PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 27 de dezembro de 2014

ALICE ACORRENTADA

                                              
   Alice, nascida em 7 de maio  de 1903, num vilarejo no fim da estrada, longe da cidade principal, tinha uma família abastada. Tinha outros três irmãos, estes mais velhos, todos homens. Seu pai, Roberto, era caçador de aves, ganhara prêmios inumeráveis, pois já tinha aprendido tiro quando serviu ao Exército dos 18 aos 21 anos. A mãe da Alice morreu no parto da mesma, seu nome era Bianca. Alice cresceu num ambiente rural, era paparicada por todos os seus irmãos e, sobretudo, pelo seu pai. Aos três anos passou a ter um amigo imaginário de nome Buddy. A família estranhava aquela nova fixação da menina Alice, mas deixavam-na com seus brinquedos e sua imaginação quase delirante.
   Aos 6 anos, Alice se revelou uma menina superdotada, principalmente em matemática e lógica, a qual aprendera sozinha na biblioteca do pai, pois era a única, além do pai, que lia livros. Seus irmãos eram todos esportistas, o mais velho, caçador de aves e animais, o segundo, atleta de corrida e salto, o terceiro, um desses novos jogadores de futebol. Alice, aos sete anos, inventou um teorema e apresentou ao seu preceptor que não entendeu nada e disse para ela se ocupar de outras coisas. Alice obedeceu e decidiu que faria dança, foi atrás de um professor, a experiência não deu muito certo, durou 6 meses, mas Alice era um desastre.
   Alice então foi enviada à cidade pelo pai para ser educada por um novo preceptor, o qual tinha cátedra em letras, e ela então descobriu a literatura, seus estudos de matemática e lógica só retornariam aos 16 anos, e o que depois viria seria decisivo. Mas, dos 8 aos 12 anos, ela foi educada exclusivamente em literatura, escreveu contos loucos, um deles, aos 9 anos, sobre ratos e ratoeiras, uma coisa que ela tinha como experiência na sua casa rural, aonde já havia aparecido ratos e que tinha ratoeiras com queijo para matá-los. Um dia apareceu aranhas caranguejeiras e ela levou um tabefe do pai depois de uma brincadeira de mau gosto com uma aranha de plástico neste dia das caranguejeiras.
   O pai ia visitá-la na cidade com frequência, e se sentia aliviado de vê-la cercada de literatura, pois tivera um mau pressentimento com a tal “história do teorema”. Nada mais certo, o pai de Alice sabia que o lúdico trazia mais segurança para a sua mente imaginativa que descobertas herméticas de fundo misterioso. Alice não tinha tempo livre, tudo era aplicado na feitura de contos fantásticos e leituras intermináveis de Dickens, Dostoiévski, Tolstói, e de tragédias gregas. Aos 12 anos, publicou um conto no jornal da cidade, seu nome estava relativamente conhecido como uma menina prodígio. Mas tal fato alegre era algo que ficaria naquela época dourada, sua adolescência seria algo perturbador, Alice retornaria à matemática e misturaria seus estudos de lógica com magia luciferiana, negra e ocultismo.
   Tudo começou aos quinze, quando abandonou a literatura. Aos 14 anos, publicou seu único livro de contos até então, o qual ficou relativamente conhecido, mas ela tinha interesses conflitantes, e não se decidia em nada. Seu pai ficou sabendo da inconstância de humor da filha pelo preceptor. Roberto enviou, então, seu filho mais velho para morar com a irmã na cidade, com todas as despesas pagas. Disse para ele não tirar o olho da irmã. Pois, da fala do preceptor, Roberto sabia que as coisas tinham ficado um pouco estranhas ultimamente. O preceptor achava uma loucura a ideia de Alice de abandonar a literatura na flor da idade e com nome de peso médio na crítica literária, e não tinha ideia do que ela faria dali para a frente.
   Alice, secretamente, ia a um grupo de ocultistas de magia negra já fazia uns meses. Logo, foi encarada como uma das mestras daquele grupo, o que incluía votos perpétuos à Satã e suas potestades, além de sacrifícios rotineiros de sangue que eram animais como bodes, bezerros, galinhas, coelhos, e ratos. Alice impressionava o grupo de ocultistas, na magia luciferiana foi logo para outra, a magia de necromancia, na qual ganhou graus em dois anos, aos 18 anos misturava um ímpeto de sacerdotisa com pura delinquência. Seu pai não tinha ideia do carma ancestral que sua filha acumulara. O preceptor, coitado, muito menos. Este enlouquecera pelas mãos da mesma, depois de um trabalho mágico, ela tinha conseguido se livrar dele.
