PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O HOMEM VITRUVIANO


“na bússola que sonha, delírio é poesia”

Numa garganta diabólica se faz o Homem, este ente que não se reduz ao solo de um ser inanimado, embora seja pó quando confrontado com a morte. Seu sonho rutila como foice e trabalho duro que se expande no cosmos e na mente universal, logo eu que sou poeta teria que contar-lhes do destino cósmico, como um grande som que faz melodia na escalada do tempo infinito, como um pássaro que vê luz e sombra, mas não perde o voo.
Assinatura dos artistas em suas pinturas, eu vi em um grau violento os ângulos da visão filosofal, em termos que o notório saber se anulava frente ao dom místico e visionário que somente a poesia em seu ébrio fardo poderia nos decifrar sua simbologia, é o dom do ocultismo que revela as águas de Caronte, os vinhos que não se detêm no mar dos mortais, eu tinha uma velha arma de brinquedo que eu trazia no meu colo quando eu era ladrão, e minha ideia de luta era um nariz quebrado.
Eu deleitava os chifres de um diabo azul, eu carregava em vermelho as astúcias de uma dose de uísque quando derretia o gelo. Lá na pedra ametista remava com langor o santo beberrão que idolatrava o anjo caído dos sóis, leve como a pluma um vingador lutava também, com a cara na areia, seu deserto intelectual, seu academicismo que era deglutido pelo mundo cão das efervescências de álcool e patifes.
Dentro do proscênio andava a diva dos horrores, pintava a cara de rosa, como uma feiticeira olhava ao derredor, era casta, embora na galhofa se portasse qual prima-dona. Uma ópera se enegrecia no campo do fastio, o solo seco em que o vinho indócil descia era feito dos ossos de antepassados que nos velhos trágicos de Ésquilo vestiam-se de embriaguez e máscara.
Ali, perto do Oriente, dravidianos faziam um ensaio do Mahabarata, velhos lemas contorciam-se no barato transcendental de um soma pré-Huxley. Eu cantava de gaiato um pouco desta concórdia besta de estar impressionado com a natureza e a paisagem, um futuro se abrindo como um leque florido e cheio de vivo calor, somente quando eu entrava em transe é que era possível ver o fantasma que morava dentro da poesia de salão, um meneio de menina rosa somava-se ao caos que o trabalho ajudava a desenhar naquele átrio de pedra.
Um cachorro cego e louco latia com estribilho rouco, eu disse ao dono da banca de jornal ali perto que o dono deste cão deveria estar preso, um homem vitruviano e renascentista do futuro não poderia tolerar violência contra o cachorro louco, era contra a paz urbana que reinava na manhã de domingo quando eu lia na página de cultura que um poeta havia passado por uma prova de fogo, saía da lama e do lodaçal e agora vivia num jardim com seus gnomos cantando alegria do lótus e mantras da era de aquário, ele e seus bobos cantores subiam a montanha para se embriagar de vinho e ver na estrela vésper talvez um disco solar ou uma nave vinda de órion ou do portal que um médium de umbanda havia psicografado na noite de sexta na festa de exu.
Depois deste conhecimento oculto travado com os dravidianos, se costumava ter uma certa memória fictícia de um tibet longínquo ou ainda de Rama, mas mesmo no maior do silente campo, nada superava a dinastia atlante depois das colunas de hércules, sete sábios e um livro do sol em que as coordenadas já estavam postas, o dom da profecia estalava naquele sol vermelho após o dilúvio. As bruxas do mar já dançavam, e as sereias ainda viviam naquele mar de arquipélago em que creta ainda reinava. Somente o capitão fenício tinha rompido as fronteiras em direção ao sol marroquino e a uma cartago que ainda balbuciava nas primeiras casas de terra marrom.
