PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

OS RATOS

   Numa vila do interior da Inglaterra, chamada West Camp, ocorreu algo que remonta aos barbarismos da Idade Média, o fenômeno que aqui será relatado se passou nos anos de 1937 e 1938, antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939. Foi algo inexplicável pela natureza, e colocou a população de West Camp em pânico, e tão intenso quanto este fenômeno surgiu, o mesmo arrefeceu, como num passe de mágica.
   A família Wright era a mais rica de West Camp, possuíam as maiores vastidões de terras nos arredores do pequeno centro urbano da vila. O patriarca, Sir Desmond Wright, tinha sido prefeito de West Camp no último mandato, se aposentando no ano então de 1937. Sua esposa Victoria Wright era uma feminista de renome naquelas bandas. Ele tinha também cinco filhos com Victoria: Linda, a mais velha, Leonard, o segundo da leva, e em ordem de idade decrescente, os outros três, Philip, Richard e Lisa.
   Outros dois donos de terra de West Camp eram Sir Douglas Barrimore e Sir Kirk Seymour. O novo prefeito eleito em 1937 foi o ex-combatente da Primeira Guerra, e ex-médico, Sir Vincent Lauren. A vila era muito rica, não havia pobreza nas terras, mas havia no centro urbanizado uma área extremamente pobre e mal cuidada, que uns chamavam de Vale Morto, e outros, de Gruta Velha. Os moradores, em condições péssimas de higiene, com muitos famintos, bêbados, mendigos, e loucos varridos, entre donas de casa de fibra, chamavam o lugar de Campo do Levante.
   As coisas iam bem para os poucos donos de terra, de famílias tradicionais, que dominavam este pedaço da Inglaterra desde os tempos da Idade Média, com seus antepassados se perdendo no tempo histórico, não sendo possível enumerá-los aqui.
   Victoria Wright, com seu feminismo militante, porém sem a afetação das que rasgam roupas no Plenário, era dedicada também a causas humanitárias, e sempre ia levar comida para a área pobre do centro maltratado de West Camp. Os mendigos amavam Victoria como um anjo bom e generoso que volta e meia aparecia para transformar o Campo do Levante numa festa. As donas de casa respeitavam muito Victoria, e tinham plena consciência de sua importância para aquele lugar tão sofrido e sujo.
   Joseph Lang era o líder comunitário do Campo do Levante que, por sinal, tinha um diminuto sindicato, porém bastante ativo politicamente. Das lendas do Campo do Levante: tinha o mendigo Ringo, além de dois alcoólatras chamados Peter e seu camarada Denis. Victoria tinha bom trânsito tanto no sindicato como em todo o Campo do Levante, e sempre levava as causas do sindicato para seu marido quando ele era prefeito, e agora, com o prefeito Sir Vincent Lauren, embora adversário político de Desmond Wright, tinha também uma relação pacífica e madura. Vincent, na verdade, admirava o casal Desmond e Victoria, mas suas ambições políticas eram grandes e suas ideias eram bem diferentes das de Desmond, sobretudo quando o assunto era a gestão de West Camp, pois Vincent era extremamente pragmático, um homem de um senso prático monumentalmente mais forte do que o de Desmond, que tinha deixado a prefeitura endividada. Vincent estava fazendo um ajuste do orçamento da prefeitura, e os investimentos sanitários no Campo do Levante caíram 75% do ano de 1936 para o ano de 1937.
   O líder comunitário e sindical Joseph Lang tinha apoiado o candidato de Desmond, Sir Walt Brolin, e odiava Vincent Lauren, achava que ele era corrupto, que tinha uma empáfia até caricata, ou seja, Joseph percebia um pouco a alma de Vincent, o que muitos não notavam, pois Joseph Lang poderia ser chamado o cara mais inteligente de toda West Camp, foi criado na rua, mas recebeu livros de um benfeitor e se tornou um homem intuitivo de fibra, personalidade forte, e com um senso de justiça incontornável. Seu apoio à Desmond, no passado, foi por causa de Victoria, e seu apoio a Walt, por causa de Desmond.
