PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 26 de abril de 2018

ODESSEY AND ORACLE

“uma pérola do psicodelismo e do pop barroco britânico”

O disco do The Zombies tem uma história sui generis no mundo do rock, pois foi o canto do cisne de uma banda que não se firmou no fértil cenário da música dos anos 1960. “Odessey and Oracle”, por sua vez, foi o segundo e último disco da banda britânica The Zombies.
A banda começou como uma algo típico do início dos anos 1960, com uma mistura de rhythm’n’blues e blues, da mesma cepa dos The Rolling Stones e dos The Animals, por exemplo. No entanto, o grupo tinha uma herança musical mais clássica, sem a pegada rascante de um The Rolling Stones, de um The Kinks ou de um The Who, por exemplo, o que lhes dificultou o caminho para o sucesso.
A banda, na verdade, durante a sua atividade, não teve singles muito comerciais, e nem, como se diz, “radio friendly”, operando sempre num campo paralelo às bandas citadas, estas que tinham um som mais robusto.
Porém, em meio de tanta novidade musical, mesmo com o relativo sucesso do single “She´s Not There”, a banda passou despercebida a maior parte do tempo, e mesmo sendo uma banda de talento, com bons singles, e um primeiro LP irrepreensível, a banda, digamos, “não aconteceu”.
No meio do ano de 1967 a banda resolve se separar, mas, por exigência da CBS, eles teriam que gravar um segundo álbum, para cumprimento de contrato. E a situação era totalmente inusitada, assim como a história posterior que envolve este álbum.
Agora tínhamos os músicos Argent e White já ensaiando com sua outra banda, Argent, com um registro mais Hard Rock, e o vocalista Blunstone já planejando sua carreira solo. E, em meio destes outros projetos, Odessey and Oracle viria à lume como um trabalho absolutamente livre de pressões mercadológicas, uma vez que o interesse nele era zero, isto é, um álbum de uma banda que já tinha acabado.
Então temos, logo mais, um exemplar bem acabado do que viria a ser chamado de barroque pop, um trabalho musical em que a banda, sem a supervisão da CBS, que já havia entregado os pontos, apenas exigindo o cumprimento do contrato, faz virar um produto em que os músicos da banda puderam ser honestos e sinceros, sem podas de quem quer que fosse, com parte fundamental do álbum sendo feita no mítico estúdio do Abbey Road.
Este cenário anárquico só teve uma exceção, que foi a faixa “A Rose For Emily”, que deveria ter sido acompanhada por um quarteto de cordas, mas que não teve êxito por corte de orçamento da CBS, e então a banda gravou a demo original, só com o piano, que manteve o charme da faixa e uma certa simplicidade acessível.
Gravado em 1967, em pleno “Verão do Amor”, o disco foi finalmente editado em 1968. O fato era que, ninguém ainda sabia, nem sequer tinha notado, mas a banda The Zombies havia realizado uma verdadeira obra-prima para as gerações vindouras.
“Odessey and Oracle” foi um disco feito na sombra, num contexto obscuro. No entanto, já com a banda acabada de fato, aconteceu como que uma luz inesperada, como vindo do nada, que foi a edição da última faixa do disco, “Time of the Season”, em 1969, que vira um hit single que a banda nunca alcançou quando estava em atividade, e o disco ressurge das trevas como uma pérola do psicodelismo e do pop barroco britânico, evocando o melhor da música daquela época como era Pet Sounds, Magical Mystery Tour ou a psicodelia do primeiro Pink Floyd, de Syd Barrett.
O álbum “Odessey and Oracle” tem 12 faixas, abrindo com “Care of Cell 44", com um piano pra cima e com trechos vocais que lembravam um tanto os Beach Boys. Tal piano que continua como destaque em “A Rose for Emily”, seguida de “Maybe After He's Gone", a hipnótica “Beechwood Park", temos ainda "Brief Candles", também a "Hung Up on a Dream", com instrumental mais variado, a estranha “Changes”, a mais pop “I Want Her, She Wants Me", o belo piano em “This Will Be Our Year", mais uma faixa estranha com “Butcher's Tale (Western Front 1914)", seguida de "Friends of Mine", mais curta e também de pegada mais pop.
Por fim, temos a última faixa, que será o hit single tardio "Time of the Season", que é mais um episódio inusitado da feitura e repercussão de “Odessey and Oracle”, que hoje figura como um dos clássicos dos anos 1960 na música.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/38500/14/odessey-and-oracle





segunda-feira, 23 de abril de 2018

GÓNGORA, A PAIXÃO DA METÁFORA

“tal estro poético logo ganhou o nome de gongorismo”

