PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 14 de março de 2020

DEGELO NO TIBET


Andei no Tibetan Freedom, e com um olho atrevido pensei em burlar a máquina de caça-níqueis que o crupiê tinha programado para roubar a cada vinte minutos um incauto que se empolgava ganhando cem dólares antes da queda. Joguete do destino, este patife que opera via seus acasos mortais, os poemas aqui não cabiam no gelo do Himalaia, maiores topázios ou ópios que sussurravam o êxtase de seus mistérios.
Na nota de um fracasso de poeta suicida, o elenco de uma filmografia morria de tifo ou gota, os senhores que produziam faziam as cenas em um plano-sequência de vertigem, nada a dever aos fantasmas mais miseráveis de um expressionista maquiado de olheiras fundas a fazer do pré-guerra suas intuições sinistras.
Em Lhasa eu conheci um monge esteta, pintava suas astúcias e as destruía em seguida. A hipnose de que fui vítima tinha um ar viciado que simulava um satori cheio de diabinhos pintados na tela de minha mente extática. Rumorejava o vento em cantos sutis que abria a vertigem para uma nova paisagem onírica, os sete candelabros que urdiam um poema sacro com brios profanos e um chá alucinógeno que fazia ouvir música celeste com os ouvidos sinestésicos que pintavam o sol do meio-dia com asas de anjo e ardis bem diabólicos, como uma face dupla que ardia meus infernos com sentimentos de céu em meio ao caos da morte que me cercava.
Quando eu lia Ginsberg depois de uma passagem por Katmandu, eu nasci de novo antes de certos passos irrisórios e febris. Já antes ainda de eu nascer de novo, na sombra de dias mortiços, o cheiro de enxofre possuía meus rituais, ouvia os delírios de minha pena com certa delícia, mas a minha alma ainda estava morta, viciada nas flores oníricas e nos germes que eclodiam as farsas e as canções ditirâmbicas de antepassados que se perderam no tempo da História.
Lhasa ainda não tinha sido invadida por chineses e nem os lamas tinham ainda fugido para a Índia. Rinpoche Tarthang dizia certos enigmas mais possessos que todos os koans elencados pelo zen, sua fusão fazia Jazz e batia tambor com sede e fome como grandes deuses irados e famélicos, Shambala me dizia em quinze centúrias todas as regras do jogo e de como quebrá-las sem violência, apenas com o uso da mente clara e decidida, o poder da decisão como o cerne da escolha, e a consequência inaudita e planejada no mesmo diapasão, como um compasso de música que metrifica um destino inteligente.
O sol ardia na manhã calma da montanha, o Himalaia amanhecia com o canto dos lamas a fazer balões coloridos voarem naquele frio marmóreo que convidava à meditação. O sol que nascia vermelho e ficava amarelo, e Tarthang que pintava logo adiante um Shambala verde e azul, simulando demônios depois da alucinação do chá de flores oníricas que tomava o espaço e que um dos lamas delirava para testar se ficaria louco depois do êxtase e da sinestesia, pois tocava tambor alucinadamente enquanto cantava coisas incompreensíveis, num frenesi próprio e enigmático.
O jogral apareceu ao fim daquela manhã, o tal lama que tinha alucinado desde que o sol nasceu acordava de seu transe e caiu num sono de Morfeu. Tarthang fazia a sua palestra debaixo de uma araucária e depois dizia sobre os diversos venenos a evitar, sua doutrina sobre a atrabílis e como a saúde era mais forte com os dons bem cuidados e não apenas dependentes da inspiração. O poema metrificado em tibetano fazia novamente um tipo de jogo mais paradoxal, uma espécie de delírio armava o raciocínio como um joguete, samsara operava ali.
Em Lhasa aparecia Shambala como a deidade irada a provar o fracasso filosófico dos projetos doutrinários que buscavam a verdade, a sapiência era fraca e exangue, a meditação apenas evidenciava a morte da alma cognoscente, Tarthang então cantava para o sol inutilmente, a sua sabedoria também não era nada, virava pó de estrela em um gesto de morte, indo para o bardo para se livrar de sua verdade e de suas mentiras.
O jogral, a esta altura, não fazia mais ninguém rir, todos meditavam, e a imagem de Shambala no fólio desafiava a imaginação, um sinal de que a quietude era um exercício contra a perturbação da loucura alucinatória dos transes oníricos, o embusteiro que se jogava hipnotizado do penhasco, achando que iria voar, e sua morte suicida como um ser de asas que nunca existiu e que se espatifou no chão duro de sua finitude. Este era o jogral, ele se matou depois de falhar em sua peça de comédia, o bobo que se cortou depois de uma queda, o fraco da desdita que se jogou, que teve a queda definitiva depois de cair, o suicida que nem poeta era, o que conheceu a sua morte e nunca mais poderá rir.
Tarthang já sabia o que poderia acontecer ao que espera agradar com salamaleques, vira um joguete de seu próprio fracasso, e o sol só brilha a quem quer a si mesmo, a quem se edifica para si, a construção de uma alma forte que desafia os olhares, pois nunca será o jogral agradável que ri para fazer cena e chora por ocultar seu vazio. Os lamas então saíram de tarde com mais balões coloridos, os poemas de fogo foram embutidos em tais balões, em Lhasa tinha uma paz imortal que nada pedia ao sol, apenas agradecia. Tarthang meditava por mais uma hora, e a certo momento de um sol vermelho, levitou e entrou em um transe em que viu Shambala novamente, a lhe ensinar sem falar novas intuições que ele nem suspeitava, um êxtase e mais um dia vívido como fogo.
Depois de uma semana, voltei para Katmandu, tive a inspiração de fazer um poema esteta e bem afetado, um rito parnaso que empolava em língua morta, a fazer uma versão aguada adrede de uma experiência mística, tentava falar do jogral e de seu fracasso triste, e de como o sucesso só se fortalece ao não atender a qualquer expectativa, mas à verdade de valores inesperados, como um soco na barriga que dobra as línguas de almas mortas e sebosas.
Katmandu teve uma festa na noite em que estive lá, ao pé do Himalaia eu vi mulheres e crianças felizes em meio de uma pobreza, nada faltava, pois as ambições ali tinham virado uma quietude que me lembrava do sol de Lhasa, e o degelo da agonia que tinha passado depois de ver Shambala dançando na nuvem, com Tarthang flutuando a dizer que nada se salvava, as poeiras sumiriam no éter, o bardo provaria que não teria mais nada pela frente, o vento nos levaria para além, e nunca se soube do infinito o que ele nos diz, o céu sempre silencia, e assim se entende tudo no silêncio.

Gustavo Bastos – POEMA EM PROSA – 14/03/2020



Nenhum comentário:

Postar um comentário