   Joseph Lang, portanto, decidiu que os trabalhadores do Campo do Levante e os camponeses fariam uma greve. Porém, não havia nada planejado, foi de supetão. Joseph dava ordens e todos do sindicato imediatamente obedeciam, com ele não havia arrogância, mas uma ascendência total sobre seus sindicalizados e também com os camponeses. Joseph só não havia saído como candidato a prefeito neste ano por causa do pedido de Victoria para o apoio a Desmond e Walt. Por isso que se diz que seu apoio a Walt foi por Desmond, que, portanto, já era efeito de seu compromisso anterior com Victoria pelo apoio a Desmond. Joseph decidiu também que não sairia a vereador, colocou seu amigo Ben Lindon para ser o mandachuva da Câmara dos Vereadores. Joseph tinha então o plano de sair candidato a prefeito nas próximas eleições. E Walt já tinha sido descartado pelo seu fraco desempenho contra Vincent.
   A greve dos camponeses se estendeu às donas de casa do Campo do Levante, pois todas eram cozinheiras e bordadeiras, e a população do centro dependia delas para comer quando não havia as benesses de Victoria. Tal movimento poderia ser um tiro no pé, mas era uma estratégia de Joseph para provocar a revolta da população contra Vincent. O outro motivo era sanitário. Joseph já ficara sabendo que no Campo do Levante tinha surgido um surto de baratas, escorpiões e lacraias, e também começou a aparecer ratos, desde os telhados das casas humildes, até a fossa que estava infestada de ratazanas, umas enormes, e camundongos que invadiam as casas e que se multiplicavam nos estoques de madeira em volta das casas do Campo do Levante. As ratazanas estavam apenas nas fossas, e caíam camundongos dos tetos das casas, baratas voadoras invadiam as casas, e o Campo do Levante começava a virar um pequeno caos.
   No meio disto, Ben Lindon, que era nada mais que vereador de fachada para Joseph orientar, começou a empreender a abertura de uma comissão de ética para investigar a administração do prefeito Vincent, pois havia muitas falcatruas inexplicáveis, e a fortuna de Vincent crescia a olhos vistos. Victoria foi avisada por Joseph de seu plano, e que queria ver logo Vincent fora da parada até para dar uma solução para os problemas de higiene que surgia no Campo do Levante.
   Ben Lindon consegue maioria na Câmara do Vereadores e engessa a gestão de Vincent que, agora, estava meio sem saída. A comissão é montada, Vincent começa a contatar uns capangas que eram seus empregados para, se preciso, "sumirem" com Joseph e Ben.
   Logo depois de começarem as investigações da comissão de ética pela articulação de Ben, digo, de Joseph, numa manhã no centro de West Camp o prefeito Vincent saía do almoço e acaba por cruzar com Joseph. Os dois se insultam e acabam saindo na mão. Joseph ganha a briga, e o prefeito manda prender Joseph, isto com Vincent com o nariz e dois dentes quebrados.
   Vincent então articula um movimento para esvaziar a investigação de Ben, dizendo que Joseph estava desmoralizado, pois agora era um preso pela lei, mas Ben dá de ombros e não leva a discussão adiante com Vincent. Ben continua seu empenho de derrubar Vincent da prefeitura o mais rápido possível, e Joseph, enquanto isso, e na verdade, corria risco de morrer assassinado, pois Vincent esperava o momento oportuno para colocar um dos capangas infiltrado na cadeia e dar um fim ao barulhento líder comunitário.
   Ben acaba por se tornar secundário nos planos de Vincent, embora sua dedicação na comissão que investigava a vida financeira de Vincent fosse hercúlea. Ben só seria assassinado mesmo após o fim de Joseph. E, nesses dias, Victoria faz uma visita a Joseph, e deixa ela a par da situação, pois ele sabia do que Vincent era capaz.
   A investigação da comissão de ética de Ben acaba por ser esvaziada, a maioria opositora contra Vincent se torna minoria num passe de mágica, ou seja, Vincent já havia comprado três quintos dos vereadores e inviabilizou toda a investigação, deixando Ben numa situação embaraçosa de ficar se explicando para a população.
