PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 15 de março de 2018

O LIVRO DISCUSSÃO DE JORGE LUIS BORGES – PARTE I

“o Quijote, porém, ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a qualquer versão descuidada”

PEQUENA INTRODUÇÃO

Em “Discussão” de 1932, Borges reúne os temas que serão correntes em toda a sua obra literária, tais como infinito, realidade, magia, inferno e cabala.

A PENÚLTIMA VERSÃO DA REALIDADE

Borges discorre aqui acerca de um artigo de Francisco Luis Bernárdez sobre as especulações ontológicas do livro “A idade viril da humanidade”, trabalho composto, por sua vez, pelo Conde Korzybski, tal obra que Borges confessa desconhecer. E aqui temos como tema as três dimensões que tem a vida, no que Korzybski elenca faculdades geométricas como comprimento, largura e profundidade, sendo a primeira dimensão associada à vida vegetal, a segunda à vida animal, e a terceira à vida humana. Tendo aqui, portanto, os vegetais levando uma vida em longitude, os animais uma vida em latitude, e por fim os homens levando uma vida em profundidade.
O Homem nos aparece aqui como este que abarca o tempo, e segundo Rudolf Steiner, temos aqui este ente humano no tempo como aquele que possui o eu, e então a memória do passado e a previsão do futuro, isto é, possui o tempo. Por conseguinte, só temos uma negação de uma suposta oposição entre o espaço e o tempo após sua origem na concepção spinoziana dos atributos do pensamento e da extensão, erro metafísico, e que é corrigido quando se entende que o tempo antecede o espaço, que o espaço, num idealismo mais elevado, é um dos episódios do tempo.
O espaço, portanto, é uma das formas da fluência do tempo, no que certas faculdades dos sentidos, como o olfato, e a audição, com a música, por exemplo, temos então a subversão deste espaço, ou melhor, uma independência destes fenômenos da concepção e realidades espaciais. Aqui temos então a refutação do espaço como forma universal de intuição, como queria conceber Kant.

A SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITOR

Borges discorre aqui sobre a superstição em relação ao estilo no que se refere à escrita e também falando sobre a relação do leitor com o texto literário. Temos então um superdimensionamento da concepção de estilo quando se fala do fenômeno literário, dogmas de estilo que passam desde a economia dos adjetivos como pela concisão como qualidade ou virtude literárias, tal conceito último que Borges chama devidamente de charlatanice da brevidade.
Em Dom Quixote e seu autor Cervantes, Borges logo tenta com esta obra fazer uma operação de desmistificação da questão do estilo, esta obra que aparece aqui, portanto, como um todo mal ajambrado, de fácil tradução, ao contrário de um Gôngora, por exemplo, que tem tal qualidade formal, em que a tradução lhe é um tormento.
No caso do Quixote de Cervantes, Borges nos dá a sua dimensão de texto que não busca a perfeição, e portanto, temos aqui páginas imortais que podem “atravessar o fogo das erratas, das versões aproximativas, das leituras distraídas, das incompreensões”, no que Borges então conclui que “o Quijote, porém, ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a qualquer versão descuidada”.

O OUTRO WHITMAN

Numa primeira interpretação de Whitman, temos este poeta que pode ter sido um dos precursores dos muitos inventores caseiros do verso livre, como levanta Borges, questão que então passa pela imitação do poeta no que se refere à faculdade literária da enumeração, fato nada original que recua no tempo até ao exemplo dos salmos da Escritura, pois aqui Borges ainda nos articula uma versão equívoca do poeta Walt Whitman.
Temos sim a imagem verdadeira de um poeta conciso, “de um laconismo trêmulo e suficiente”, uma poesia de privação, portanto, que nos dá uma escrita livre de intenções intelectuais e que nos brinda com o mundo comum e sensorial com informações primárias que vão dar o norte de uma poesia, por fim, que tem a riqueza de uma frugalidade que se nutre das contingências e não de formas sublimes.

UMA VINDICAÇÃO DA CABALA

Borges inicia o texto nos lembrando de que o Corão para os islamitas é um escrito original que é um dos atributos de Deus, anterior à própria Criação. E o autor logo faz referência também à concepção de que a Escritura, por sua vez, é uma escrita do Espírito, aqui como não a divindade geral, mas a terceira hipóstase da divindade que ditou a Bíblia.
Este cérbero teológico, nos mostra Borges, tem a imaginação de uma trindade que nos entrega a concepção de um pai e de um filho e de um espectro como a articulação de um único Deus ou entidade divina que é tomado, segundo uma exegese liberal, como uma teratologia intelectual, e Borges ignora qual seria tal desiderato monstruoso de uma divindade de três hipóstases, só aceitas por ato de fé, pois no intelecto se trata de uma aberração lógica e ontológica.
Temos então como lembrete que o tema cabalístico parte da Gênese (que é a substância da Cabala) e não de outros temas bíblicos, o que nos dá uma visão na qual a natureza da extensão e da acústica dos parágrafos, uma vez que a Cabala se propõe uma operação linguística que culmina num misticismo da linguagem, tem implicações casuais.
E Borges opõe tal linguagem ao que está presente na versificação que, por sua vez, opera a linguagem como ente sonoro, numa prosódia aventureira que estará presente, segundo Borges, em poetas como Tennyson, Verlaine e no último Swinburne. Quando então Borges nos lembra que o “casual nos versos não é o som, mas o que significam”, estando aqui no meio deste caminho autores como Valéry e De Quincey, um tipo intelectual, mas que ainda assim limita o casual na escrita.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/37986/17/o-livro-da-discussao-de-jorge-luis-borges-ij-parte-i







  




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