PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 28 de novembro de 2015

FERREIRA GULLAR, A POESIA DA CRÍTICA

   Já de saída de alguns ecos neoparnasianos, como em Sete poemas portugueses, no seu livro Luta Corporal, Ferreira Gullar vai ao caminho novo, bem próprio e moderno, de deixar os cumes de uma suposta alta poesia e de fato partir dentro das entranhas, sua luta corporal, a presença do corpo e de seus movimentos, do esforço hercúleo de expressão que vem do instinto, como se pode ver no poema que aqui transcrevo (abaixo) que é o “Carta ao inventor da roda”, poema que me impressionou muito quando me deparei pela primeira vez com a produção poética de Gullar. Sempre que volto a lê-lo, este poema sempre aparece de súbito, como muitas vezes, ao abrir aleatoriamente a antologia de Gullar, Toda Poesia, eu abrir exatamente neste poema, não “ao acaso” ou sabe-se lá.
   Gullar, muito conhecido pelo esforço brutal que deu à luz “Poema Sujo” de 1975, numa situação de exílio em que o poeta não sabia ainda se viveria mais para contar histórias ou escrever, foi uma mistura do desespero e da obscuridade daqueles tempos, e aqui venho com este poema em prosa que, como disse, me marcou por sua sujeira tão belamente composta. Gullar já dá o arranque da questão posta diante do inventor da roda como uma interpelação crítica que se transmuta em dilema e abismo civilizatório, sua questão é a da produção do mundo que começou com esta invenção.
   “Carta ao inventor da roda”: a luta corporal neste poema é intensa. A presença fisiológica concatena com uma guerra retórica do poeta ao metaforizar com mestria todo o símbolo cadavérico da roda e seus efeitos. O poeta dá à sua revolta com este inventor um cabedal poético de motivações contrárias à invenção, pois o que se coloca em todo o poema, para além da roda, é todo o mal civilizatório de suas engrenagens, pois de todo o tempo, em toda a História e seu processo, o poeta julga, em sua coda, que, não resta nada senão a ironia “numa saudação à tua memória inexorável.”

CARTA AO INVENTOR DA RODA

O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus testículos suados; inventor, pretensioso jogral dum tempo de riqueza e providências ocultas, cuspo diariamente em tua enorme e curiosa mão aberta no ar de sempres ontens hojeficados pela hipocrisia das máculas vinculadas aos artelhos de alguns plantígrados sem denodo. Inventor, vê, a tua vaidade vem moendo meus ossos há oitocentos bilhões de sóis iguais-desiguais, queimando as duas unhas dos mínimos obscurecidos pela antipatia da proporção inelutável. Inventor da roda, louvado a cada instante, nos laboratórios de Harvard, nas ruas de toda cidade, no soar dos telefones, eu te amaldiçoo, e principalmente porque não creio em maldições. Vem cá, puto, comedor de aranhas e búzios homossexuais, olha como todos os tristíssimos grãos de meu cérebro estão amassados pelo teu gesto esquecido na sucessão parada, que até hoje tua mão desce sobre a madeira sem forma, no cerne da qual todas as mecânicas espreitavam a liberdade que viria de tua vaidade. Pois bem, tu inventaste o ressecamento precoce de minhas afinidades sexuais, de minhas probabilidades inorgânicas, de meus apetites pulverulentos; tu, sacana, cuja mão pariu toda a inquietação que hoje absorve o reino da impossibilidade visual, tu, vira-bosta, abana-cu, tu preparavas aquela manhã, diante de árvores e um sol sem aviso, todo este nefasto maquinismo sevicioso, que rói meu fêmur como uma broca que serra meu tórax num alarma nasal de oficinas de madeira. Eu estou soluçando neste edifício vastíssimo, estou frio e claro, estou fixo como o rosto de Praxíteles entre as emanações da ginástica corruptiva e emancipadora das obliterações documentárias. Eu estou, porque tu vieste, e talhaste duma coxa de tua mãe a roda que ainda roda e esmaga a tua própria cabeça multiplicada na inconformidade vulcânica das engomadeiras e dos divergentes políticos em noites de parricídio. Não te esquecerei jamais, perdigoto, quando me cuspiste o ânus obliterado, e aquele sabor de alho desceu vertiginosamente até as articulações motoras dos passos desfeitos definitivamente pela comiseração dos planetoides ubíquos. Agora estou aqui, eu, roda que talhaste, e que agora te talha e te retalha em todos os açougues de Gênova, e a tua grave ossada ficará à beira dum mar sujo e ignorado, lambido de dia ou de noite pelas ondulações dum mesmo tempo increscido; tua caveira acesa diante dos vendilhões será conduzida em pompa pelos morcegos de Saint-Germain-des-Prés. Os teus dentes, odioso berne deste planeta incorrigível, serão utilizados pelos hermafroditas sem amigos e pelas moças fogosíssimas que às duas da manhã, após toda a sorte de masturbação, enterram na vagina irritada e ingênua os teus queixais, caninos, incisivos, molares, todos, numa saudação à tua memória inexorável.

Ferreira Gullar, do livro Luta Corporal (1950-1953)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26109/17/ferreira-gullar-a-poesia-da-critica 

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