   Joseph tenta articular uma fuga da prisão para não ser assassinado por Vincent. Em três dias consegue o intento, sai numa madrugada, depois de Ben enviar um de seus amigos que comprou os carcereiros, e então, Joseph estava livre, e foge de West Camp até as coisas se acalmarem, ou quando Vincent fosse derrotado.
   Victoria fala a Desmond que Joseph e Ben corriam risco de morte, e que Vincent se tratava de um escroque e de alma maligna. Victoria convence Desmond a colocar uns detetives para vigiar os passos de Vincent. Joseph já estava na cidade vizinha de East Camp, em contato com o prefeito e o sindicato de lá.
   Walt também é informado por Victoria das articulações de Vincent para matar Joseph e Ben. Numa manhã chuvosa, Ben é encontrado morto a tiros numa rua sem saída do Campo do Levante. Joseph fica sabendo, e se revolta. Nisso, no Campo do Levante, havia uma grita de que ratos estavam invadindo as casas de lá. As baratas, escorpiões e lacraias tinham sumido, só havia ratos por toda a parte.
   Victoria começa a receber informações dos detetives que investigavam Vincent, e a notícia não era animadora, Vincent comemorou com uma festa em sua casa no mesmo dia que encontraram o corpo de Ben jazendo na rua sem saída, Vincent tinha bebida e prostitutas, seus capangas davam tiros para o alto e berravam como animais.
   Joseph resolve voltar em segredo para West Camp, e fica nos fundos de uma casa pobre do Campo do Levante. Ele decidira matar Vincent para não morrer. Nos fundos da casa, uma ratazana morde o braço de Joseph, este grita de dor, vai ao hospital, e é descoberto por um dos capangas de Vincent. Seus dias estavam contados.
   No dia seguinte da internação de Joseph, entram três homens encapuzados, invadem o hospital, vão ao quarto em que Joseph estava, e disparam trinta tiros no peito de Joseph. Ele morre na hora, e Victoria vai ao desespero. Desmond tem um ataque de fúria, e diz que poria um freio naquilo tudo.
   Victoria, que era pacífica e a pessoa mais bondosa de West Camp, de uma índole irrepreensível, também toma as dores de Joseph e Ben, e diz ao marido Desmond para matar Vincent. Os ratos, enquanto isso, já começavam a chegar nas terras dos latifundiários da região. Sir Douglas Barrimore e Kirk Seymour também já estavam furiosos com toda a situação e dão seu apoio a Victoria e Desmond para acabar com a vida de Vincent. Os dois formam um pequeno exército de apoio, junto com os camponeses de Desmond, para invadir a prefeitura e matar Vincent.
   Kirk Seymour decide fingir apoio político a Vincent para preparar o terreno, Desmond não poderia fazer isso, pois era adversário político de Vincent, e as relações, que à época da eleição, eram pacíficas entre Desmond e Vincent, estavam no limite da explosão. O pequeno exército é montado, mas, na saída deles à caminho da prefeitura, estes homens são surpreendidos por uma nuvem descomunal de ratos, todos são mordidos. Dias depois, a maioria desses homens adoece e morre de peste bubônica.   Os planos de Desmond tinham caído num imprevisto, ratos.
   Victoria, então, decide ir pessoalmente para conversar com Vincent, pois Kirk falhara no seu joguinho, e perguntar olho no olho se era ele mesmo que tinha matado Joseph e Ben. Victoria já estava impaciente, e não havia mais o recurso da invasão de choque na prefeitura. Desmond estava confuso, e perguntava que raio de ratos eram aqueles invadindo as suas terras. Deixa nas mãos de Victoria o último recurso civilizado para interromper o ímpeto assassino de Vincent.
