PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 22 de maio de 2016

W.B.YEATS, O MAIOR POETA DE LÍNGUA INGLESA DO SÉCULO XX – PARTE IV

“Yeats, além da sabedoria, conquistou e construiu uma obra inigualável, romântica e moderna”

Chegamos enfim aos poemas da grande fase da maturidade, contidos principalmente nos volumes A Torre (1928) (já citado na matéria anterior) e A escada em espiral e outros poemas (1933). Neste livro, Yeats, já com um fôlego renovado e outra abordagem de poesia, sentiu a necessidade de reformular os pontos de vista expressos em “Velejando para Bizâncio”, e o resultado foi “Bizâncio”, onde o antigo ideal é apresentado com viés espiritual, ao contrário de suas preocupações estéticas do período anterior.
Neste poema “Bizâncio” temos uma perspectiva que se apresenta como algo além, isto é, o mundo após a morte, simbolizada pelo “grande gongo em catedral”. Reproduzindo fielmente os elementos do poema anterior, Yeats faz a descrição do contato da alma desencarnada com os instrutores do além (“paira uma imagem ante mim, homem ou sombra”), e ainda temos a perfeição da beleza (novamente relacionada com o pássaro dourado) e a purificação da consciência (“um flamejar que nem sequer chamusca a manga”).
Mas, no final, o poeta exulta não com o mundo espiritual, mas sim comunga junto ao  mar que parece querer invadi-lo, que é o mar do tempo, atormentado pelo “gongo” da vida a anunciar a reencarnação, eis o tempo como ciclo, ruptura, viagem. E aqui, também, a valorização do conflito, “das complexidades que há no sangue ou lama”, uma fonte inesgotável de confronto demasiado humano, muito distante do ideal espiritual, que nos coloca mais jogado ao mar do que num sossego paradisíaco, pois tanto o mar como as chamas da consciência nos dão a vida como ela é, no velho confronto de Yeats entre sonho e realidade, que conduziu grande parte de sua obra de poesia.
O surpreendente em Yeats nessa sua idade final é o apego à vida, demonstrado em seus estudos (como o súbito interesse pela poesia profana de John Donne), nos seus escritos e no seu cotidiano. Sua abordagem do sexo fica mais patente, refletindo-se nos Últimos poemas (1936-9). Nesses versos, caracterizados pela inteligente fusão da linguagem coloquial com a literária, e pela estrutura que se dá em seções fragmentárias unidas, como também fazia T.S.Eliot, se tem uma ligação de elos mais psicológicos que lógicos, com o tema predominante da “alegria trágica” que permeia a condição humana, forma de tragédia, que começa a sentir o rocio da morte, um sopro que afirma vida, mas que já está no estertor, e quando vem a morte em hora boa, não ruim, o poema se dá mais vida como nunca antes.
Assim, no ilustre poema “Lápis-lazúli”, o poeta contrapõe à atitude histérica diante do eclodir da destruição do mundo pela guerra, que estava iminente, à atitude tranquila e serena dos grandes artistas plásticos, escritores e músicos. A arte reagia com canto e encanto diante do pavor da guerra, e o poema faz este contraponto entre a histeria do senso comum com a placidez de uma arte que progredia. Em todas as artes, como o ilustram as tragédias de Shakespeare, a história das esculturas de Calímaco e a melodia imaginária sugerida por uma delicada peça chinesa em lápis-lazúli, o que sobressai não é a dor da destruição, mas a alegria do eterno recriar.
E a realidade é o assunto em “A deserção dos animais do circo”, em que, declarando-se abandonado pelos velhos temas, onde Yeats já havia feito a sua transição poética, e faria logo a seguir a sua transição final para o mundo dos mortos, tais velhos temas – que são seus ‘animais de circo’ – Yeats os vai recapitulando, remonta em boa-nova imagens antigas. E no meio do processo, descobre o segredo de seu ato criador, o qual leva do real ao sonho, do sonho ao símbolo, e assim por diante, até que a obra adquira autonomia, sua poesia progride para fora, sai de seu casulo antigo e cai e levanta novas imagens, a fronteira final do símbolo recria a sua poesia de modo que sua maturidade de poeta experimentado vem à tona, não era mais o mundo do sonho somente, era toda uma estrutura consolidada para fazer de seu canto poético suas palavras finais em seu Últimos poemas.
Mas sua partida é sempre o lugar pouco inspirador no qual o poeta se vê e se descreve no momento, o seu único momento, de fato: a feia realidade cotidiana, a “loja de osso e trapo da emoção”. É daí que partem todas as suas escadas; é daí que o homem começa a elevar-se na direção de todos os ideais, o mundo como ideia precisava de um escadaria ascensional para fazer poesia, mas Yeats sabia, muito bem, em nunca ter negligenciado as portas que também se abrem no seu cotidiano.
Com esse poema, dir-se-ia que o círculo se fechou e que Yeats, de volta ao ponto de partida, está pronto para sair outra vez em busca do sonho, Yeats move um círculo entre ideia e mundo, e a poesia participa deste viés cindido o tempo todo, não só Yeats. Mas não de todo verdadeiro, também esta evolução não se fez em círculo, mas em espiral, o movimento hipnótico também participa deste fazer poético, daí a imagem de Yeats com escadas e espirais, na fronteira entre o mundo espiritual, o mundo do sonho, o mundo real e o mundo cotidiano, que eram nada mais que o trânsito do poeta por estes mundos o tempo todo em sua vida e em sua poesia.
 Ao longo do itinerário, Yeats conquista a sabedoria. A sabedoria de quem descobriu o que a vida vale e, por isso, a aceita como ela é. Nada de muxoxos para quem tem talento e dom, nada de murmúrio para quem tem a vocação suprema. Foi um árduo trajeto, durante o qual, passando de conflito a conflito e de um estilo para outro, Yeats, além da sabedoria, conquistou e construiu uma obra inigualável, romântica e moderna, atual e permanente, cujo simbolismo abrange tanto a Irlanda como o mundo, abrangendo, nesta aventura, o indivíduo e toda a humanidade. Uma obra que lhe garante o lugar de maior poeta da língua inglesa no século XX, e um dos maiores em todos os tempos. Yeats cria sua história, e faz História.

