh, este que é um dos registros de ficção mais antigos do mundo civilizado, surgido nos inícios da civilização mesopotâmica, pois, em meio de uma mitologia que reunia entidades como Tamuz e Ishtar, Gilgamesh nos aparece como um personagem sui generis, não fazendo parte do panteão sumério, por exemplo, mas sendo o primeiro poema épico de que se tem notícia na nossa História do mundo. E Borges faz aqui uma reprodução fiel do texto antigo, na relação entre Gilgamesh e Enkidu, e no afã de romper o mundo dos mortais em direção do mundo dos deuses, Gilgamesh teria, no entanto, o mesmo destino reservado aos mortais, a finitude, no que o herói regressa, por fim, a Erech.
Se segue, no livro de Borges, então, uma série de textos bíblicos curtos, todos referentes ao papel do sonho no contexto destes relatos bíblicos, e começando com o mais conhecido, que é o de José no Egito, no Gênese, que era um hebreu feito cativo que ganha a confiança de Faraó ao ser o único que teve a capacidade de interpretar um sonho do soberano que nenhum dos adivinhos do Egito tiveram como decifrar.  E José acaba sendo então nomeado por Faraó o superintendente do Egito.
Outro relato bíblico famoso e também transcrito por Borges em seu Livro dos Sonhos é o de Daniel com os sonhos de Nabucodonosor, já no reino caldeu ou neobabilônico. A história começa com um pesadelo que o soberano tivera, mas que havia sumido de sua memória, e nisto ele convoca todos, isto é, os adivinhos, os magos, os encantadores, e por fim os próprios caldeus, mas ninguém lhe dá a resposta, mesmo com a ameaça do soberano sobre o seu povo de perecerem se não lhe dessem a resposta.  Uma vez que os caldeus disseram ao rei que só os deuses poderiam lhe dar tal resposta, ele então ordena a morte de todos os sábios de Babilônia. E Daniel, que também poderia perecer, pediu ao rei, no entanto, um tempo, e lhe prometeu que desvendaria o mistério.
E então o segredo foi descoberto por Daniel numa visão durante a noite. Daniel então é levado ao rei por Arioc, e este cativo, um dos filhos de Judá, diz ao soberano : “Os sábios, os magos, os adivinhos e os agoureiros não podem descobrir ao rei o mistério que o rei deseja descobrir. Mas no céu há um Deus que revela os mistérios, o qual mostrou, ó rei Nabucodonosor, as coisas que hão de acontecer nos últimos tempos.”
E então temos a revelação de que o sonho era de que o rei olhava uma estátua bem grande, com a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de cobre, e as pernas de ferro, uma das partes do pés era de ferro e a outra de barro. O rei olhava, segundo a revelação feita a Daniel, a estátua, quando então rolou uma pedra de um monte e feriu a estátua nos seus pés de ferro e de barro e os fez em pedaços. E tudo se quebrou, o ouro, a prata e o cobre também. Este era o sonho do rei e que Daniel então também teve a visão. 
E a tradução do sonho feita por Daniel, com o concurso de seu Deus, era o de que o rei era a cabeça de ouro, de um reino próspero, que seria sucedido por um reino menor que o dele, que seria de prata, um terceiro reino então viria, de cobre, o quarto reino de ferro, e este reino, por fim, será dividido, entre a firmeza do ferro, e a parte frágil do barro. Então Nabucodonosor se prostra diante de Daniel dizendo-lhe que aquele Deus que revelara o sonho era o Deus dos deuses.
Temos então em seguida mais relatos de sonhos bíblicos, tendo então uma grande alegoria de quatro reinos, com todo o simbolismo que envolve também imagens fundidas de animais para interpretações de acontecimentos históricos, lembrando uma dinâmica comum entre a alegoria do sonho e sua interpretação, o simbolismo sendo sempre um enigma evidente, nunca algo sem sentido, daí que a interpretação, quando nos aparece, revela a lógica interna de tais sonhos. E terminamos o trecho bíblico do Livro dos Sonhos, por fim, com orações e confissões de Daniel e a citação do Evangelho de São Mateus, com a descrição do sonho de José que era uma comunicação espiritual do anjo do Senhor, a fuga para o Egito, incitada pela perseguição de Herodes, e o retorno, com o falecimento do perseguidor, da sagrada família a Israel, por fim.