   Na prefeitura, Vincent simula concordância com as invectivas de Victoria, confessa seu feito para ela, e diz que tudo ficaria em paz dali em diante, e que queria conversar com Desmond sobre a gestão da prefeitura, e de que os vereadores estavam cooptados contra Joseph, e então, seu gesto extremo, era um pedido dos vereadores para recuperar a prefeitura e a Câmara dos Vereadores de um vexame de denúncias de corrupção, o que, ele disse a Victoria, era uma calúnia de Joseph que, na verdade, queria o seu lugar a todo custo, e que também tinha sido ameaçado por Joseph de morte. Victoria engoliu seco, mas não comprou aquele teatrinho, claro. Teria ela que ir até ao sindicato do Campo do Levante, para começar, então, um movimento político para, enfim, tirar Vincent da prefeitura.
   Chegando ao Campo do Levante, ela conversa com o substituto de Joseph no sindicato, nada mais que o alcoólatra e uma das três lendas, Peter. Este que já estava junto do camarada Denis, para enfiar a porrada no prefeito Vincent, que já havia apanhado de Joseph, mas, segundo eles, "ainda não tinha aprendido a lição".
   A esta altura, o Campo do Levante tinha virado um caos, uma grande montanha de ratos, metade da população já havia morrido de peste bubônica, e o hospital de West Camp não comportava mais tanta gente, já que os médicos também morriam. E Desmond tenta colocar um alerta contra a gestão de Vincent, no Campo do Levante, através de Victoria. Os moradores entendem que aquela situação era insustentável, e teriam que invadir a Câmara dos Vereadores e a prefeitura em busca de medidas para matar os ratos.
   Walt se junta a Desmond, e também a Kirk e Douglas, e fazem uma frente sanitária, com alguns camponeses, que vai até o Campo do Levante com vassouras e sabão para tentar eliminar a peste de ratos de West Camp. E, nas terras, as coisas também pioravam. Mas, a emergência era no Campo do Levante, que, por seu turno, já se preparava, liderado por Peter, para primeiro invadir a Câmara dos Vereadores, e depois a prefeitura, com o fito de cercar o prefeito para Denis segurá-lo pelo gormomilo, enquanto Peter lhe dá uns sopapos na cara até sangrar.
   O povo do Campo do Levante chega até a Câmara dos Vereadores, mas são surpreendidos. Os inúmeros capangas de Vincent já cercavam tanto a prefeitura como a própria Câmara. Era iminente um confronto brutal entre estas duas formações. E, para espanto geral, começam a entrar ratos, tanto na Câmara, como na prefeitura. Os capangas dão tiros a esmo, o povo do Campo do Levante vai de encontro aos capangas de Vincent para uma verdadeira luta campal, o caos se faz em West Camp.
   A luta começa, e os capangas de Vincent levam a melhor. Metade dos bravos do Campo do Levante batem em retirada, a outra metade é estraçalhada pelas forças de Vincent. Em meio disso, os ratos entravam e saíam loucamente da Câmara, alguns capangas são mordidos, os abatidos do Campo do Levante também são mordidos, e logo infectados pela peste bubônica. Vincent é denunciado por alguns sindicalistas ao Rei da Inglaterra, mas este não leva a sério o relato, e diz que era tudo era loucura e que isso não existia. West Camp estava abandonada à própria sorte, e então, quem reinava mesmo, era a anarquia.
   A frente sanitária ia bem, Desmond consegue colocar os camponeses em vantagem em relação aos ratos. Nas terras, os ratos comiam todo o milho e o algodão. Os casarões de Desmond, Douglas e Kirk, estavam já com montanhas de ratos dentro. O Campo do Levante começava a ser limpo. Enquanto isso, Vincent manda metade dos capangas que tomavam conta da Câmara e da prefeitura irem ao Campo do Levante para ver o que estava acontecendo, se havia mais alguma conspiração.
   Num trabalho de uma semana inteira, os homens da limpeza do Campo do Levante dão o trabalho por terminado. Mas, dois dias depois, os ratos voltam inexplicavelmente. Os capangas de Vincent, nos dias em que se deu a limpeza, resolvem aguardar de tocaia Desmond, Kirk e Douglas. Isso não havia sido planejado por Vincent, mas eles decidiram capturar os três, e os levarem até seu comandante. E, então, os ratos voltam com força descomunal. A quantidade de ratos que havia no auge anterior do Campo do Levante, triplica, com ratazanas enormes do tamanho de uma tartaruga marinha média. As cozinheiras diziam que aquilo era bruxaria, e tentam jogar água quente nos ratos, nada. Os mendigos, por sua vez, tinham uma certa resistência à  infecção, e até se divertiam ao atirar camundongos pro alto, e depois pisoteá-los, quando não brincavam de tiro ao alvo com os camundongos menores.
