PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 23 de fevereiro de 2020

ANA MARTINS MARQUES E SUAS INFLUÊNCIAS

“Ana Martins Marques se insere na poesia sobre as coisas com influência direta de Drummond e dialogando com Bandeira”

A poesia de Ana Martins Marques tem como tema principal o trabalho de representação das coisas, sua figuração, um modo de redesenhar poeticamente objetos e coisas que aparentemente estão tomadas em si mesmas como suficientes, acabadas, contidas num mundo objetivo bem resolvido, e que na poesia de Ana ganha contornos novos de uma percepção aguçada e sensível aos sinais.
A metapoesia também domina o cenário criado por Ana e seus recursos estéticos e metafóricos trabalham numa imagem material do poema, um objeto também tomado como os outros, o poema-coisa. E a tentativa sintética de Ana é de condensação da experiência totalizante do mundo nesta cápsula chamada poema. A linguagem aqui opera através do poema a experiência do mundo e sua síntese num espaço compactado, o poema que lhe enuncia.
A tematização sobre objetos na poesia vem de Rilke, Drummond, Francis Ponge, pois Drummond em Alguma Poesia coloca já a figuração das coisas, num tom familiar e prosaico, e que viraria uma grande influência e um dos marcos da poesia brasileira moderna e contemporânea (aqui evito a reverência excessiva ou o dogma, pois Drummond era amplo e diverso, também foi o poeta de Claro Enigma).
Mas, a experiência de Drummond neste sentido aberto pela Alguma Poesia se amplia com Lição de Coisas, em 1962, em meio a uma movimentação na poesia brasileira de tentativa de recuperação lírica e ruptura com o concreto e circunstancial, mundo de coisas prosaicas reafirmado e reforçado em Lição de Coisas. Tal poesia prosaica também ganhou portadores originais como Manuel Bandeira e o sui generis Manoel de Barros.
Ana Martins Marques se insere na poesia sobre as coisas com influência direta de Drummond e dialogando com Bandeira. Na estreia de Ana com Arquitetura de Interiores, esta exploração das coisas vai ao máximo, poemas curtos e com carga forte de condensação, na Arte das Armadilhas, seu segundo livro, esta tematização das coisas se repete e culmina com O Livro das Semelhanças em que o leitmotiv será o objeto livro, a poesia em seu estado mais referencial, tirando o universo da declamação.
A metapoesia, em O Livro das Semelhanças, joga com a semelhança e espelhamento entre os poemas e o objeto-livro, os poemas viram objetos também, a materialidade é um reflexo da poesia de Ana neste livro, e aqui temos um paralelo possível com Mallarmé que toma o poema como artefato. Os objetos na poesia de Ana também servem como delimitação de um espaço subjetivo, este contato do sujeito poético com seu poema-coisa é quase uma experiência de máxima condensação, em que a unidade ganha aqui a relação do poeta com o mundo, e colocando as coisas diante de sua subjetividade, e nesta tensão nasce o poema.
Ana Martins Marques tem a sua poesia possivelmente dividida em duas frentes, uma que cria imagens e realidades, poemas que se concentram na imagem de si, um meta-poema, poemas condensados e que podem ser denominados de circunstanciais. A segunda frente da poesia de Ana é a que abre a subjetividade, em que a memória tem papel importante, adentrando a linguagem de modo mais profundo que seus poemas objetivos, configurando poemas que manifestam pensamentos.

POEMAS :