BIZÂNCIO

Toda imagem do dia, impura, se desfaz;
Embriagada a Imperial Guarda dorme em paz;
Da noite o ecoar se esvai, notívago coral
Após o grande gongo em catedral;
Em estelar ou lunar cúpula há desdém
Por tudo da humanidade,
A mera complexidade,
A fúria e a lama que nas veias o homem tem.

Paira uma imagem ante mim, homem ou sombra,
Mais sombra que homem, mais imagem do que sombra;
Pois com faixas de múmia o carretel
De Hades estende a estrada em espiral;
Pode uma boca sem alento e ressequida
Convocar bocas sem alento;
O sobre-humano eu cumprimento;
E chamo-o vida-em-morte e morte-me-vida.

Milagre, pássaro ou dourado artesanato,
Mais milagre que pássaro ou artesanato,
Sobre o galho estelar dourado ele se planta
E como os galos de Hades então canta,
Ou, amargo da lua, em alta voz difama
Em glória de eterno metal
Pétala ou ave normal,
E essas complexidades que há no sangue ou lama.

À meia-noite, risca o chão do Imperial Paço
Flama a fulgir que não inflamam lenho ou aço,
Nem tormenta perturba; é flama de outra flama,
Que espíritos do sangue a si conclama;
E estes, sem mais complexidades de ódio ou zanga,
Morrem aos poucos numa dança,
Em uma agonia de transe,
De um flamejar que nem sequer chamusca a manga.

Montada sobre a lama e o sangue do golfinho,
Alma após alma vem! Quebram o torvelinho
As áureas forjas imperiais com sua pujança!
Quebram os mares da pista onde se dança
Esse ódio da complexidade, amargo e longo,
As imagens que no seu lugar
Novas imagens vêm gerar,
O mar que o delfim rasga e que atormenta o gongo.