   Denis e Peter não se demovem de fazer a vingança do sangue de Joseph, e tentam ir na surdina, só os dois, mais o mendigo Ringo, que era bem forte, apesar de mal alimentado, e vão de noite até a casa de Vincent. Os detetives entram em contato com eles, e dizem que todos estavam juntos, por ordem de Desmond e Victoria, e que teriam que matar Vincent pela ordem de West Camp. E, de outro lado, a população restante do Campo do Levante já se preparava para uma segunda investida contra a Câmara e a prefeitura, desta vez com o apoio dos camponeses, que também estavam saturados com os desmandos de Vincent. E agora, os ratos já estavam em toda parte nas fazendas, assim como no Campo do Levante.
   Vincent manda os capangas voltarem do Campo do Levante imediatamente para reforçar a retaguarda da Câmara e da prefeitura, já prevendo a nova investida que viria contra ele e seus vereadores. O plano de tocaia contra Desmond, Kirk e Douglas, portanto, ficam para uma outra hora, Vincent dá ordens expressas de proteger o poder instituído de West Camp, e que iria às favas com os escrúpulos.
   Victoria resolve se tornar a líder do movimento de derrubada de Vincent, e junta o povo do Campo do Levante, mais os camponeses, para um pacto de moralização política de West Camp. Desmond, Kirk e Douglas, enquanto isso, voltam para suas fazendas, e veem um cenário de caos. Os ratos haviam comido toda a plantação deles, e suas casas transbordavam de ratos. No Campo do Levante a coisa também piorava, em relação aos ratos.
   Vincent então planeja o assassinato de Victoria assim que o protesto chegasse à porta da prefeitura. Autoriza os vereadores a se retirarem da Câmara, isso para ter mais um álibi para exterminar as forças de Victoria, pois a Câmara seria abandonada para deixar os camponeses e o povo do Campo do Levante achando que tomaram o poder. Vincent era ardiloso, e também planejava sua própria fuga, pois sabia que não resistiria mais muito tempo, mesmo com tantos capangas. Ele tinha a intenção de ir para a Suíça, aonde tinha suas contas bancárias, e rir dos trouxas de West Camp que, para ele, era um lugar que não valia nada, a não ser para a formação de seu patrimônio ilícito que, a esta altura, já era suficiente para não precisar mais se meter em política.
   Desmond, já de volta à sua casa, vê sua filha mais velha, Linda, desesperada, dizendo que Philip tinha sido devorado por uma nuvem de ratazanas, os outros irmãos estavam no telhado da casa, amedrontados, e ela, Linda, estava que nem uma louca com uma vassoura, tentando espantar os ratos invasores da casa. Linda chora e abraça o pai, dizia que aquilo era um castigo de Deus, pois ela era carola ao paroxismo, e enxergava tudo como conspiração divina ou do Diabo. Desmond diz para Linda ficar calma que tudo iria melhorar, e que Victoria estava cuidando do fim daquele caos.
   Victoria é alvejada na rua por um dos capangas de Vincent, ela é levada rápido para a emergência do hospital, mas não corria risco de morrer. Os camponeses e o povo do Campo do Levante, então, caem na isca de Vincent. Os capangas "não oferecem resistência" à invasão da Câmara dos Vereadores pela população. Neste ponto, Vincent preparava a sua fuga para a Suíça, que não poderia falhar, mas os detetives de Victoria vigiavam cada passo dele, e já sabiam deste plano. Denis e Peter, junto com o mendigo Ringo, então, pegam Vincent no quintal de sua casa e o espancam. Decidem levá-lo à Victoria que, a esta altura, ainda convalescia no hospital. Desmond vai até a cidade novamente, e fica sabendo que Victoria tinha sido ferida por um tiro, mas que já estava no hospital e passava bem. Desmond veio com Linda e os outros filhos junto, para ver Victoria. Então, Linda se prostra à beira da cama em que Victoria estava deitada convalescendo, e começa a rezar fanaticamente, aos prantos. Nisto, chegam Ringo, Peter e Denis, junto com os detetives, carregando o rebotalho que tinha se tornado Vincent. Desmond sorri.