O mapa que tinha o sol ao centro agora, neste mundo contemporâneo, invadia-se de sinais de rádio, de sons de vidas conectadas, elétrico sonho de hiperlink, o sonho faustoso dos programadores cobol, as sinapses virando-se em máquinas em busca da imortalidade, o delírio subatômico e a eterna busca da teoria de tudo, um certo rancor capitalista de injustiça e sonhos derrotados, uma grande miséria rondando o progresso técnico, e o fim da linha para uma sociedade que produz lixo.
Na beira do precipício vira o milênio o homem vitruviano, este que para visionários tem o espírito completo, é uma luz búdica, e que diante da técnica não se satisfez em ter o dom da luz, mas quer se unir ao seu maquinário para ser um ser híbrido, confrontando seu espírito imortal, seu corpo finito, e sua mescla robótica e sua memória que poderá virar um chip dentro do circuito da imortalidade eletrônica. O futuro estará em mãos androides, um fundo distópico sempre realizado em cibercultura, o hiperlink da memória produzirá um super-ser, não mais homem, não mais máquina, este que tinha o dom da luz, e agora tem como que um sonho de golem para conquistar a natureza que lhe destruirá, o homem vitruviano que perderá seu ângulo com a natureza, e como homem decaído, será levado pelo caos climático deste seu sonho de indústria e máquina.
Corta agora para cá, a cinemática romperá a febre do milênio, novos remédios, novas aventuras, abre-se a estrada do sol, como em toda road trip, um poeta e alguns loucos, um filósofo e um cientista, um monge e um ébrio. Abre esta carta náutica, temos dois pólos, uma linha equatorial, eu espero sinceramente que o feitiço que produziu o universo tenha um bom dom de revelar talentos quando tudo está perdido, e o dom da poesia nos faça sol em meio da tempestade, eu rimava bem como um furto, eu ia bem antes do surto, mas não tem tempo de lamento, tem tempo de razão, e minha mira já derrubou diabos e pobres diabos, tenho em mim várias cores em que firmo meu diapasão, e na bússola que sonha, delírio é poesia.
Acerta teu contrato com o editorial do dia, o julgamento político atingirá os carreiristas, os afortunados passarão por provação, já ligo os pontos que um idiota tentará se eleger, em vão, o dia brilha e o sol é justo, vamos em frente com toda a rotina, as cartas estão na mesa e na manga, tira um coelho e mata dois coelhos, tira um ás e guarda teu coringa, um diabo faz guerra, um anjo traz paz, entre os demônios da roda de sangue, a guerra acaba, e a paz mais funda tem poema que lhe dê a forma, que é a forma do riso, poema que enforma, a forma alegre, o dom de ser feliz.
Mas, não fique aí, este teu lamento é de poetas que se suicidam, não seja um poeta triste, se és um homem vitruviano, você, homem e mulher, trans ou o que quiser, teu dom já vem todo inteiro, como Buda, já temos tudo, o dom de ser é que já temos, e nada mais importa, viverá mais quem for ver que tudo cabe em um mundo mais justo, o mundo cão dos injustos cairá, nada restará aos porcos do sistema, vejo luz em vocês, cada um ao seu tempo, como uma orquestra ou big band que se inspira com o raio do sol.
Segue aqui o último trecho do poema :