Luís de Góngora y Argote, nascido em Córdoba, sul da Espanha, em 1561, e falecido na mesma cidade em 1627, foi um poeta espanhol do chamado Siglo de Oro das letras espanholas. Góngora será o poeta mais importante da que seria a chamada poesia aguda, e líder da corrente literária autodenominada de cultismo.
Góngora então segue tal estilo rebuscado, de uso acentuado da hipérbole, de metáforas complexas, complicadas e obscuras, também uma poesia que praticava a dubiedade, tal estro poético logo ganhou o nome de gongorismo. A denominação desta poesia de aguda, por sua vez, vinha da paixão da poesia gongórica pela metáfora, e isto se dando ao paroxismo e como uma obsessão por uma linguagem rebuscada e de alta abstração.
O que se denomina o Siglo de Oro era o contexto extraordinário em que se deu a produção artística do século XVII espanhol, pois foi o meio em que nasceu um fenômeno literário único nas letras espanholas, com obras de autores importantes como Quevedo, Lope de Vega, Cervantes e do próprio Góngora.
Góngora tinha então a escrita produzida no castelhano imperial, língua que tinha, por sua vez, ocorrências de helenismo, latinismo, uma língua bem retórica e que também trazia alusões mitológicas. E em 1581, já na corte de Filipe III, Luís de Góngora cria algumas inimizades literárias, sobretudo com Francisco de Quevedo y Villegas, um escritor que pertencia ao conceptismo, que cultuava a sutileza dos conceitos, ao contrário do gongorismo que se voltava para a complexidade da forma poética. Já famoso como poeta em 1585, Góngora é citado por Miguel de Cervantes em La Galatea.
Poesia de profunda abstração intelectual, tal estilo cultista de Góngora passa a ser considerado uma poesia fria e de mau gosto a partir do século XVIII. Como exercício ocioso de uma vida cortesã, passa a ser vista como uma poesia frívola, tendo a poesia aguda sido somente readmitida ao plano crítico somente no século XX, já no contexto do Modernismo. A poesia de Góngora, de um rebuscamento extremo, repelia a presença de leitores vulgares, destinada somente àqueles que tivessem a erudição exigida para a decifração de tais labirintos metafóricos que produziram obras como a Fábula de Polifemo e Galateia e as Soledades.
Por sua vez, na Fábula de Polifemo e Galateia, de 1612, temos a narração de um episódio mitológico descrito no livro XIII das Metamorfoses de Ovídio : os amores do ciclope Polifemo pela ninfa Galateia. A versão gongórica de tal mito nos vem, por sua vez, com uma complexidade de recursos estilísticos, com latinismos, figuras de linguagem de alta elaboração, e uma grande ocorrência de referências da mitologia grega e clássica.

POEMAS :

