PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 16 de agosto de 2015

POEMA "ZONA" É O TRAJETO DO MUNDO MODERNO E NASCENTE

(do livro ÁLCOOIS)

   O poema Zona é o trajeto do mundo moderno e nascente, eu leio perplexo, ainda em que pese toda a cristandade de que o poema é pródigo, e eu amo a Deus, e este poema me diz da cidade e da viagem o contorno de uma beleza nova, Apollinaire é inovador, abre-te sésamo de um novo poema: Zona navega com as mulheres, evoca a cidade nova, passeia qual fera num ritmo que deixa para trás o mundo antigo.
   Apollinaire tem fome desta técnica que apresenta o século XX, para ele a novidade, para nós do milênio, ressaca de duas guerras mundiais. Apollinaire destaca Zona como a puta, e devassa a cidade como um concerto no qual as palavras tateiam no ritmo que a pena dita ao autor-poeta.
   Poetas são insanos como este acorde em quase ritmo quebrado de uma tradução, no original francês tem seu viço, mas Apollinaire é quebradiço, fragmenta o verso com febre do moderno, e abre o mundo vindouro, ébrio, religioso, profano, com o mundo inteiro e suas cidades, seu passeio, sua viagem, a turnê de Zona que leva Apollinaire ao seu mundo novo, na aurora do prometido progresso, a ilusão da máquina.




ZONA
Eis-te finalmente farto deste mundo antigo

Pastora oh Torre Eiffel o rebanho das pontes bale esta manhã

Estás cansado de viver na antiguidade grega e romana

Aqui até os automóveis parecem velhos
Só a religião permanece nova só a religião
Permaneceu simples como os hangares dum campo de aviação

Só tu não és velho na Europa oh Cristianismo
O europeu mais moderno sois vós Papa Pio X
A ti a quem as janelas observam a vergonha te impede
De entrares numa igreja e de te confessares esta manhã
Lês os prospectos os catálogos os cartazes em letras garrafais
Aqui está a poesia esta manhã e para a prosa temos os diários
Os folhetins a vinte e cinco cêntimos cheios de aventuras policiais
Retratos de grandes individualidades títulos vários

Esqueci o nome de uma rua muito bonita por onde passei esta manhã
Nova e limpa era o clarim do sol
Quatro vezes por dia passam aí
De segunda-feira de manhã até sábado à tarde
Os directores os operários e as belas dactilógrafas
De manhã a sirene gemeu três vezes
Um sino furioso ladra ao meio-dia
As inscrições os estandartes e as muralhas
Os anúncios e as placas gritavam como se fossem papagaios
Amo a graça desta rua industrial
Situada em Paris entre a Rua Aumont-Thiéville e a Avenida des Ternes

Eis aqui a nova rua e tu não passas ainda de uma criança
A tua mãe não te veste senão de azul e de branco
És muito piedoso e como o mais antigo dos teus companheiros
René Dalize
Amas sobretudo as pompas da Igreja
São nove horas o gás azulado quase a extinguir-se saís do dormitório às escondidas
Rezais toda a noite na capela do colégio
Enquanto que a eterna e adorável profundeza ametista
Canta para sempre a resplandecente glória de Cristo
É o formoso lírio que todos cultivamos
É o archote de cabelos ruivos que o vento não apaga
É o filho pálido e dourado da mãe dolorosa
É a árvore frondosa de todas as preces
É a dupla potência da honra e da eternidade
É a estrela de seis pontas
É Deus que morre na sexta-feira e ressuscita no domingo
É o Cristo que sobe no céu melhor que os aviadores
Batendo a marca mundial da altura

Pupila Crucificada no olho
A Vigésima pupila dos séculos sabe ao que quer chegar
Transformado em pássaro este século como Jesus se eleva no ar
Os diabos dos abismos erguem a cabeça para vê-lo
Dizem que imita Simão o Mago na Judeia
Gritam se abe voar chamemos-lhe aviador
Os anjos adejam à volta do belo acrobata
Ícaro Enoch Elias Apolónio de Tiana
Flutuam à roda do primeiro aeroplano
Afastam-se por vezes para deixar passar aqueles que transportam a Santa Eucaristia
Esses padres que sobem eternamente elevando a hóstia
O avião pousa por fim sem recolher as asas
Milhões de andorinhas povoam agora o céu
A golpe de asas vêm agora corvos falcões mochos
De África chegam íbis flamingos marabus
Um pássaro chamo Roc cantado por narradores e poetas
Plana levando nas garras o crânio de Adão a primeira cabeça
A águia do fundo do horizonte lançando um longo grito
Chega da América o pequeno colibri
E da China esse comprido e voluptuoso pihi
Que tem uma só asa e voa aos pares
Eis a pomba espírito imaculado
Escoltada pelo pássaro-lira e pelo pavão-real
A fénix essa fogueira que a si mesma se gera
E se oculta toda na cinza ardente
As sereias abandonam os estreitos perigosos