TEMPO SOLAR :

Eis que tudo é ritmo, eu sei, eu sei,
Acendo um cigarro ou um charuto
e parece sempre tudo a mesma coisa,
mas nem toda revolução se dá no susto,
o território a se tomar muitas vezes
tem o tempo, este mestre, para
nos dar a razão com que sempre
sonhamos.

(POEMA EM PROSA)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.













 




GREGÓRIO DE MATOS GUERRA E A REVISÃO CRÍTICA

“A leitura anacrônica vendendo um poeta dissipado consumou esta insciência tendenciosa”

Gregório de Matos Guerra é um poeta que começou a ser analisado através da polêmica, o que é uma crítica lamentável do que se quer como análise ou crítica literária séria ou madura, pois o termo polêmico é usual na boca de inscientes que nunca souberam que o senso crítico de um poeta ou artista não são exatamente sinal de polêmica, mas de inteligência na sua forma angulosa, feita para o combate.
O poeta nasceu e cresceu em família abastada, o que lhe deu condições de estudar e ter um diploma, algo bem distinto e um privilégio no cenário social que cercava o poeta no século XVII. E a crítica bisonha que erigiu a imagem do poeta polêmico durou pelo menos três séculos.
E o desastre da crítica se consolidou entre dois extremos da burrice : a imagem que colocava o poeta como imoral ou a da imagem idealizada de um gênio inigualável na poesia brasileira. A leitura anacrônica vendendo um poeta dissipado consumou esta insciência tendenciosa em que a polêmica toma o lugar das letras, o que nunca foi verdade.
Nas últimas décadas temos uma correção feliz de rumo sobre o que se entende da pessoa e do poeta Gregório, pois a caricatura perde lugar e ganhamos um poeta que tinha rigor em obedecer as normas vigentes da produção poética e literária de seu tempo. A dimensão que tomou a poesia de Gregório sempre foi em sentido de unir a vida e a obra numa unidade rígida, isto é, o poeta vivido era reflexo direto do poeta escrito.
E temos aqui claro que a produção poética do século XVII tinha uma característica coletiva, pois as obras eram produzidas coletivamente, o que coloca Gregório em parceria provável com vários escritores de seu tempo. O extremo da categoria gênio, tão mal utilizada em todos os tempos e hoje tão banalizada que leva ao constrangimento, o poeta Gregório também foi vítima deste tipo de romantização e mistificação, temos então que tal categoria de gênio se tornou uma expressão preguiçosa e temerária.
Por sua vez, há uma divisão em que o fenômeno de plágio dos poetas espanhóis por Gregório é negada, pois o poeta seguia padrões de composição coletivamente organizados, uma vez que tal associação com poetas de outras vertentes ou nacionalidades seria uma concepção talvez insuficiente para a crítica renovada produzida em relação ao poeta, devido ao que se sabe hoje que a sátira, por exemplo, tem um caráter público, mas que mantém uma composição de engenho, pois ser poesia agradável não isenta a responsabilidade poética de ser relevante, daí que o caráter público não é gratuito, mas dentro das regras que se davam entre os poetas da daquele século XVII em que vivia Gregório.
O caráter coletivo que inunda a poesia de Gregório tem sua consolidação na obra de João Adolfo Hansen, este que se estendeu na exploração do material do poeta em arquivos físicos diversos, e o cruzamento destas informações revela uma linha de ambientes e gêneros poéticos, o que revela um modo poético próprio que havia no contexto social e literário em que viveu o poeta, e tal é o caráter coletivo de tal produção que o próprio poeta se evanesce e sua materialidade é apenas um nome, fonte que é originária na organização de arquivos que formam o códice de James Amado.
No século XVII temos então a produção coletiva de poesia baseada em disputas que eram feitas pela elite colonial, as reuniões eram intensas e os versejadores participavam de torneios que passavam por temas e nomes dos mais diversos. Não havia muita preocupação com a autoria dos versos, pois muito do que se produzia se escrevia à mão e de memória, e a circulação e divulgação deste material ia por meio de folhas volantes que alcançavam leitores muito além do círculo da elite colonial.

POEMAS :

TORNA O POETA A INSTAR SEGUNDA VEZ. : O poeta insta a colocar seu amor esbelto numa flor, e ele, bem ladino, faz a corte, no que vem : “Bela Floralva, se Amor/me fizera abelha/um dia,/todo esse dia estaria/picado na vossa flor :”. E segue : “Se eu fora a vosso vergel,/e na vossa flor picara,/um favo de mel formara/mais doce, que o mesmo mel :/mas como vós sois cruel,/e de natural castiço/deixais entrar no caniço/um Zangano comedor,/que vos rouba o mel, e a flor,/e a mim o vosso cortiço.”. E o poeta, bem medido em ironia, tem um jogo de rima, cai mel e vê sua amada cruel, coloca a coda como um toque final de queixa suave.