VISITAS AO LUGAR-COMUM

SEM TÍTULO : O poema se fragmenta na sua visão, desde a saída, no que temos : “Quebrar o silêncio/e depois recolher/os pedaços”. A vista limitada, parcial, nebulosa, uma crise da percepção se instala, agônica : “Pagar para ver/e/receber/em troca/vistas parciais”. Decai então na palavra também barrada e limitada, no que temos : “Dobrar a língua/e ao desdobrá-la/deixar cair/uma a uma/palavras/não ditas”. E a perda da noção de tempo, a sensação de desorientação, no que segue : “Perder a hora/e encontrá-la depois/num intervalo/de teatro”. A presença do abismo se insinua, como um fundo, uma garganta, que chama à escuridão : “Dar à luz/e então sondar/num átimo/de abismo” (...) “a própria/escuridão”. A loucura, a desorientação em seu estado total, toma o poema, a poeta aqui perde a cabeça : “Perder a cabeça/e então buscá-la/nos últimos lugares/onde esteve”. E segue o périplo, de retomadas, circunvoluções e rupturas : “Tirar fotografias/e depois devolvê-las/àqueles de quem as tiramos” (...) “Cortar relações/e depois voltar-se/verificar se o que restou/suporta/remendo”. O tempo e sua espera, a angústia do tempo da espera e o amor profundo, mas que não se afunde, que sempre dê pé : “Esperar horas a fio/e então desvencilhar-se/das coisas tecidas na espera” (...) “Amar profundamente/mas testar/volta e meia/se ainda/dá pé”. O risco como a melhor forma de examinar o traçado, a poeta aqui arfante, no entanto, é agraciada, pois pode ver seu feito, seu traçado, seu rastro : “Correr riscos/e ao fim/arfante/da corrida/voltar-se/para avaliar/o traçado”. E aqui o poema finaliza com a imagem da queda, mas num viés de bom humor, numa sequência em que a poeta se junta a todos que caíram, no que temos : “Esperar junto àqueles/que caíram em si/que caíram na risada/que caíram no ridículo/que caíram do cavalo/que caíram das nuvens/que a noite/caia”. O poema então que parte do fragmento ao fim se quebra, e o discernimento que enfrenta os cacos, o poema se estilhaça : “Quebrar promessas/e ao recolher os cacos/discerni-los/entre aqueles/do silêncio/quebrado”.

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

SEM TÍTULO : O poema aqui começa numa operação de esquecimento e de destruição da memória : “Podemos atear fogo/à memória da casa/desaprender um idioma/palavra por palavra/podemos esquecer uma cidade”. A ideia de pertencimento aqui é invertida, ganhando contorno contra-intuitivo : “As casas pertencem aos vizinhos/os países, aos estrangeiros/os filhos são das mulheres/que não quiseram filhos/as viagens são daqueles/que nunca deixaram sua aldeia”. O poema flerta aqui com o conhecimento superficial e de gabinete, sem vivência, no que temos : “Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que/faz um livro/quando tomba/os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar/das páginas/os que veem o mundo como um grande volume ilustrado” (...) “os que conhecem as cidades apenas pelo nome” (...) “Pintores que pintam apenas títulos de quadros/Fotógrafos que só fotografam fotografias/atores com seus figurinos de palavras” (...) “viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades/enamorados de nomes de mulheres/pais de nomes de crianças”. E o mundo real, empírico, é sempre mais duro e difícil, do qual não se foge, e o poema lhe dá a face e a importância devida, no que temos : “É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo/É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento/Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome”. E do real a poeta indaga novamente o plano da linguagem, o que se pode dizer do que se é concreto, no que temos : “seria preciso então entender o beijo como um/elemento gramatical/acrescentar as palavras entre os movimentos básicos/da dança/Quanto do desejo mora/na palavra desejo?”.

SEM TÍTULO : O poema enuncia uma relação interessante, em que a poeta flerta com seu amante-interlocutor, e o poema começa bem lúdico, no que temos : “Estou no dia de hoje como num cavalo/você está nas suas roupas como/num navio/estamos na cidade como num teatro numa floresta/na água” (...) “a tarde de terça é uma feira de bairro/nos encontramos quase por descuido/à mesa do café com sua toalha xadrez/de frente para o cinema contínuo do mar”. A poeta então deslinda toda a sua admiração deste seu amante que ela vê como um tipo ideal inteligente, no que vem : “você desdobra a tarde como um guardanapo/lançado ao colo/você conhece os modos no que se refere às tardes/você sabe usar/os talheres da tarde”. O conhecimento deste amante é enunciado com orgulho pela poeta, e o poema fica bem interessante mesmo, no que vem : “você conhece muitas coisas você sabe falar/sobre as coisas como esses bichos que conhecem/desde sempre as rotas ancestrais/como os pássaros que trazem impressos no corpo/os mapas migratórios você conhece a língua do amor/que eu soletro tão mal”. A poeta então confia seu amor a este amante que conhece estes arcanos melhor do que ela, ao menos é o que ela supõe.