   Aos dezoito anos, Alice, em seu grupinho de satanistazinhos doentes, intitulados erroneamente de ocultistas, eram mais delinquentes que mágicos, tudo se misturava ali, num amálgama perigoso e explosivo. Começou uma disputa de poder dentro do grupo. Abbath, homem líder do grupo, junto com Alice, a mulher, que a esta altura tinha o epíteto de Dora, passaram a não se bicar. Abbath (seu nome era Ricardo) queria eliminá-la. Começou a fazer trabalhos para matar Alice.
   Passaram uns meses, e a resistência espiritual de Alice desafiava Abbath, que então, como último gesto, decidiu preparar uma emboscada para Dora (Alice). Ele reuniu o grupo dos ocultistas, e disse que todos tinham que ir num riacho juntos para fazer um trabalho de magia negra com fetos. Todos foram, incluindo Alice (Dora). Só não se sabia que Abbath (Ricardo) tinha chamado a polícia e um médico psiquiatra, através de uma denúncia. Abbath, durante o ritual, e contando o tempo certo de deixar Alice sozinha lá no riacho, disse que todos tinham de sair dali, pois o fim da magia ficaria com a mestra Dora, com a mesma se envaidecendo de tal prestígio, e que era na verdade um embuste para capturá-la.
   Alice ficou ali no riacho, com três fetos mortos, e seus encantamentos satânicos de nervos à flor da pele. Ela incorporava demônios como numa síncope nervosa, apareciam sete nomes ao mesmo tempo. Abbath ficou de tocaia para observar a cilada de sua concorrente no grupo de jovens metidos a adoradores do Diabo. Bingo. Chegaram cinco policiais e um psiquiatra. Alice acabou sendo condenada a dois anos de cadeia, trocados por uma internação no manicômio, por diagnóstico de transtorno de personalidade, e também como paranoia e identidade bipartida, pois parecia um anjo quando chegou ao manicômio, contrastando com sua fúria radical no riacho.
   O psiquiatra de nome Ronaldo a achara uma criminosa e dissimulada, seu crime de matar fetos inominável, mas não conseguia entender seu estado de beatitude repentino depois daquele esfolamento de fetos à meia-noite. No entanto, ele não estava ali para entender, e sim para fazer os procedimentos de rotina, que incluíam eletrochoque, e imobilização por cordas durante tempo indeterminado, pois o caso parecia muito grave.
   Quanto à família, Roberto descobrira que seu filho mais velho não tomara conta de Alice, tinha se rendido à boêmia de um bom vivant em eternas férias, a cidade o seduzira por todos os poros. Roberto ficou enraivecido e tentou trazê-lo de volta para casa, tarde demais, ele se casara secretamente com uma viúva que o sustentava.
   Roberto foi à casa em que morava Alice, no seu quarto, vasculhando suas coisas, livros e mais livros de ocultismo e magia negra, e na mesa uma imensidão de papéis com cálculos matemáticos de outro mundo e o tal teorema maluco que ela guardara como uma relíquia.
   Havia uma tentativa, nos estudos de Alice, de unir a lógica ao espiritualismo, mas era uma bomba relógio de efeitos nocivos o que estava sendo edificado, Roberto chorou ao encontrar seus milhares de contos num canto esquecido de um passado que Alice desdenhara. Roberto decidiu pagar e publicar aqueles contos, pois dois terços daquela imensidão era de inéditos, e logo depois tomou coragem e foi visitá-la no manicômio.
   Alice informou que teve uma visão, e disse que Abbath fez magia negra contra ela num boneco de vodu, mais uma vez Roberto levou a sério, mas o psiquiatra disse que aquilo fazia parte do quadro de perseguição em que ela se enovelara, Alice teve que ser obrigada a acreditar naquilo.
   Roberto disse à Alice que ele publicaria seus contos inéditos, e ela, no entanto, não esboçou nenhuma reação, era indiferente quanto ao destino daqueles escritos, dizia que era parte de sua infância boba e molenga. Neste ínterim, seu estado de beatitude, logo depois que seu pai saíra do quarto em que Alice estava amarrada, virara uma miração alucinógena, um êxtase profundo e sombrio.