A MESMA CUSTODIA MOSTRA A DIFFERENÇA QUE HÁ ENTRE AMAR, E QUERER. : O poeta aqui usa seu engenho para fazer a distinção entre querer e amar, numa tentativa de definir tais faculdades como um contraste, no que vem : “Sabei, Custódia, que Amor/inda que tirano, é rei,/faz leis, e não guarda lei,/qual soberano Senhor.”. E o poeta se atrai, em direção ao seu anelo, no que tem : “Que vossa boca tão bela/tanto a amar-vos me provoca,”. E o amor aqui ganha uma certa languidez própria do apaixonado que canta : “Dera-vos pouco cuidado/então ser eu vosso assim,/e anda hoje para mim/vós, e o mundo concertado./Mas eu amo sem confiança/nos prêmios do pertendente,/amo-vos tão puramente,/que nem peco na esperança./Beleza, e graciosidade/rendem à força maior,/mas eu se vos tenho amor,/tenho amor, e não vontade.”. Pois, agora, o poeta força a sua distinção, tentando se convencer de sua correção, de que ama mais do que quer, o que julgo indiscernível, mas o poeta quer seus escaninhos, no que vem : “Amar, e querer, Custódia;/soam quase o mesmo fim,” (...) “Quem diz, que quer, vai mostrando,/que tem ao prêmio ambição,/e finge uma adoração/um sacrilégio ocultando.” (...) “Quão generoso parece/o contrário amor : pois quando/está o rigor suportando,/nem penas crê, que merece./Amar o belo é ação/que toca ao conhecimento/ame-se co entendimento,/sem outra humana paixão.”. Seu esforço conceitual é comovente, e o poema defende sua tese até o fim, no que vem : “Amor ama, amor padece/sem prêmio algum pertender,/e anelando a merecer/não lhe lembra, o que merece./Custódia, se eu considero,/que o querer é desejar,/e amor é perfeito amar,/eu vos amo, e não vos quero./Porém já vou acabando,/por nada ficar de fora/digo, que quem vos adora,/vos pode estar desejando.”. O poema se encerra neste anelo que se julga próprio do amor, e é.

FINGINDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES, SIGNALANDOLHES OS VÍCIOS, EM QUE ALGUNS DELLES SE DEPRAVAVÃO. : O poema faz estribilho com a justiça de El-Rei, e seus versos são uma pancada, no que vem : “Uma cidade tão nobre,/uma gente tão honrada/veja-se um dia louvada/desde o mais rico ao mais pobre :/Cada pessoa o seu cobre,/mas se o diabo me atiça,/que indo a fazer-lhe justiça,/algum saia a justiçar,/não me poderão negar,/que por direito, e por Lei/esta é a justiça, que manda El-Rei.”. O poema cumpre sua ironia e sarcasmo rascantes, Gregório não economiza aqui veneno e inoculação, e deprava até a donzela, no que vem : “A Donzela embiocada/mal trajada, e mal comida,/antes quer na sua vida/ter saia, que ser honrada :/à pública amancebada/por manter a negra honrinha,/e se lho sabe a vizinha,/e lho ouve a clerezia/dão com ela na enxovia,/e paga a pena da lei :/ esta é a justiça, que manda El-Rei./A casada com adorno,/E o Marido mal vestido,/Crede, que este mal Marido/penteia monho de corno :/se disser pelo contorno,/que se sofre a Fr. Tomás,/por manter a honra o faz,/esperai pela pancada,/que com carocha pintada/de Angola há de ser Visrei :/esta é a justiça, que manda El-Rei.”. E o poeta-carrasco continua seu périplo, e o poema ganha tônus crítico avassalador, em que a honra é destituída por mandriões e cambalachos, no que vem : “O Clérigo julgador,/que as causas julga sem pejo,/não reparando, que eu vejo,/que erra a Lei, e erra o Doutor :/quando veem de Monsenhor/a Sentença Revogada/por saber, que foi comprada/pelo jimbo, ou pelo abraço,/responde o Juiz madraço,/minha honra é minha Lei :/esta é a justiça, que manda El-Rei.”. O poema então faz a sua sátira final, e o golpe é dado, a hipocrisia religiosa, aqui de medíocres tartufos, na verdade aqui em puteiros, fora da órbita com suas pulsões, revela a decadência, e o poema dá a marretada, no que vem : “Se virdes um Dom Abade/sobre o púlpito cioso,/não lhe chameis Religioso,/chamai-lhe embora de Frade :/e se o tal Paternidade/rouba as rendas do Convento/para acudir ao sustento/da puta, como da peita,/com que livra da suspeita/do Geral, do Viso-Rei :/esta é a justiça, que manda El-Rei.”. E o estribilho em coda aqui cumpre o protocolo de que o poeta se serve para fazer seu intento crítico e mordaz.

TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE. : O poema, bem esquemático, e nas minhas palavras burocrático, tem uma estrutura rija, e repete tudo com o rigor chato que este poema pretende ter, no que vem : “Que falta nesta cidade? ......... Verdade/Que mais por sua desonra ....... Honra/Falta mais que se lhe ponha ......... Vergonha./O demo a viver se exponha,/por mais que a fama a exalta,/numa cidade, onde falta/Verdade, Honra, Vergonha./Quem a pôs neste socrócio? ........... Negócio/Quem causa tal perdição? ........... Ambição/E o maior desta loucura? ............. Usura./Notável desaventura/de um povo néscio, e sandeu,/que não sabe, que o perdeu/Negócio, Ambição, Usura.”. O esquema aqui se repete ad nauseam, pior do que estribilho mal comportado, e o poema ganha proporção de letra estudada e não espontânea, no que vem : “E que justiça a resguarda? ............... Bastarda/É grátis distribuída? ............................. Vendida/Quem tem, que a todos assusta? ........ Injusta./Valha-nos Deus, o que custa,/o que El-Rei nos dá de graça,/que anda a justiça na praça/Bastarda, Vendida, Injusta./Que vai pela clerezia? ................... Simonia/E pelos membros da Igreja? .............. Inveja/Cuidei, que mais se lhe punha? ......... Unha./Sazonada caramunha!/enfim que na Santa Sé/o que se pratica, é/Simonia, Inveja, Unha.” . Mais uma vez o poeta se salva na crítica clerical, mas o esquema continua, e fere os ouvidos de maneira tosca, num jogo de rima que se acode ao fim de estrofes que terminam como matracas, desagradável, pois : “A Câmara não acode? ............. Não pode/Pois não tem todo o poder? ........ Não quer/É que governo a convence? .......... Não vence./Quem haverá que tal pense,/que uma Câmara tão nobre/por ver-se mísera, e pobre/Não pode, não quer, não vence.”. O poema é todo esquemático, nada natural, mas ainda se detém em certo senso crítico, talvez o que lhe salva.

POEMAS :

TORNA O POETA A INSTAR SEGUNDA VEZ.

Bela Floralva, se Amor
me fizera abelha um dia,
todo esse dia estaria
picado na vossa flor :
e quando o vosso rigor
quisestes dar-me de mão
por guardar a flor, então
tão abelhudo eu andara,
que em vós logo me vingara
com vos meter o ferrão.

Se eu fora a vosso vergel,
e na vossa flor picara,
um favo de mel formara
mais doce, que o mesmo mel :
mas como vós sois cruel,
e de natural castiço
deixais entrar no caniço
um Zangano comedor,
que vos rouba o mel, e a flor,
e a mim o vosso cortiço.

A MESMA CUSTODIA MOSTRA A DIFFERENÇA QUE HÁ ENTRE AMAR, E QUERER.

Sabei, Custódia, que Amor
inda que tirano, é rei,
faz leis, e não guarda lei,
qual soberano Senhor.

E assim eu quando vos peço,
que talvez vos chego a olhar,
as leis não posso guardar,
que temos de parentesco :

Que vossa boca tão bela
tanto a amar-vos me provoca,
que por lembrar-me da boca,
me esqueço da parentela.

Mormente considerada
vossa consciência algum dia,
que nenhum caso faria
de ser filha, ou enteada.

Dera-vos pouco cuidado
então ser eu vosso assim,
e anda hoje para mim
vós, e o mundo concertado.

Mas eu amo sem confiança
nos prêmios do pertendente,
amo-vos tão puramente,
que nem peco na esperança.