SEM TÍTULO : O poema enuncia as indagações sobre o tempo, mas aqui não se trata do tempo típico presente, mas os mais complexos e confusos, passado e futuro, no que segue : “O passado anda atrás de nós/como os detetives os cobradores os ladrões/o futuro anda na frente/como as crianças os guias de montanha/os maratonistas melhores/do que nós/salvo engano o futuro não se imprime/como o passado nas pedras nos móveis no rosto/das pessoas que conhecemos/o passado ao contrário dos gatos/não se limpa a si mesmo”. A impressão que temos do passado é impossível sobre o futuro, o passado não se muda, não se faz limpeza do passado, o futuro, um maratonista que anda na frente, não é identificável, é mais um anelo que se tem, um plano, na frente corre o cão, e o passado é a criação do mundo : “pense em como do lodo primeiro surgiu esta/poltrona este livro/este besouro este vulcão este despenhadeiro/à frente de nós à frente deles/corre o cão”.

A IMAGEM E A REALIDADE : O poema inverte Manuel Bandeira, o arranha-céu reflete na poça para baixo, o poema é uma experiência sensorial, no que temos : “Refletido na poça/do pátio/o arranha-céu cresce/para baixo/as pombas – quatro –/voam no céu seco/até que uma delas pousa/na poça/desfazendo a imagem/dos seus tantos andares/arranha-céu/agora tem metade”. O poema encerra o desmanche da imagem e o que lhe resta.

AMOR NÃO FEITO : O poema enuncia aqui de forma delicada o fenômeno comum do amor que não se consumou, nada mais natural e corrente na vida comum e mortal, no que temos : “No centro do que lembro ficou/o amor não feito :/o que não foi rói o que foi/como maresia”. E a indagação da poeta é universal, no que vem : “o que fazer do desejo/que não se gastou?/alegria não sentida amor não feito”. A indagação então fica refletida no que restou, como uma chave de ouro meio indesejada, no que temos : “como parece banal agora/o que o barrou/compromissos decência covardia/não foi nada disso que ficou/mas precioso aceso/e perfeito/restou o desejo do amor/não feito”.

POEMAS :

VISITAS AO LUGAR-COMUM

SEM TÍTULO

I

Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego

II

Pagar para ver
e receber
em troca
vistas parciais
uns cobres
de paisagem

III

Dobrar a língua
e ao desdobrá-la
deixar cair
uma a uma
palavras
não ditas

IV

Perder a hora
e encontrá-la depois
num intervalo
de teatro
nos cantos empoeirados
do domingo
entre um telefonema e outro
dentro do táxi

V

Dar à luz
e então sondar
num átimo
de abismo
- como um espeleólogo
um cosmólogo
um cenógrafo
um guarda-noturno –
a própria
escuridão

VI

Perder a cabeça
e então buscá-la
nos últimos lugares
onde esteve
dentro da touca
de banho
sobre o travesseiro
entre os joelhos
entre as mãos
na casa demolida
da infância
sobre suas coxas
mornas
ainda

VII

Tirar fotografias
e depois devolvê-las
àqueles de quem as tiramos
à mulher fora de foco
em seu vestido violeta
à casa de janelas verdes
às paisagens
tomadas emprestadas
à casca
de cada coisa
aos vários ângulos
da Torre Eiffel
ao cachorro morto
na praia

VIII

Cortar relações
e depois voltar-se
verificar se o que restou
suporta
remendo
demorar-se
sobre a cicatriz
do corte

IX

Esperar horas a fio
e então desvencilhar-se
das coisas tecidas na espera
dos ponteiros do relógio
cada um mais lento que o outro
dos pelo menos dez cigarros
das poltronas de mogno
uma delas
vazia

X

Amar
profundamente
mas testar
volta e meia
se ainda
dá pé

XI

Correr riscos
e ao fim
arfante
da corrida
voltar-se
para avaliar
o traçado

XII

Chegar em cima da hora
e espiar
de relance
como quem levanta o tapete
em casa alheia
o que ficou
por baixo