   De outro lado, os vereadores invadem a casa de Vincent, que agora não tinha ninguém tomando conta, e roubam os documentos de Vincent. Decidem descobrir as senhas bancárias de Vincent, e fugirem para a Suíça. Os capangas de Vincent, já sabendo que seu comandante se dera mal, se juntam aos vereadores, e todos fogem em um comboio, já com o plano de roubar a fortuna de Vincent, com uma identidade falsa do mesmo. Pois então, um dos vereadores acha um papel num dos bolsos de uma camisa de Vincent, e descobre as senhas bancárias. O grupo de vereadores e capangas vão à Suíça dividir o butim, e se vão para nunca mais voltar a West Camp.
    Victoria volta para casa. Vincent implora o perdão de Desmond, este sorri novamente, e faz um sinal. Vincent morre espancado pelas mãos de Ringo, Peter e Denis. São realizadas novas eleições logo depois, e Kirk Seymour se elege com o apoio de Desmond Wright. A Câmara dos Vereadores é repovoada, desta vez por uma maioria que era do sindicato do Campo do Levante. O Rei da Inglaterra finalmente descobre que os rumores de West Camp era a mais pura e cristalina verdade. Este envia um exército para exterminar os ratos da região. Mas, numa semana, sem explicação alguma, os ratos somem.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
(Contos Psicodélicos - 09/06/2014)

NEAL CASSADY : O PRIMEIRO TERÇO

"Neal Cassady era o veículo pelo qual a geração beat conseguiu atingir o seu ideal."

   Neal Cassady é um dos representantes mais fortes do ideal de vida da geração beat, o herói famélico que inspirou Kerouac em On The Road. O livro O Primeiro Terço é a narrativa do primeiro terço de vida de Neal Cassady : as agruras de menino solto no mundo, criado entre os vagabundos e bêbados do árido Oeste americano, às voltas com pequenos furtos e a vida delinquente de liberdade excessiva.
   Os outros dois terços de vida de Neal, por sua vez, o próprio não teve tempo de redigir. Neal Cassady morreu de overdose, à beira dos trilhos de uma ferrovia no México. E o livro O Primeiro Terço foi um manuscrito que esteve perdido por muitos anos, e foi encontrado em gavetas esquecidas, em 1969, e publicado pela editora do poeta Lawrence Ferlinghetti, a City Lights, em 1971.
   O Primeiro Terço remonta ao mito do Oeste selvagem. O relato autobiográfico de Neal, neste livro, é um testemunho das bocas-do-lixo, dos bairros dos vagabundos, das barbearias e ruas marginais de Denver. O Primeiro Terço é o tempo de uma América dos anos 30, que representa a experiência solitária do Oeste na existência errante de Neal Cassady.
   Neal pode ser o exemplar mais genuíno de herói popular, fazendo parte da última geração romântica da literatura norte-americana, a geração beat. Neste ponto, o tempo histórico do livro autobiográfico de Neal se dá antes da consagração da geração beat nos anos 50 do século passado. Pois, neste livro, estamos na infância de Neal, que se passa nos anos 30. Este é o mundo de antes da Segunda Guerra Mundial, pois só depois, como dito, se consumaria o estabelecimento da geração beat, após a tragédia nazista, no mundo já da guerra fria, com os expoentes Ginsberg, Kerouac e Burroughs, todos tomando de assalto a cultura norte-americana dos anos 50, com o engajado poeta-editor Lawrence Ferlinghetti tomando a frente dos negócios desta geração fundamental.