FÁBULA DE POLIFEMO E GALATEIA

I : Este poema abre já no culto de Talia, musa da poesia ligeira, no que temos : “Estas que me ditou rimas sonoras,/culta embora bucólica Talia,”. O ditado é de rimas sonoras, o poema é fluido, como Talia, no que se vê, então :  “Em que a alva é rosas, rosicler o dia,” (...) “Ouve-as, que minha avena principia,/Se já os muros não te veem de Huelva/Pentear o vento, fatigar a relva.”. A visão bucólica reina neste começo de fábula.
II : O pássaro emerge, e o poema se abre tal qual :“Pronto alise do amestrador na mão/O generoso pássaro sua pluma,” (...) “Tascando o freio de ouro alveje-o então/Do cavalo andaluz a ociosa espuma;/Gema o lebrel em seu cordão de seda/E à trompa enfim a cítara suceda.”. Neste poema, que dá seguimento à fábula, mais uma vez temos uma descrição rápida e curta, em que o falcão está pronto para caçar, embora se queira que a cítara (poesia) possa suceder a trompa (caça), o que o poema esperançoso nos aponta, ao fim.
III : O poema segue contando a fábula, e logo nos apresentará o personagem central, no que temos : “Dá trégua ao exercício teu robusto,/Ócio atento, silêncio doce, enquanto/Debaixo escutas de dossel augusto/Do músico alto e forte o fero canto.” (...) “Teu nome escutarão os fins do mundo.”. Portanto, Polifemo aqui já nos aparece, este que é o músico alto e forte, cuja fama ecoa não inferior ao som do clarim da poesia.
VI : Na gruta está Polifemo, este que conduz seu rebanho, nos ásperos cumes dos montes, Polifemo é o pastor desta sua grei de cabras, no que segue : “Daquele formidável pois da terra/Bocejo, o melancólico vazio/A Polifemo, horror daquela serra,/Bárbara choça é, pouso sombrio” (...) “Grei de cabras esconde : cópia bela,/Que um silvo junta e que um penhasco sela.”. A fábula nos dá agora o mundo em que está inserido o músico e pastor Polifemo.
VII : Aqui temos o ciclope, Polifemo, e que era obedecido até pelo mais valente pinheiro, no que temos : “Um monte era de membros eminente” (...) “Ciclope, a quem pinheiro o mais valente,/Bastão lhe obedecia tão ligeiro,/E ao grave peso junco tão delgado,/Que um dia era bastão e outro cajado.”. Por fim, o ser filho feroz de Netuno, de um olho, tem seu poder de gigante.
VIII : Aqui temos a descrição física do gigante, do ciclope, de Polifemo, no que segue : “Negro o cabelo, imitador undoso/Das tão obscuras águas do Leteu,” (...) “Voa sem ordem, pende sem asseio;/Caudal é a sua barba impetuoso,/Que (adusto filho deste Pireneu)/Seu peito inunda, ou tarde, ou mal, ou em vão/Sulcada só dos dedos de sua mão.”. Temos aqui imagens como o do Lete, rio dos mortos, ciclope que aqui é impetuoso, a descrição é então grandiosa.
XII : Aqui temos então a descrição da música poderosa de Polifemo, que altera o mar e rompe o caracol de Tritão, no que segue : “Cera e cânhamo uniu (que não devera)/Cem canas, cujo bárbaro ruído,/De mais ecos que uniu cânhamo e cera” (...) “A selva se confunde, o mar se altera,/Rompe Tritão seu caracol torcido,/Surdo foge o baixel a vela e remo :/Assim é a música de Polifemo!”. Eis, mais uma vez, a descrição desproporcional deste gigante de um olho, do ciclope que altera o mar com a sua música.
XIII : Agora a fábula nos apresenta Galateia, esta que reúne em si as três Graças, filha de Dóris, ninfa, também pavão de Vênus e cisne de Juno, no que segue : “Ninfa, de Dóris filha, e entre as mais bela,/Adora, que já viu o reino da espuma./Galateia é seu nome, e doces nela/Vênus as Graças três junta em só uma.” (...) “Pavão de Vênus é, cisne de Juno.”. A descrição é sublime, e coloca a ninfa no cume da graciosidade.
XVI : Palemo é o jovem do mar, mas Galateia não lhe concede o seu favor, embora nos desdéns o atinja menos do que a Polifemo, no que segue : “Jovem do mar, fontes cerúleas tens,/E as cinges de coral tenro, ó Palemo,” (...) “se nos desdéns/Perdoado algo mais que Polifemo,/Pela que, mal te ouviu, calçada plumas,/Tantas flores pisou como tu espumas.”. A fábula segue seu tom de encantamento, na descrição precisa deste mito.
XVII : Aqui temos a descrição da fuga da ninfa, na sua carreira longe do enamorado, e segue ligeira, no que temos : “Foge a bela; e bem quer ser o marino/Amante nadador, deixando a esteira,” (...) “Mas que dente mortal, que metal fino/Poderá a fuga suspender ligeira/Que o desdém solicita? Ó, quanto erra/Delfim que segue n`água corça em terra!”. A fábula aqui se mantém como uma descrição do mito em detalhes, e que Góngora nos proporciona com sua mestria metafórica.