Segue-se então, ao término do ciclo bíblico em Livro dos Sonhos, um conto sobrenatural hitita, História de Kessi, e então a fonte grega “Os sonhos procedem de Zeus”, da Ilíada, As Duas Portas, parte I, da Odisseia, uma fonte latina, a parte II, vinda da Eneida, O Sonho de Penélope, que era alegoria do retorno de Odisseu a Ítaca, o qual dava um fim ignominioso aos pretendentes de Penélope, a águia que mata os gansos rompendo-lhes o pescoço, retirado da Odisseia. E temos em seguida Os Idos de Março, um dos episódios mais famosos do périplo que foi o trajeto romano do reino à República e daí para se constituir como um grande império, Idos de Março que envolve a conspiração contra Júlio César e sua morte, relato este que foi feito pelo historiador Tito Lívio, mas que aqui em Borges se inspira na conhecida Vidas Paralelas de Plutarco.
Segue-se um pequeno relato sobre O Sonho de Cipião, obra de Cícero, que tem caráter filosófico-religioso, e tem a descrição do sonho do título, que envolve, na sua parte reflexiva, ou seu leitmotiv, a questão da piedade e da justiça, que então nos leva a uma descrição dos mundos supralunares e sublunares, de como esta divisão astronômica é também uma divisão da alma do Homem, o mundo inferior, sublunar, como lugar da mortalidade e da decrepitude, “exceto as almas dos homens”, como nos lembra Borges nesta descrição, e temos então a necessidade destes homens de se voltarem às virtudes citadas da piedade e da justiça, voltando então a vista a este plano superior das esferas supralunares, “onde nada é decrépito ou mortal”, como nos lembra Borges.
E o autor então também nos dá a chave : “A alma se acha ligada por sua parte superior a estas esferas, e somente poderá regressar efetivamente a elas, como sua verdadeira pátria, quando esqueça a caducidade dos bens materiais e das falsas glórias terrenas”. A origem de tais ideias em Cícero remete a Pocidônio, a qual alguns negam, e temos um plano geral em que tais concepções eram correntes, seja da influência das ditas religiões astrais, seja na concepção platônica, e que vai influenciar, por sua vez, autores posteriores, se destacando então Macróbio.
E aqui cito mais uma vez o texto borgiano, que nos diz : “É mister observar que um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da vida individual neste mundo, comparada com a imensidade do cosmo. O tema está igualmente desenvolvido no Livro VI da Eneida (revelação de Eneas a Anquises) e em alguns escritos estoicos (por exemplo, em Sêneca, Ad Marciam de consolatione, XXI).”
Quanto a Macróbio, o temos citado pelo texto borgiano que se segue em Livro dos Sonhos, que é o Sonhos Caseiros, que nos diz da desimportância dos sonhos prosaicos ou cotidianos, e temos a valorização dos sonhos mais sublimes, lembrando que este autor, por exemplo, da obra Saturnais, escreveu um difundido Comentário ao Sonho de Cipião, capítulo VI da República de Cícero, Macróbio que, por sua vez, era um escritor latino do século V, e temos novamente esta descrição cosmogônica de origem platônica e pitagórica.
E seguindo a primazia de tais sonhos maiores, após na História, temos o mestre de São Tomás de Aquino, que era São Alberto Magno, iniciador da conciliação escolástica entre a filosofia grega e a doutrina cristã, na sua obra Da alma, reforçando a irrelevância dos sonhos menores e elevando os de origem divina. E tal levantamento se baseia bem em Rodericus Bartius, uma das fontes principais do Livro dos Sonhos de Borges.
(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/38375/17/borges-os-sonhos-biblicos-e-mais-descricoes-oniricas