PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 14 de dezembro de 2014

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

   Criada por lei aprovada no Congresso em 2011 e instalada no ano seguinte, a Comissão Nacional da Verdade assumiu a atribuição legal de investigar os crimes de violação aos direitos humanos praticados no Brasil entre 1946 e 1988, mas seu foco, evidentemente, ficou nos anos de chumbo, isto é, a ditadura que durou 21 anos, de 1964 a 1985. Temos agora o fim dos trabalhos da comissão, o que resultou nas 4,4 mil páginas do relatório.
   Certo que houve problemas no caminho, sobretudo o embate entre dois grupos dentro da comissão, implicando num desempenho muitas vezes errante. Os primeiros meses de trabalho da comissão foram marcados por divergências internas que separaram um grupo liderado pelo diplomata Paulo Sérgio Pinheiro e pelo advogado José Carlos Dias, este ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, grupo que defendia uma atuação mais discreta, isto é, sem os holofotes da imprensa, e que só divulgaria o relatório final, e outro grupo, este que tinha o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles  e a advogada Rosa Cardoso, que pressionavam pela ampliação do debate público e a divulgação de relatos parciais para tentar envolver a sociedade no processo. Tal disputa entre estes dois grupos culminou no abandono da comissão em 2013 por Fonteles.
   Dentre os resultados apresentados pelo relatório, estão dados importantes: a estimativa da CNV é a de que houve cerca de 20 mil torturados, mas há dificuldade de se chegar a um número conclusivo. Dos aspectos listados da atuação da repressão, pode-se enumerar 30 tipos de tortura, dentre elas, incluem-se: os choques elétricos, palmatórias, cadeira do dragão (assento que dava choque), pau de arara, afogamento, geladeira (caixa de isolamento acústico onde as vítimas eram submetidas a calor e frio intensos) e, por bizarro que pareça, se não fosse uma tragédia, o uso de animais nas celas para aterrorizar os presos, dentre eles, cobras, ratos e até jacarés.
   Dos 191 mortos listados pela comissão, a maioria abrange a ditadura 1964-1985. Dos 243 desaparecidos, 35 tiveram o seu paradeiro identificado, 3 durante os trabalhos da comissão. Foram listados ainda 377 responsáveis pelos crimes da ditadura, entre eles, os cinco generais-presidentes, Humberto Castello Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).
   A CNV dividiu os responsáveis pelos crimes da ditadura em três grupos. O primeiro, responsabilidade político-institucional, incluindo os presidentes militares e os ministros das três pastas militares. O segundo, responsabilidade pelo controle de gestão e estruturas, que incluem os comandantes das unidades das Forças Armadas e dos Destacamentos de Operações de Informações/Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). E o terceiro, os de responsabilidade pela autoria direta, ou seja, os que faziam o serviço sujo nos porões da ditadura, que inclui 258 nomes, entre civis, e uma maioria de militares. Dentre as informações relevantes do relatório final da CNV, está que esta traça a linha de comando durante a ditadura que levou à prática sistemática de tortura.  
 Dentre as 29 recomendações da CNV está a revogação parcial da Lei de Anistia, de 1979, para punir torturadores e outros agentes públicos e privados que cometeram crimes que violam os direitos humanos. Quanto a esta recomendação envolvendo a anistia não houve consenso, um dos integrantes da comissão, José Paulo Cavalcanti, discordou dos cinco colegas, lembrando que em 2010 o Supremo Tribunal Federal manteve a validação da Lei de Anistia. Dentre outras recomendações estão a de que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade sobre as violações de direitos humanos durante a ditadura, refutando a tese de que houve somente alguns poucos casos isolados.
  As outras recomendações incidem sobre o sistema penitenciário, as Forças Armadas e as forças de segurança pública, como a desmilitarização da PM e a unificação das forças policiais existentes. A CNV também pede a revogação da Lei de Segurança Nacional de 1983. Outra recomendação está na proibição de festejos oficiais que celebrem o golpe de 1964. Outro resultado do relatório está na listagem de 27 unidades militares que funcionaram como centros de repressão, tortura e morte na ditadura, além de onze centros clandestinos onde se deram essas violações. São os casos da Casa da Morte, em Petrópolis, e da Casa Azul, em Marabá, no Pará.
   Para defender a recomendação de revogação da Lei de Anistia, a CNV cita o Direito Internacional, além de uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2010, entendeu que a norma é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que vai de encontro com a anterior validação da lei pelo Supremo, algo que pode criar a necessidade de uma nova jurisprudência pelo mesmo tribunal. “A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o Direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a Humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.” Diz o relatório.
   Qual seria o sentido, então, desses dois anos e sete meses de investigações, senão como peça histórica? Uma vez que o Brasil é o único país do Cone Sul que mantém uma Lei de Anistia criada com o fito de proteger torturadores e assassinos, o que se choca frontalmente com a interpretação mundialmente aceita de que crimes contra a Humanidade são imprescritíveis.
   Por sua vez, esta comissão não conseguiu avançar muito na localização de restos mortais, uma vez que houve falta de colaboração por parte dos militares. As Forças Armadas boicotaram sistematicamente os trabalhos da comissão. Poucos agentes da repressão, a exemplo do delegado Cláudio Guerra, da Polícia Civil do Espírito Santo (ver livro Memórias de uma Guerra Suja, em que o mesmo dá um depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros), e do coronel reformado Paulo Malhães, encontrado morto em sua residência em abril deste ano, falaram com todas as letras o que de fato houve nos meandros da política de tortura e desaparecimentos da ditadura militar. A grande maioria optou pelo silêncio, negou as denúncias e até mesmo nem atenderam à convocação da comissão.
   Por conseguinte, houve a permissão de acesso dos ex-torturados às instalações onde se efetuaram os atos de tortura, embora com uma sistemática negativa à cessão de documentos da época. O único passo importante dado pela comissão para os familiares das vítimas foi o reconhecimento de que as graves violações aos direitos humanos foram uma política de Estado, e não atos isolados. Às vítimas, Wadih Damous, presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, prometeu levar adiante os trabalhos de investigação, e que do relatório nacional, este será ampliado nas investigações aprofundadas do Ministério Público e pelas comissões locais.
   Pelo que se pode ver das enumerações acima, quanto ao trabalho e resultado das investigações da CNV, podemos depreender que há dois caminhos: encará-la como peça histórica e assunto encerrado, ou como o primeiro passo para a discussão pública a respeito da Lei de Anistia, o que inclui se haverá a necessidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) criar uma jurisprudência que ainda não existe, uma vez que pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal lei vai contra os princípios desses direitos.
   Já que a Lei de Anistia do Brasil representa uma reconciliação que se deu em circunstâncias históricas específicas, em que tal acordo era quase incontornável, e que agora quer se fazer valer como norma atualizada, e que, na verdade, não está de todo em acordo com o direito internacional. A discussão da Lei de Anistia passará pela jurisprudência do Supremo, sopesando a validação da lei com normas reconhecidas internacionalmente.
   O embate constitucional se dará no enfrentamento com tratados assinados por esta mesma nação. Ou seja, o constitucionalismo e sua interpretação terá de ser feito tanto com o resultado do relatório da CNV e suas recomendações, como por algo que ultrapassa, ao fim, a mera jurisprudência de um tribunal, as violações de direitos humanos.  


Artigo – Gustavo Bastos, filósofo e escritor, 14/12/2014.  

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