POEMAS :

FÁBULA DE POLIFEMO E GALATEIA

I
Estas que me ditou rimas sonoras,
culta embora bucólica Talia,
Ó excelso Conde, nas purpúreas horas
Em que a alva é rosas, rosicler o dia,
E quando com áurea luz Niebla decoras,
Ouve-as, que minha avena principia,
Se já os muros não te veem de Huelva
Pentear o vento, fatigar a relva.

II
Pronto alise do amestrador na mão
O generoso pássaro sua pluma,
Ou tão mudo na alcandora, que em vão
Até o guiso desmentir presuma;
Tascando o freio de ouro alveje-o então
Do cavalo andaluz a ociosa espuma;
Gema o lebrel em seu cordão de seda
E à trompa enfim a cítara suceda.

III
Dá trégua ao exercício teu robusto,
Ócio atento, silêncio doce, enquanto
Debaixo escutas de dossel augusto
Do músico alto e forte o fero canto.
Com as Musas hoje alterna o gosto justo,
Que caso a minha possa ofertar tanto
Clarim – e à própria fama não segundo –
Teu nome escutarão os fins do mundo.

VI
Daquele formidável pois da terra
Bocejo, o melancólico vazio
A Polifemo, horror daquela serra,
Bárbara choça é, pouso sombrio
E espaçoso redil no qual encerra
Quanta dos montes o áspero feitio
Grei de cabras esconde : cópia bela,
Que um silvo junta e que um penhasco sela.

VII
Um monte era de membros eminente
Este (que, de Netuno fero herdeiro
Com um olho ilustra a testa, esse orbe ingente,
Êmulo quase do maior luzeiro)
Ciclope, a quem pinheiro o mais valente,
Bastão lhe obedecia tão ligeiro,
E ao grave peso junco tão delgado,
Que um dia era bastão e outro cajado.

VIII
Negro o cabelo, imitador undoso
Das tão obscuras águas do Leteu,
Ao vento que o penteia proceloso,
Voa sem ordem, pende sem asseio;
Caudal é a sua barba impetuoso,
Que (adusto filho deste Pireneu)
Seu peito inunda, ou tarde, ou mal, ou em vão
Sulcada só dos dedos de sua mão.

XII
Cera e cânhamo uniu (que não devera)
Cem canas, cujo bárbaro ruído,
De mais ecos que uniu cânhamo e cera
Alboques, duramente é repetido.
A selva se confunde, o mar se altera,
Rompe Tritão seu caracol torcido,
Surdo foge o baixel a vela e remo :
Assim é a música de Polifemo!

XIII
Ninfa, de Dóris filha, e entre as mais bela,
Adora, que já viu o reino da espuma.
Galateia é seu nome, e doces nela
Vênus as Graças três junta em só uma.
São uma e outra luminosa estrela
Luzentes olhos de sua branca pluma :
Se rocha de cristal não é de Netuno,
Pavão de Vênus é, cisne de Juno.

XVI
Jovem do mar, fontes cerúleas tens,
E as cinges de coral tenro, ó Palemo,
Rico de quantos a água engendra bens
Do Faro odioso ao promontório extremo;
Porém na graça igual, se nos desdéns
Perdoado algo mais que Polifemo,
Pela que, mal te ouviu, calçada plumas,
Tantas flores pisou como tu espumas.

XVII
Foge a bela; e bem quer ser o marino
Amante nadador, deixando a esteira,
Já que não áspide ao seu pé divino,
Dourado pomo a sua veloz carreira;
Mas que dente mortal, que metal fino
Poderá a fuga suspender ligeira
Que o desdém solicita? Ó, quanto erra
Delfim que segue n`água corça em terra!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/38448/17/gongora-a-paixao-da-metafora