   Neal é o nômade fora-da-lei que é representado no personagem Dean Moriarty no livro On The Road de Jack Kerouac. Por seu turno, O Primeiro Terço é uma saga americana tão forte quanto foi a de Faulkner ou de Thomas Wolf. Neal tem uma prosa primitiva, rude. Na incontinência verbal de Neal, que falava como escrevia, ele não era, portanto, como o escritor clássico, de gabinete, ou o escritor profissional que tem dever de ofício com sua produção, ele era um homem de vivências, herói romântico idealizado por Kerouac, e o mais desbundado exemplo da geração beat. Neal era a espécie de malandro norte-americano do século vinte.
   No livro O Primeiro Terço tem um prólogo antes do texto principal, que é uma recapitulação genealógica, a qual remonta às origens da família de Neal, até chegar a seu pai, também de nome Neal. O pai de Neal era um subjugado alcóolatra, vivendo errante e de maneira precária, sobretudo no aspecto financeiro, criando o filho numa liberdade monumental que talhou o caráter de Neal filho como outro ente humano da boca-do-lixo, o menino que se tornaria o jovem furtador de carros e comedor de bocetas como Luanne e Agnes. (Luanne que aparece como Marylou em On The Road)
    Neal e seu pai eram habitantes da parte baixa do centro de Denver. Neal era uma réplica infantil, menino pequeno ainda, no meio da malta de bêbados do submundo, todos sem vintém, anódinos seres que olhavam com compaixão aquele filho desnaturado destas dezenas de homens derrotados. Neal até diz em seu livro: "Eles eram bêbados cujas mentes, enfraquecidas pelo álcool e por uma maneira subserviente de viver, pareciam continuamente ocupadas em emitir curtas declarações de óbvia inutilidade."
   Em 1932, a situação familiar de Neal muda com a separação de seus pais, Neal acompanhou o pai na sua retirada para a rua Larimer. Neal estava agora livre de seu irmão valentão Jimmy, e de seus meio-irmãos mais velhos que já não poderiam mais bater em seu pai.
   Em O Primeiro Terço entram imagens do restaurante Manhattan. A rua Larimer que era destaque em Denver no século dezenove, virou um palco de decadência e vulgaridade na época descrita pelo livro de Neal. O menino Neal, geralmente, conseguia pequenos privilégios entre os adultos, na fila para pegar comida era sempre favorecido, sua vida se configurava no meio destes ambientes alcoólicos, e seu pai, mesmo que tentando poupar o filho de cenas grotescas, era um homem entregue à bebida, tinha a decadência como estilo de vida, como se diria na doutrina norte-americana da prosperidade, o pai de Neal era um perdedor. E o menino cresce neste lugar de pouco conforto, com a sua vantagem que era a liberdade, e isto ele teve mais quando estava com o pai do que quando estava com a mãe. Ele frequentava uma escola, e o resto do tempo flanava pelos becos e alguns lugares de Denver na parte decadente e pobre da cidade. Neal já tinha, desde menino, a possibilidade de uma vida aventurosa, e este foi seu destino, até morrer no México.
   O Primeiro Terço é a imagem fiel da boêmia e das histórias que se passavam entre o setor pobre de Denver nos anos 30. Neal é a testemunha de um mundo fidedigno da boca-do-lixo, seu habitat se tornou estas vielas e direções que só a vida solta e sem regras pode proporcionar. Neal cresce e se torna homem firmando seu caráter na malandragem de tempos ingênuos, década de 30 do século passado, um ensaio para o que viria depois na explosão da geração beat nos anos 50, em que ele sairia do nada, de um lugar ignoto pelos mais abastados, e se tornaria herói literário pela mãos fanáticas de Jack Kerouac.
   O desbunde da geração de 50 seria então a antessala do mundo de expansão da consciência pelas drogas nos anos 60 com os hippies. Neal vê tudo isso, seu lugar como o  menino de O Primeiro Terço é apenas um microcosmo do que seria sua vida mais tarde. Neal tinha a liberdade ideal para aprender na vivência mais do que na literatura de gabinete. Sua experiência literária era curta, destacando-se o imbróglio com um livro de Dumas, O Conde de Monte Cristo, que ele perde e depois recupera. No mais, ele era o reflexo perfeito do que se configuraria anos mais tarde na geração beat: uma literatura de vivência, seja na autobiografia concreta de Neal Cassady em O Primeiro Terço, seja na autobiografia literária e romantizada de Jack Kerouac em On The Road.