XIII

Esperar junto àqueles
que caíram em si
que caíram na risada
que caíram no ridículo
que caíram do  cavalo
que caíram das nuvens
que a noite
caia

XIV

Quebrar promessas
e ao recolher os cacos
discerni-los
entre aqueles
do silêncio
quebrado

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

SEM TÍTULO

Podemos atear fogo
à memória da casa
desaprender um idioma
palavra por palavra
podemos esquecer uma cidade
suas ruas pontes armarinhos
armazéns guindastes teleféricos
e se ela tiver um rio
podemos esquecer o rio
mesmo contra a correnteza
mas não podemos proteger com o corpo
um outro corpo do envelhecimento
lançando-nos sobre a lembrança dele

As casas pertencem aos vizinhos
os países, aos estrangeiros
os filhos são das mulheres
que não quiseram filhos
as viagens são daqueles
que nunca deixaram sua aldeia
como as fotografias por direito pertencem
aos que não saíram na fotografia
- é dos solitários o amor

Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que
faz um livro
quando tomba
os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar
das páginas
os que veem o mundo como um grande volume ilustrado
no entanto sem legendas sem índices remissivos
sem notas explicativas
os que conhecem as cidades apenas pelo nome
e acham que cabem no nome muitas coisas
inclusive certas ruas vazias de madrugada
as casas prestes a serem demolidas
os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto

na cama quanto no pensamento
aqueles como nós para quem o desejo
não é prenúncio mas já a aventura
os que se reconhecem na tristeza
das piscinas vazias à beira-mar

Pintores que pintam apenas títulos de quadros
Fotógrafos que só fotografam fotografias
atores com seus figurinos de palavras
com sua maquiagem de palavras
num cenário de palavras
viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades
enamorados de nomes de mulheres
pais de nomes de crianças
até que seus próprios nomes morrem nas campas

É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo
É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento
Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome
É possível terminar uma frase com um beijo assim
Como é possível
encerrar subitamente uma dança com uma palavra
seria preciso então entender o beijo como um
elemento gramatical
acrescentar as palavras entre os movimentos básicos
da dança
Quanto do desejo mora
na palavra desejo?

SEM TÍTULO

Estou no dia de hoje como num cavalo
você está nas suas roupas como num navio
estamos na cidade como num teatro numa floresta
na água

a tarde de terça é uma feira de bairro
nos encontramos quase por descuido
à mesa do café com sua toalha xadrez
de frente para o cinema contínuo do mar
no vagão deste mês setembro sereia sinuosa
era quente o dia era o equívoco das estações
era a música pequena da memória
estou no dia de hoje como num casaco largo demais
estou no país desta tarde como as mangas
da sua camisa branca
você desdobra a tarde como um guardanapo
lançado ao colo
você conhece os modos no que se refere às tardes
você sabe usar
os talheres da tarde
estou desconfortável no meu nome estou
na antessala do amor estou na estação
da espera queria distrair a morte
você conhece muitas coisas você sabe falar
sobre as coisas como esses bichos que conhecem
desde sempre as rotas ancestrais
como os pássaros que trazem impressos no corpo
os mapas migratórios você conhece a língua do amor
que eu soletro tão mal

SEM TÍTULO

O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
pense em como do lodo primeiro surgiu esta
poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão

A IMAGEM E A REALIDADE

                                   Refletido de um poema de Manuel Bandeira

Refletido na poça
do pátio
o arranha-céu cresce
para baixo
as pombas – quatro –
voam no céu seco
até que uma delas pousa
na poça
desfazendo a imagem

dos seus tantos andares
arranha-céu
agora tem metade

AMOR NÃO FEITO

No centro do que lembro ficou
o amor não feito :
o que não foi rói o que foi
como maresia

casa onde não morei país invisitado
praia inacessível avistada do alto
o que fazer do desejo
que não se gastou?

alegria não sentida amor não feito
prazer adiado sine die
palavra recolhida como um cão
vadio gesto interrompido beijo a seco

como parece banal agora
o que o barrou
compromissos decência covardia
não foi nada disso que ficou

mas precioso aceso
e perfeito
restou o desejo do amor
não feito

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


  


  

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