PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 21 de dezembro de 2014

BORRASCA

   Penso em ases sob nuvens tóxicas. Repenso nas falésias, outro mundo se vê, como na estrada que se urra bêbado, eu e meu cadáver em lençóis, o mar atávico, o buda em formol, as índias holandesas com laranjas no sol, eu e meu ventre em dança de mel, como a nave que desperta em notas de coração. Eu elevo o mártir, o fantasma na noite. Cada poema é um vidro de absinto, um forro no peito que ataca o fogo, um peito de fúria que do fogo vê o mistério na capa do disco em que mora um deus hindu.
   Luto, o sonho do idiota. Nem penso em matá-lo, jaz o vagabundo, nem sabe sê-lo de modo elegante. Ao átrio das óperas, o lenho requer um esforço matinal, um áureo canto na asa morta do arrebol. Lanterna na masmorra, o poeta não quer nada, o poeta tem tudo. Já vi na sina dos disparos a terra gritando lua nova. Já vi terríveis sonhos da bacanal, e nem ri ao terror de que as mesquitas pegavam a sanha do corão como fome em alá. Buracos no peito não são a salvação, foge à crua mansarda, foge ao terreno baldio com ondas no corpo que quer a morte. Jaz no limo seu suicídio, e mais vive pois já está ressurrecto.
   A parcimônia destes enredos não temem o carro capotado, não temem o navio à pique, não amam a luz dos cantos já estudados, cantam a mísera senda dos notáveis. As minhas sutis fantasias foram esquecidas, as modas foram ao olvido. Defronte à torre as línguas descem na caminhada dos universais, cada signo oferece seu enigma, o profundo da alma se enobrece com tal intento, o poema desanuvia os esquemas lógicos, desentope os fundos da razão. O lodaçal dos palácios não tem a fortuna que há na meditação. Serás o príncipe? Ou serás o animal racional do inconsciente coletivo? Se o tempo é senhor de tudo, faço de eterno o ventre rítmico que há na funda têmpora do caos. A rima socorre o doente, o verso é seu dente, seu dedo em riste. Segredos do oriente viram brumas do silêncio, cada gesto do corpo se dá no ritual das mortificações, Deus está no olho ao tempo da visão, o empenho da riqueza está sempre com o olhar de uma clínica de tempestades. Venho de longe vinha, de longa viagem, atrás de mim um séquito mortal que afana o sino das horas, se perde o ímpeto se ficarmos ao ermo encanto das obrigações morais. O tento de fauna é sorrir ao temor, o tempo que se asila em luz azul tempera o rio das astúcias em que escorre a urgência, a meditação profunda e do abismo tem razões bem mais sérias que o vício acadêmico das repetições, do ritual do intelecto eu guardo a chave, e o resto do tempo não retenho a forma num passo já dado, pois o que está adiante é meu ouro, e o que detrás se assusta, não é meu engenho.
   Sorte, o caminho do eterno retorno traz musas no sol, a lua saberás quando vê-la, e não se dará milagre, somente o ritual simples da verdade. Na água do tempo, o poeta se vê desde sempre ébrio de infinito, perdido em êxtase, pois do eterno, sua morada, não temos o fim e o início, a busca da origem se consome em si mesma, ouroboros é a obviedade suprema, a letícia é desvelar o próprio fogo, a delícia dos jardins são febres de Epicuro, e a chave mortal do entendimento da matéria funde Demócrito com Heisenberg. O paradoxo é um koan divino no vão improvável que subverte os vícios cartesianos, o supremo entendimento virá de um logos autogerado sob meditação, a sapiência nascerá da longa viagem, ao seio e à entrada que sai de todos os lugares, como uma fotografia de auras que são o vapor da sensação.
   Nos mistérios das mesas girantes os gênios serão desvendados, a utopia de ácido decifrará do silêncio o grito totêmico que mora na floresta, desde o canto mais idiota do período quaternário. Na luz do espírito a ciência brilhará, a profecia se dará ao largo dos três próximos séculos, os atavios do estudo da matéria fusionarão em átomo a saída para o outro mundo, e a vinha regurgitará as asas que nasceram em mim. Sob o jugo mortificante o rego da poesia será só a escritura em que tais loucuras estarão já registradas de antemão, e na língua os poetas formarão, entre si, em perspectiva histórica, a costura dos universais em forma de metáfora, língua comerá língua, e a sincronia junguiana formará um grande e denso babel com sentido unívoco.
