PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 22 de novembro de 2015

ANA CRISTINA CESAR E SUA POESIA ORIGINAL (PARTE II)

   Este epílogo, o poema bem conhecido de Ana C., isto é, o poema sobre as luvas de pelica, tem uma condução narrativa sui generis. Começa como uma exploração de uma valise, de onde sai o mundo inteiro em cartões, contudo, o primeiro objeto é um par de luvas. Reparem, a poeta estava de mãos vazias, bolsos vazios, chapéu também vazio. O vácuo da poeta encontra todas as coisas na mala, na valise, como queiram.
   De um passo ao outro, de mãos vazias, agora Ana C. veste as luvas, mãos esquerda e direita, ela se dá bem com as luvas de pelica, sua marca poética, uma das mais famosas de sua obra. Na mala está outras coisas: um mundo de cartões, ou melhor, cartões-postais do mundo, imagens surgem, esta incursão na mala faz todo o poema, conduz como um retirar de coisas que vão entrando como imagens no próprio poema, isto é, a mala, valise, é o próprio poema epílogo.
   Por se tratar de um poema narrativo, temos aqui uma linguagem objetiva, moderna, alternativa até, e que tem na sua cadência todo um mundo de imagens que vira um grande jogo ... Estranha valise! Ao largo aparecem palavras rabiscadas, e então o poema se fragmenta como nunca, a quebra e giros vão do espanto que surgiu de uma simples mala, de uma estranha coleção de coisas que viraram um poema, o poema das luvas de pelica, o poema da valise, dos cartões-postais, o poema epílogo.


EPÍLOGO

                                                     I AM GOING TO PASS around in
a minute some lovely, glossy-blue Picture postcards.
Num minuto vou passar para vocês vários cartões-postais belos
e brilhantes.
Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção.
Reparem nas minhas mãos, vazias.
Meus bolsos também estão vazios.
Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas.
Viro de costas, dou uma volta inteira.
Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão
escondido, nem jogos de luz enganadores.
A mala repousa nesta cadeira aqui.
Abro a mala com esta chave mestra em cerimônias do tipo, se
me permitem a brincadeira.
A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo,
É – adivinhem – um par de luvas.
Ei-las.
Pelica.
Coisa fina.
Visto as luvas – mão esquerda ... mão direita ... corte ... perfeito.
Isso me lembra ...
Um jovem artista perdido na elegante Berlim da Belle Époque,
sozinho, em vão procurando por prazer. Passa um grupo ruidoso
de patinadores, e uma mulher de branco deixa cair a sua luva,
uma luva com seis botões forrados, branca, longa, perfumada.
O jovem corre, apanha a luva, mas reluta se deve aceitar ou não
O desafio. Afinal decide ignorá-lo, guarda a luva no bolso e volta
caminhando para o seu hotel por ruas mal iluminadas.
Mas assim me desvio do meu propósito desta noite. Depois se
houver tempo concluirei esta história fantástica, onde entra até
uma carruagem de Netuno, um morcego gigantesco que sorri e
foge sempre, e um oceano de folhagens.
Quem sabe esta não é exatamente aquela luva? No entanto
temos aqui não apenas uma, mas o par; é muito delicado e
contrasta com este terno preto.
A valise de couro conterá objetos de toucador?
Não, meus amigos.
Como todos podem ver, mediante uma ligeira rotação que faço
na cadeira sobre a qual ela se encontra, a valise contém apenas
papel ... cartões ... dezenas, talvez centenas de cartões-postais.
Estranha valise!
E agora, atenção.
Com minhas mãos enluvadas – um momento enquanto abotoo
uma ... e depois outra ... cuidadosamente ... não há fraude ... ajusto
os punhos, assim ... – agora com estas mãos, ao acaso, apanho
o primeiro cartão-postal, que contemplo por um instante sob a
luz ... há um reflexo ... mas vejo aqui uma moça afogada entre os
juncos ... passo o primeiro cartão, por favor passem uns para os
outros ... segundo cartão: a Avenida Atlântica ... vão passando ...
cadilaque em Acapulco ... Carmem ... Centro Pompidou ... igreja
no Alabama ... castelo visto do levante ... dois cupidos de óculos
escuros ... o ladrão de joias e a duquesa ... e este aqui, Fred Astaire
em Lady be good, ou não faz arte, menina ... nostálgica ... e uma
Marilyn, e aqui a praia em Clacton com bingo e fish and chips ...
O Boeing da Air France ... bondes subindo a ladeira em São Francisco ...
um urso-polar no zoo de Barcelona ... Salomé ... Londres ...
outra Salomé ... vão passando, vão passando.
Meus amigos, isto é uma valise, não é uma cartola com coelhos.
Temos cartões para a noite inteira.
Alexandria ... Beirute ... Praga ...
Sejam misteriosas, um quadro de Paul ... Gauguin, seguido de
O que, estás com ciúme? uma pergunta malandra em tom
capcioso, assim tomando sol na praia.
E outros de museu aqui:
O olho, como um balão bizarro, se dirige para o infinito;
No horizonte, o anjo das certitudes, e no céu sombrio, um olhar
Interrogador;
A dama em desespero;
O sangue da Medusa;
As mães malvadas;
Tranco a porta sobre mim;
O beijo;
Outro beijo;
O ciúme novamente,
E agora o verdadeiro Morro dos ventos uivantes, seguindo de
uma curiosa competição esportiva, e de alguma pornografia, e
de um padrinho Cícero.
Meus amigos, eu não sei onde nós vamos parar.
Continuo a passar mais rapidamente estes cartões. Reparem nesses
bolinhos presos com elástico, e aliás ia me esquecendo de
dizer, podem e devem verificar se no verso há palavras rabiscadas,
este aqui por exemplo, “Para quando serão nossas próximas
horas exquisitas?”, esquisitas com xis, ou este aqui, “O Posto
6, onde passei minha infância e minha adolescência, como está
mudado!”, ou este outro, ouçam só, “Fico tentando te mandar
um pedacinho de onde estou mas fica faltando sempre”. E um
com letra bem miúda: “Acalmei bem, me distraí, não penso tanto,
penso a te”. Acho que o final está em italiano. Vão lendo, vão
lendo, a maioria está em branco mesmo, com licença.
Eu preciso sair mas volto logo.
Um cisco no olho, um pequeno cisco; na volta continuo a tirar
os cartões da mala, e quem sabe, quando o momento for propício,
conto o resto daquela história verdadeira, mas antes de sair
tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira.

(Do livro Luvas de Pelica de Ana Cristina Cesar)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/25988/17/ana-cristina-cesar-e-sua-poesia-original-parte-ii     

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