   De madrugada, aos olhos do enfermeiro, que foi orientado pelo psiquiatra a deixá-la “curtir seus delírios” enquanto não se recuperava, este viu Alice conversar com uma entidade invisível, o enfermeiro, que era forte, se borrou nas calças e saiu do quarto sem avisar o psiquiatra, que estava de plantão, acompanhando outros pacientes de quadros tão graves como o de Alice, e que só olharia o quarto às 4 da manhã, antes da injeção e de mais uma sessão de eletrochoques.
   No quadro de Alice, cenário tétrico que ela edificara para si, com a contribuição maligna do olho gordo de Abbath, ali naquele quarto, suas conversas com entidades se revezavam com a visão de um anão, dito exú mirim, e de um gigante, de nome desconhecido, que, pelos conhecimentos ocultos de Alice, se tratava de uma entidade de origem alienígena.
   O anão fazia parte do teatro pós-grego, um misto de ritual báquico com magia negra, as visões de fetos e bezerros flutuavam no quarto, enquanto isso o anão apresentava um show de piadas para Alice. Era sua imago histriônica, o anão, exú mirim, não tinha censura, contava trinta piadas para Alice em trinta minutos, ela ria, misturando seu êxtase com sorrisos nervosos de um surto de humor trágico. Aquele show do anão, somente de madrugada, duraria todas as noites de sua estadia.
   Às quatro da manhã, o anão já deixara o recinto, e o psiquiatra viu que Alice olhava para a sua cara e dava gargalhadas nervosas, decidiu então dar mais uma sessão de eletrochoques, ela contorceu-se e dormiu.
   De manhã, na aurora, Alice acordou, e, ao ver o raio de sol na basculante, sentiu uma beatitude espiritual inexplicável, algo como o sintoma prévio de epilepsia de Dostoiévski. Mas ela não teve ataques, não era epilética, ficou durante uma hora sorrindo numa letargia mística, como se já tivesse transcendido o mundo de sofrimento de que falou Buda.
   Às dez da manhã, mais uma sessão de eletrochoques para ver se ela saía da catatonia, que ninguém percebera que era na verdade um estado extático. Ao meio-dia, depois de muita conversa do psiquiatra, o enfermeiro tomou coragem e voltou ao quarto de Alice, e o psiquiatra disse ao enfermeiro para não tirar o olho de Alice, se saísse do quarto com medo novamente seria lotado em outra emergência, bem longe de sua residência.
   Antes da nova noite, o irmão boêmio de Alice apareceu na emergência, olhou Alice e disse para ela que ela estava muito “viajandona”, que tinha que beber ao invés de delirar com magia. Nada feito, embora ela tenha sorrido candidamente para o irmão fanfarrão.
   Chegou a noite, desta vez não houve mais eletrochoques. Alice estava acordada e aparentemente consciente, e até conversava com o enfermeiro, que começou a se afeiçoar por Alice, e disse ao psiquiatra que nunca vira um coração tão meigo, apesar de terem-na encontrado com fetos esfolados num riacho de madrugada.
   O enfermeiro já tinha sido informado por Alice que teriam novas aparições naquela noite, e de que ele não deveria ter medo, pois ele estava com ela, Alice. O nome Dora parecia ter se apagado da memória de Alice. Sua história com a magia negra, embora recente, parecia ter se escondido num lugar de amnésia da sua mente. Quando o enfermeiro lhe perguntou sobre a história dos fetos, ela disse que não se lembrava.
   No meio disso, veio uma visão para Alice e ela viu Abbath sendo devorado por demônios. Ela então descobriu que tinha sido vítima de uma cilada armada por Abbath. Neste mesmo momento da visão de Alice, Abbath, na realidade, estava sendo assassinado pelo grupo dos satanistas, pois ele se demonstrara muito autoritário para com o grupo, que então decidiu sacrificá-lo num ritual de purificação, e também por terem percebido que a presença de Dora (Alice) era importante, e por culpa de Abbath, ela estava no manicômio.  
