PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 29 de agosto de 2017

HAMILTON NOGUEIRA – DOSTOIÉVSKI – PARTE II

“Eu amo o realismo, um realismo tangenciando o fantástico – diz Dostoiévski”

O ESPÍRITO DO MAL EM OS POSSESSOS

Dostoiévski faz com alguns de seus personagens uma ligação entre características humanas e angélicas, mais exatamente no aspecto de anjos caídos, isto é, demônios. Tais personagens demoníacos se imiscuem na trama dos atos humanos para provocar a desordem, num movimento de desagregação sistemática, sutil, e muitas vezes manhosa, que revela como a inteligência voltada ao mal ganha caráter demoníaco por arte do ardil que reina em ações de manipulação como são próprias aos demônios encarnados.
Tais movimentos desses personagens na trama aparecem como provocadoras de certas atmosferas angustiosas e de pavor, e que na inspiração e no trabalho literário dostoievskianos ganham uma intensidade sui generis pela mão deste grande romancista, um dos melhores que já surgiu na literatura mundial. Dostoiévski consegue, segundo Hamilton Nogueira “comunicar-nos as maiores vibrações de ordem espiritual e afetiva, em poucas palavras, em traços rápidos, o suficiente para conter o máximo de energia de ideias e de sentimentos”.
Portanto, o poder psíquico de Dostoiévski está na condensação máxima de intenções num plano muitas vezes violento e bem medido, em que as artes humanas nos aparecem no romance dostoievskiano como exemplos bem acabados da natureza humana muitas vezes vista e descrita em experiências extremas, tal como é próprio a todos nós sermos autênticos quando nos vemos em situações-limite, no que em Os Possessos isto aparece em tramas que envolvem manipulação, suicídio e assassinato. 
Stefan Trofimovitch, em Os Possessos, recebe uma visita enigmática de Liputine, mas, ao vê-lo, tem uma sensação de horror ou de desgraça próxima, mas, contudo, Liputine representa ainda um tipo inferior de possesso, isto se este for comparado ao satânico Pedro Verkhovenski, a maior figura diabólica criada por Dostoiévski. Tal personagem desliza com terrível desenvoltura e liberdade no romance Os Possessos, e tal atuação se dá como um agente que provoca a vaidade dos outros e que também lhes inflama desejos, e de tal modo que estes outros se tornam manipuláveis ao extremo.
Verkhovenski é o principal agente da tempestade que se desencadeia em Os Possessos, como o centro no qual se ligam os fios das relações e como o grande responsável por vários destinos que vão afundar nas sombras, em tramas alucinantes que colocam tais personagens como seres subjugados pela força demoníaca de Verkhovenski. Este então atua como uma força irresistível de aniquilamento com um tipo de ação dissolvente e corrosiva. Verkhovenski tem em suas mãos almas dominadas que se tornam peças inúteis e descartadas depois que este endemoninhado consegue seu intento.
O realismo dostoievskiano tem um tanto de um movimento que é de ascensão do real ao fantástico neste romance Os Possessos, no que temos o próprio Dostoiévski nos dizendo: “Eu amo o realismo, um realismo tangenciando o fantástico – diz Dostoiévski. – O que para os outros é o fantástico, para mim constitui a essência mesma do real”. Dostoiévski traz em seus personagens um drama humano que é uma luta destes para sair de uma zona subterrânea, vencer o mundo dos sentidos que nestes atua como um tipo de prisão, e que é a luta do homem autêntico contra a mediocridade, um terreno buscado na área do sonho contra o homem de ação, o que é também um terreno escorregadio em que se perdem tais personagens.
Temos então que tais personagens em sonhos fora do terreno da ação acabam por ser dominados por outros que são centros atuantes de manipulação e ardil, a prática do mal atravessa outras almas desprevenidas, e temos então uma junção na trama entre lutas contra a ação cotidiana pelo sonho do fantástico e a invasão demoníaca dentro destas almas que sucumbem depois de ver-lhes atiçadas as vaidades e os delírios de grandeza e glória, como presas perfeitas para a arte do mal destes demônios em forma de gente, como é o caso do satânico Verkhovenski.  
Verkhovenski envolve de tal modo os outros personagens que estes aparecem como presas em tramas ocultas de caráter diabólico, em que a salvação pelas forças humanas se perde em meio ao sombrio e malicioso autor de tramas manipuladoras que é Verkhovenski, com vítimas tais como Kirilov e Chatov. Kirilov que, por sua vez, vive um sonho suicida em que tal ato capital é de um tipo de alucinado que ele representa na sua utopia insensata, pois associa isto com uma ideação de renovação da humanidade pelo suicídio, quebrando o limite humano feito pela crença em Deus ou de um sofrimento infernal em decorrência de tal ato, que seriam possíveis meios de evitar esta ideia de morte total.
Verkhovenski, então, manipula Kirilov ao bel-prazer e consegue dele o compromisso suicida junto com a confissão falsa do mesmo por carta do assassinato de Chatov. Pois é Verkhovenski que mata Chatov com um tiro na testa, pois ele e seu bando consumam a cena, confirmando este assassino frio tanto como o centro das ações como a figura demoníaca que tem no ardil seu leitmotiv. Verkhovenski é a figura demoníaca principal do romance dostoievskiano, tanto em seu poder de manipulação e ardil como em seu ato extremo de violência, pois age e faz agir com a desenvoltura própria de um demônio encarnado.
O único personagem que reconhece em Verkhovenski uma figura demoníaca, contudo, é Stavroguine, e mesmo assim este sofre o seu assédio, tal como sofreram por esta mesma manha os personagens Kirilov e Chatov, e este demônio atua, então, obsessivamente sobre Stavroguine, começando pela lisonja em que lhe inflama a vaidade revolucionária com sonhos de grandeza, e que neste lugar lhe demonstra a fragilidade humana, invariavelmente presas fáceis tanto da sensualidade como do orgulho. Da ascensão de Stavroguine resta ao fim a destruição dos laços sociais deste por obra de Verkhovenski, e isto até levá-lo a um estado de tortura extrema que causará o seu suicídio.
O romance Os Possessos é uma das mais fulminantes obras de Dostoiévski, a qual figura como obra-prima da literatura universal. Neste romance em que o real ganha ares de fantástico temos personagens imortais como Kirilov, Verkhovenski e Stavroguine. E os demônios que Dostoiévski nos apresenta são o lado obscuro da natureza humana, com formas de manipulação revoltantes e alucinadas, demônios estes que representam o interior dos personagens dostoievskianos mais ardilosos de que se tem notícia, imagem do inferno consumada de forma magistral em sua invenção máxima do mal que é o personagem Verkhovenski.
A presença dos demônios na tragédia de Dostoiévski é esta que confere a universalidade humana em que se misturam as luzes espirituais e da razão com o lado tenebroso em que se fundam a dor e o desespero, os atos alucinados no limite e no extremo do sofrimento, as torturas manhosas e o conflito que busca o esplendor do enigma da vida, a vida atormentada e a loucura, o aniquilamento e a luz de uma última salvação, a veia do mal e o sentimento religioso de uma ascensão espiritual, neste paradoxo de céu e inferno na terra, de demônios como homens que vão do real ao fantástico neste romance Os Possessos.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/35513/17/dostoievski-eu-amo-o-realismo-um-realismo-tangenciando-o-fantastico
 


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