   Burroughs será ouvido: a palavra é um vírus, pois, dela se dá a vidência, numa prosa espontânea que o gerador destes símbolos já conhece, pois o que descansa dos sete dias já viu o que veremos, tudo se dá ao giro do mundo, e ocidente encontra oriente, esta sendo a chave do antigo com o milênio de aquário, e o sinal se conhece em profundo e sábio respeito, a moral dará lugar à natureza cosmológica dos gestos, os signos serão disciplinados com uma trans-história do atávico com o devir, o tempo não terá mais linearidade, a língua do cosmos será simples e plácida como os poemas que os doidos de pena urraram em hospícios num canto esquecido da galáxia. Miserável será o Anjo destas letras contorcidas de veneno, o eterno vos fala com os dentes da razão. Nunca se dará o fim, nunca se dará pois tudo jaz no eterno, assim como a dança e toda arte que delira como um diamante, as pedras já falam do silêncio, e ao olhar fica o dom vinhateiro de uma firme embriaguez de sonho desperto, a hipnose me fala dessas coisas, e o poema só as traduz.
   Vomite agora teu delírio, e o surdo calará ao ritmo da pena, cada senhor de si morrerá sem ver a chama que nasce da noite fundida ao terror, os corpos gloriosos serão a paixão enlouquecida do fim da língua, o signo de mortalha vencerá a morte com desdém de quem vai morrer, a longa viagem não acaba e nunca começou, o sempiterno é o ágape dos filósofos da compaixão, guerrear na luz é para quem sentiu a glória no peito como o sopro sutil do paraíso perdido, ouroboros conta a história da maçã, o dente do tempo desde a queda, o fim nu da História jamais será visto por carne mortal, vamos ao Espírito por óbvio que seja, as metafísicas tentaram antevê-la, mas com um reflexo pétreo de um prisioneiro do tempo. A torre de mármore encontra a luz quando da queda sente o voo, e voar é para os astutos.
   A torre é infinita, o tempo é recorrente, a luta pelo imortal é o campo de batalha que soma fogo com fogo, a poesia resgata o símbolo das intempéries da razão, o dito da língua sai da dormência que vai e volta com um apego ao intenso, pois do coração se sabe coisas infindas num átimo, e não vemos deste qualquer olho desperto, em volta se vê lama, o átimo é indolor, se meditas o caminho, então já fizeste, se meditas o fim, então já estiveste lá. Tudo que retorna já foi, e sempre seremos, de tudo que será isto é o que já fomos, da alma ao encanto, o fogo encontra a água com sabor de terra, o ar da terra é fogo com sede de água, o coração só soluça ao ver esta anarquia dos elementos, como em Empédocles, ele viu Heráclito nadar no rio, Caronte navegava com espanto ao puxar a corda do afogado, o enforcado se foi, a terra é eterna como o céu, tudo é um. Nirvana silencia, satori é uma estrada do átimo que renasce no mar, o oceano que vai e vai e nunca chega, extemporâneo é o vinho que lá multiplicado viveu em cruz e espada, cada adaga que mata é uma barafunda da peleja, cada poema que corta, faz da cicatriz marca e signo em que a iluminação já foi sentida, e o milagre rasgou o coração do carrasco com um olho vítreo de espanto, a poesia se espanta, a filosofia se espanta, a religião tenta o socorro do espanto, a ciência decodifica uma série nascida de espantos, e a arte espanta por si mesma. Como há tanto sentido, e como há tanta sensação, e como há tanta razão, e como há tanto delírio! Tuas armas de espanto já viram diabinhos e anjinhos circulando com graça enquanto corrias, nada é mistério em tudo, tudo é mistério por nada.


Gustavo Bastos. Poema em prosa. 21/12/2014  

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