   Desta vez, a liderança do grupo ficou com Maniac (Rafael), de modo provisório, pois o grupo ainda tinha a esperança vã do retorno de sua Dora (Alice). Então, o enfermeiro, já avisado por Alice de que ela conversaria com um anão naquela madrugada, e que se tratava de um show de variedades até antes da hora do eletrochoque, ficou tranquilizado, e não conseguia acreditar como Alice se envolvera com magia negra, era um paradoxo que ele não entendia.
   Deu duas da madrugada, Alice avisou ao enfermeiro que o anão aparecera, ele não via nada, mas acreditava em Alice, e então o anão, exú mirim, fez dez esquetes de humor negro que muito agradaram Alice. Depois, o anão sumiu, e um gigante apareceu dizendo que Alice tinha de “deixar o caminho de então pelo velho caminho”, ela não entendeu o enigma, mas aquiesceu.
   No dia seguinte, uma editora de porte publica dois livros de contos de Alice, e em uma semana, sua história se torna pública, “como uma criminosa pode ser um gênio?” perguntava um dos jornais. Roberto tentava limpar a imagem de Alice, e então, um fato poderia favorecer Alice: a prisão do grupo de satanistas de que ela participara por acusação do assassinato de Abbath, e a confissão por Maniac (Rafael) de que aquilo teria sido também por Dora. Então, o jornal perguntou quem era Dora, era Alice, e o círculo se fechou.
   Então, houve uma reviravolta, e o caso se tornou um escândalo de proporções homéricas. Começou uma romaria no manicômio, mas visitas só eram permitidas aos familiares, os livros de contos de Alice viram sucesso de crítica e de público, havia uma situação insustentável de deixarem-na apodrecendo amarrada há já um mês no manicômio. Seus braços estavam vermelhos, seu estado era estável, mas o psiquiatra dizia que precisava de mais uma semana para avaliar o quadro melhor, o enfermeiro se voltou contra o psiquiatra, tentou agredi-lo e foi transferido, deixando Alice com um novo enfermeiro, o qual convenceu então que dali a três dias o psiquiatra teria de fazer uma nova avaliação do caso, pois o noticiário perseguia o hospital.
   Na última noite amarrada, Alice se despede do anão, o enfermeiro novo já tinha sido avisado, não era nada anormal, aparentemente, e o gigante disse que o velho caminho ficaria maior que o último, Alice aquiesceu, mas ainda não tinha entendido. Então, depois do último show de variedades do anão, desta vez com uma comédia de dois atos, e o enigma do gigante, às cinco da manhã, já com os eletrochoques suspensos pelo psiquiatra, suas amarras são cortadas por uma faca do enfermeiro, seus braços têm a mesma sensação descrita por Sócrates ao ser desacorrentado antes de morrer por cicuta, suas pernas flutuavam, sua sensação de felicidade era descomunal.
   Alice vai ao pátio, já podia circular livremente dentro das dependências da emergência. Após mais dez dias, e pela pressão da imprensa, Alice é solta. Ela acaba sendo absolvida dos crimes, pois foi constatado que quem trouxe os fetos tinham sido Maniac e Abbath, ela era apenas a ritualista, o que lhe rendeu uma multa por magia negra, mas a sentença penal foi mudada por comoção e pressão da imprensa, ela então pagou uma multa, e teve que fazer trabalhos voluntários por dois anos num orfanato, o que lhe provocou novo tipo de beatitude, a compaixão, e depois de cumprir o trabalho no orfanato, já livre da obrigação, tentou conciliar seu sucesso literário (ainda com ceticismo, pois não escrevia estórias há uns anos) com as visitas ao orfanato, dando presentes para as crianças.
   Se houve pecado mortal em sua aventura de magia negra como Dora, parecia que aos céus estava tudo redimido. Alice quase não se lembrava de Dora, suas lembranças voltaram aos poucos, mas sua fase celerada era só uma aventura, ela tinha nojo do passado como nigromante. Voltou a escrever contos fantásticos, seu pai Roberto então decidiu investir em sua carreira literária. Alice se firmou como contista fantástica e de terror (a faceta de Dora apaziguada). Seus irmãos sempre a adoraram, e o mais velho caía de bêbado e de rir com toda aquela agitação entre a lenda de Dora e o vulto Alice, nada se explicava, mas ele só ria. Depois de uns anos, Alice se casou, sua filha se chamou Isadora.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor. (Contos Psicodélicos) 27/12/2014
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