LÁPIS-LAZÚLI
(Para Harry Clifton)

Dizem que histéricas mulheres têm horror
A esses poetas sempre na alegria,
A violino e paleta de pintor,
Pois todo mundo sabe (ou deveria ...)
Que, se nada de drástico for feito,
Zepelim e aeroplano nos invadem
E suas bombas de Rei Billy deitam
Até que arrasem a cidade.

Cada qual desempenha a sua tragédia:
Lá vai Lear, aqui Hamlet se empertiga;
Aquela é Ofélia, esta é Cordélia.
Quando, porém, a última cena chega,
Quando a cortina está para tombar,
Só quem o seu papel não avalia
Corta a declamação para chorar.
Existe em Lear e Hamlet alegria,
E essa alegria ao medo transfigura.
Todos nós encontramos e perdemos;
Vão-se as luzes; na mente o Céu fulgura:
É a tragédia levada a seus extremos.
Embora Hamlet rosne e Lear se irrite
E o pano caia sobre todo drama
Que há nesses palcos todos sem limite,
Não cresce ela um milímetro ou um grama.

Vieram de navio, a pé, montadas
Em camelo, em cavalo, em asno, em mula,
As civilizações mortas a espada.
Sua sabedoria então se anula:
E nenhum artefato de Calímaco,
Que o mármore tratou como se bronze fosse
E cujo drapejar se erguia anímico
Como ao sopro da brisa, permanece;
Sua manga de candeeiro, lembrando hastes
Tênues de palma, só durou um dia;
Todas as coisas caem e são repostas,
E quem as reconstrói sente alegria.

Talhados em lápis-lazúli,
Dois chineses, e um outro mais distante;
Em cima ave pernalta, que se isola
E que a longevidade representa;
O terceiro, sem dúvida um criado,
Carrega um instrumento musical.

Na pedra cada ponto descorado,
Cada ranhura ou fenda acidental,
Parece alude ou rio que se despeja,
Ou declive altaneiro em que ainda neva,
Embora a ameixa adoce, ou a cereja,
A casinha para onde a estrada leva
Pela encosta os chineses, enquanto eu
Os imagino enfim sentados lá;
Lá, fitam eles a montanha e o céu,
E a cena trágica que em torno está.
Uma hábil mão começa a dedilhar,
Pois alguém pede triste melodia.
Seu olhar enrugado, seu olhar,
O antigo olhar, cintila de alegria.

A DESERÇÃO DOS ANIMAIS DO CIRCO

1
Busquei um tema que não foi achado;
Por seis semanas procurei, ou mais.
Talvez eu pare enfim, velho e alquebrado,
Mesmo sabendo que meus animais,
Verão e inverno, até chegar a idade,
Tenham estado todos em cartaz:
Jovens pomposos, reluzente biga,
O leão e a mulher, e Deus que o diga.

2
Que mais que velhos temas lembraria?
Primeiro Oisín, levado de roldão
Por ilhas e visões de alegoria,
Prazer vão, luta vã, repouso vão,
Temas do amargo coração, diria,
Próprios de verso antigo e cortesão;
Mas que importava a mim que o pus na estrada
E só queria o peito de sua amada?

E A condessa Cathleen desponta agora
Com a contraverdade a encher a peça;
Louca de pena, joga sua alma fora,
Embora o Céu imperioso o impeça.
Com todo o fanatismo que a devora,
Julguei meu bem capaz de ação como essa,
E isso gerou um sonho e, de repente,
Ocupou-me tal sonho o amor e a mente.

E quando o pão roubaram Cego e Idiota,
Cuchulain combateu o mar medonho;
Mistérios que há no coração; de fato
Encantou-me, porém, o próprio sonho:
Um caráter marcado por um ato
Que ergue o presente e que a memória ganha.
Palcos e atores foram meus problemas,
Não as coisas de que eram os emblemas.

3
Se a imagem imperiosa, em si completa,
Cresce na mente, de onde é originada?
De rua suja e monte de detrito,
Lata velha, chaleira arrebentada,
Ferro, ossos, trapos, a rampeira abjeta
A controlar a caixa. Sem a escada,
Fico onde toda escada sai do chão,
Na loja de osso e trapo da emoção.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/28829/17/wb-yeats-o-maior-poeta-de-lingua-inglesa-do-seculo-20-parte-4