   A literatura de vivência beat era um estilo de vida, e Neal representava o clímax deste estilo e ideal. Kerouac jaz justiça a seu herói. Dean Moriarty aparece em On The Road como a consagração definitiva de Neal Cassady, a literatura se une à vida, e o brinde mais forte feito por esta geração está no exemplo vivo da biografia acidentada de Neal Cassady.
   Em O Primeiro Terço já se vê um pequeno beat. O menino Neal já é o que será o homem Neal Cassady e o que se torna o herói Dean Moriarty. Neal estava vendo o mundo de Denver, e ali já havia todas as nuances do estilo de vida beat, de toda a explosão desta literatura de vida, de vivência, estilo de vida e destino literário de liberdade e desbunde. Neal se torna um ente poderoso, e seu registro do primeiro terço, embora insuficiente, solto em fala rude, num modo de escrita fragmentado e cheio de volteios de situações que criam uma engrenagem confusa, faz de Neal,  e neste relato autobiográfico, o protótipo da evolução da espécie beat, que se torna o ideal com a criação, por Jack Kerouac, de Dean Moriarty e a trama alucinante de On The Road.
   A fala de um mundo decadente de Denver, por Neal, define o ensaio geral do que foi Neal como Dean Moriarty. Neal, desde criança, vivia como sempre viveria. O nômade que ele é, também é o ideal beat. O pé na estrada é o destino destas crianças bêbadas de literatura e liberdade.
   De fato, é a última geração literária a ter uma visão idealizada e romantizada da vida. E esta visão de vida não era ingênua, pois o estilo radical da vida de Neal Cassady, o mais veloz dos beats no sentido de vivências, era destino e sentido de vida beat. Não havia inocência nem em Neal e nem nos outros escritores como Jack Kerouac. O estilo de vida beat era uma escolha de ruptura, e isto é mais uma coragem e desafio do que o desbunde por si mesmo. A literatura era o projeto. Então, se tinha um plano nisso, não era só a fruição do instante, era a vivência biográfica fundante do estilo de vida de liberdade e de propagação destes valores, com o documento literário como prova de um escolha consciente, e não de um capricho apenas. O estilo de vida beat era uma opção filosófica, e que tem na literatura a seriedade necessária do que se tratava.
   Neal pode ter sido o menos sério e o mais louco e indisciplinado desta geração beat, pois não era um escritor de todo, mas Neal Cassady era o veículo pelo qual a geração beat conseguiu atingir o seu ideal, e isso já é o suficiente para colocar Neal Cassady do mesmo tamanho de Burroughs, Kerouac ou Ginsberg. Uma vivência como a de Neal Cassady, e que vira lenda com Dean Moriarty, já é mais do que simples literatura, é o sumo do qual se fez a literatura beat.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/17303/14/io-primeiro-tercoi

ARTE MODERNA

Não, eu não anotei todos os cálculos
de que faria uma casa, uma mansão.
Os utensílios como talheres e brocas
foram fundidos em prata e cobre,
sabes, não meu dou com coisas elétricas,
tenho intolerância com máquinas que dão
problemas, dou um esporro nos meus
computadores, louco varrido das adagas
póstumas, serro o tonto dos poemas
com alma e puro ardor de capitão,
se tenho vidência? Outras coisas mais
belas as possuo, como o sentido do vento.
Não mais uma penugem barroca, tal é a miséria
quando na rua canta o bêbado,
falo alto na esquina como o velho louco
das antessalas de emergência, e vejo
os afrescos e os ditos muralistas
confrontarem-se com a arte de rua
num estêncil que murmura
"yankees go home" e levo a sério
as cartas de amor, sobretudo
as desesperadas, e me encanto
quando d`aurora férrea o arrebol
é o espanto que corto com facas cegas
o riso brumoso das chuvas
ao fim do esterco
em paisagens bucólicas
como um idílio entre carros
no centro urbano.

09/06/2014 Êxtase
(Gustavo Bastos)