Beleza, e graciosidade
rendem à força maior,
mas eu se vos tenho amor,
tenho amor, e não vontade.

Como nada disso ignoro,
quisera, pois vos venero,
que entendais, que vos não quero,
e saibais, que vos adoro.

Amar, e querer, Custódia;
soam quase o mesmo fim,
mas diferem quanto a mim,
e quanto à minha paródia.

O querer é desejar,
a palavra o está expressando :
quem diz quer, está mostrando
a cobiça de alcançar.

Vi, e quis, segue-se logo,
que o meu coração aspira
o lograr o bem, que vira,
dando à pena um desafogo.

Quem diz, que quer, vai mostrando,
que tem ao prêmio ambição,
e finge uma adoração
um sacrilégio ocultando.

Vil afeto, que ao intento
foge com néscia confiança,
pois guia para a esperança
os passos do rendimento.

Quão generoso parece
o contrário amor : pois quando
está o rigor suportando,
nem penas crê, que merece.

Amar o belo é ação
que toca ao conhecimento
ame-se co entendimento,
sem outra humana paixão.

Quem à perfeição atento
adora por perfeição
faz, que a sua inclinação
passe por entendimento.

Amor generoso tem
o amor por alvo melhor
sem cobiça, ao que é favor,
sem temor, ao que é desdém.

Amor ama, amor padece
sem prêmio algum pertender,
e anelando a merecer
não lhe lembra, o que merece.

Custódia, se eu considero,
que o querer é desejar,
e amor é perfeito amar,
eu vos amo, e não vos quero.

Porém já vou acabando,
por nada ficar de fora
digo, que quem vos adora,
vos pode estar desejando.

FINGINDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES, SIGNALANDOLHES OS VÍCIOS, EM QUE ALGUNS DELLES SE DEPRAVAVÃO.

Uma cidade tão nobre,
uma gente tão honrada
veja-se um dia louvada
desde o mais rico ao mais pobre :
Cada pessoa o seu cobre,
mas se o diabo me atiça,
que indo a fazer-lhe justiça,
algum saia a justiçar,
não me poderão negar,
que por direito, e por Lei
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Fidalgo de solar
se dá por envergonhado
de um tostão pedir prestado
para o ventre sustentar :
diz, que antes o quer furtar
por manter a negra honra,
que passar pela desonra,
de que lhe neguem talvez;
mas se o virdes nas galés
com honras de Vice-Rei,
esta é a justiça, que manda El-Rei.

A Donzela embiocada
mal trajada, e mal comida,
antes quer na sua vida
ter saia, que ser honrada :
à pública amancebada
por manter a negra honrinha,
e se lho sabe a vizinha,
e lho ouve a clerezia
dão com ela na enxovia,
e paga a pena da lei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

A casada com adorno,
E o Marido mal vestido,
Crede, que este mal Marido
penteia monho de corno :
se disser pelo contorno,
que se sofre a Fr. Tomás,
por manter a honra o faz,
esperai pela pancada,
que com carocha pintada
de Angola há de ser Visrei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

Os Letrados Peralvilhos
citando o mesmo Doutor
a fazer de Réu, o Autor
comem de ambos os carrilhos :
 se se diz pelos corrilhos
sua prevaricação,
a desculpa, que lhe dão,
é a honra de seus parentes
e entonces os requerentes,
fogem desta infame grei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Clérigo julgador,
que as causas julga sem pejo,
não reparando, que eu vejo,
que erra a Lei, e erra o Doutor :
quando veem de Monsenhor
a Sentença Revogada
por saber, que foi comprada
pelo jimbo, ou pelo abraço,
responde o Juiz madraço,
minha honra é minha Lei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento :
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se lhe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz, que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

A Viúva autorizada,
que não possui um vintém,
porque o Marido de bem
deixou a casa empenhada :
ali vai a fradalhada,
qual formiga em correição,
dizendo, que à casa vão
manter a honra da casa,
se a virdes arder em brasa,
que ardeu a honra entendei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

O Adônis da manhã,
O Cupido em todo o dia,
que anda correndo a Coxia
com recadinhos da Irmã :
e se lhe cortam a lã,
diz, que anda naquele andar
por a honra conservar
bem tratado, e bem vestido,
eu o verei tão despido,
que até as costas lhe verei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

Se virdes um Dom Abade
sobre o púlpito cioso,
não lhe chameis Religioso,
chamai-lhe embora de Frade :
e se o tal Paternidade
rouba as rendas do Convento
para acudir ao sustento
da puta, como da peita,
com que livra da suspeita
do Geral, do Viso-Rei :
esta é a justiça, que manda El-Rei.

TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE.

1 Que falta neta cidade? ......... Verdade
Que mais por sua desonra ....... Honra
Falta mais que se lhe ponha ......... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

2 Quem a pôs neste socrócio? ........... Negócio
Quem causa tal perdição? ........... Ambição
E o maior desta loucura? ............. Usura.

Notável desaventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

3 Quais são os seus doces objetos? ........ Pretos
Tem outros bens mais maciços? ............... Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? ............. Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

4 Quem faz os círios mesquinhos? .............. Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas? ...................... Guardas
Quem as tem nos aposentos? ...................... Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.

5 E que justiça a resguarda? ............... Bastarda
É grátis distribuída? ............................. Vendida
Quem tem, que a todos assusta? ........ Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

6 Que vai pela clerezia? ................... Simonia
E pelos membros da Igreja? .............. Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha? ......... Unha.

Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.

7 E nos Frades há manqueiras? ........... Freiras
Em que ocupam os serões? ................. Sermões
Não se ocupam em disputas? ................ Putas.

Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.

8 O açúcar já se acabou? ................. Baixou
E o dinheiro se extinguiu? ................ Subiu
Logo já convalesceu? ........................ Morreu.

À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.

9 A Câmara não acode? ............. Não pode
Pois não tem todo o poder? ........ Não quer
É que governo a convence? .......... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/gregorio-de-matos-guerra-e-a-revisao-critica       


domingo, 28 de outubro de 2018

HARE KRISHNA

O Eu Sou diz namastê
e toca oh my sweet lord
de George Harrison,

faço minha meditação transcendental,
as flores são mais altas e belas
quando o profundo interior
eclode do pântano da raiva,
o otimismo retorna
e o cheiro da morte
se afasta um tanto,

penúria, a indesejável,
hoje é a tristeza,
esta leprosa
que ameaça
os risos da alegria,

O Eu Sou não vende a felicidade,
este é o contemporâneo
querendo entender toda a História,
não entendeu,
o que Krishna nos dá
é entendimento e força,
feliz e alegre
é quem é o que é,
felicidade ideal
nunca é triste e mente,
Krishna oh my sweet lord,
é a verdade, aleluia, loas
ao senhor do universo.

27/10/2018 Gustavo Bastos

PEQUENO COROLÁRIO DA ARTE

Com sede filosófica se ergue
o tal conceito das coisas,
um autor que se preze
deixa seu preâmbulo
bem azeitado,
para sentar pua
na fundamentação.

Fico zonzo ao ver o budismo
esturricado de Schopenhauer,
as voltas enfadonhas
em ser e tempo
para verificar
por todos os ângulos
as cagalhufas do utensílio,
um ser que existe
e é responsável
se destina ao nada,
Sartre nos oferece,
eis o desespero
que explode então
com Cioran,
o profeta do suicídio,
falo desta filosofia pessimista,
que tem em Kierkegaard
seu fundador,
e que se arrebenta
com ser para a morte
em potente angústia
de fundação heideggeriana,

quando haverá a filosofia
do otimismo?
seria necessário ao homem
ser tanto pleno como imortal,
no entanto, como isto é sonho,
quem delira em tais coisas
é a arte, com a poesia
fazendo sua ceninha
do belo para
consolar o mundo,
o que a religião também faz,
mas não com prazer,
mas como estatuto da verdade,
o que volta ao sofrimento
e diz que vem do pecado,
e voltamos ao mantra budista
que se espatifa
e nos dá o êxtase
como escape,
voltemos à arte!

27/10/2018 Gustavo Bastos