Chegam a três cantando uma melodia sedutora
E todos águia fénix e pihis da China
Confraternizam com a máquina voadora

Agora caminhas por Paris só entre a multidão
Rebanhos de ônibus rolam mugindo a teu lado
A angústia do amor oprime-te a garganta
Como se nunca mais pudesses ser amado
Se vivesses nos tempos antigos entrarias num convento
Tendes vergonha quando vos surpreendeis a rezar
Troças de ti e o teu riso crepita como o fogo do inferno
As chispas do teu riso douram o fundo da tua vida
É um quadro pendurado num museu sombrio
Algumas vezes vais contemplá-lo de perto

Passeias hoje por Paris as mulheres estão ensanguentadas
Era e eu não queria recordá-lo o declínio da beleza

Rodeada de chamas ardentes Nossa Senhora olhou-me em Chartres
Em Montmartre fui inundado pelo sangue do vosso Sagrado Coração
Estou doente de ouvir apenas palavras bem-aventuradas
O amor de que sofro é uma doença vergonhosa
A imagem que te possui fez-te sobreviver na insónia e na angústia
Está sempre perto de ti esta imagem que passa

Eis-te agora nas margens do Mediterrâneo
Debaixo dos limoeiros floridos todo o ano
Passeias-te de barco com os teus amigos
Dois Turbienses um Mentoniano e um Nizardo
Olhamos aterrorizados os polvos das profundezas
E entre as algas nadam os peixes espelhos do Salvador

Estás no jardim de um ALBERGUE nos arredores de Praga
Sentes-te feliz há uma rosa sobre a mesa
E em lugar de escreveres o teu conto em prosa
Observas a cetónia que dorme no coração da rosa

Com espanto vês-te desenhado nas ágatas de S. Vito
Estavas triste como a morte nesse dia
Pareces-te com Lázaro enlouquecido pela luz
As agulhas do relógio do bairro judeu rodam ao contrário
E tu retrocedes também lentamente na tua vida
Subindo o Castelo de Hradchim e escutando à tarde
Cantar canções checas nas tabernas

Eis-te em Marselha rodeado de melancias

Estás em Coblence no HOTEL do Gigante

Estás em Roma sentado debaixo de uma nespereira

Estás em Amsterdão com uma rapariga que te parece bonita mas é feia
Vai casar-se com um estudante de Leyde
Alugam-se nessa cidade quartos em latim Cubicula Locanda
Lembro-me de ter passado aí três dias e outros tantos em Gouda

Estás em Paris perante o Juiz de Instrução
E como a um criminoso dão-te voz de prisão

Fizeste viagens dolorosas e alegres
Antes de te dares conta da mentira e da idade
O amor fez-te sofrer aos vinte e aos trinta anos
Vivi como um louco e desperdicei o meu tempo
Já não te atreves a olhar as tuas mãos e a todo o momento quereria
soluçar
Sobre ti sobre aquela que amo sobre tudo o que te horrorizou

Olhas com os olhos cheios de lágrimas esses pobres emigrantes
Crêem em Deus rezam as mulheres amamentam os filhos
O seu cheiro enche o átrio da estação de S. Lazare
Têm fé na sua estrela como os reis magos
Esperam GANHAR DINHEIRO na Argentina
E regressarem ao seu país depois de terem feito fortuna
Uma família leva um edredão vermelho como vós levais o coração
É tão irreal como os nossos sonhos esse edredão
Alguns emigrantes quedam-se ali e alojam-se
Em tugúrios da rua Rosier ou da rua de Écouffes
Vi-os muitas vezes de tarde na rua apanhando ar fresco
Deslocam-se raramente como as peças do xadrez
Há sobretudo judeus as suas mulheres usam peruca
Sentam-se exangues no fundo das lojas

Estás de pé ao balcão de um bar de má fama
Por dois soldos tomas um café barato

Eis-te à noite num grande restaurante

Essas mulheres não são más têm preocupações e não obstante
Todas até a mais feia fizeram sofrer o seu amante

Esta é a filha de um polícia de Jersey

As suas mãos que eu nunca tinha visto são duras e gretadas

Sinto uma piedade imensa pelas costuras no seu ventre

Humilho agora a boca ante o riso hediondo de uma puta

Estás só e a manhã vai chegar
Os leiteiros fazem tilintar as vasilhas nas ruas

A noite afasta-se como uma bela mestiça
É Ferdine a falsa ou Léa a solícita

E tu bebes este álcool ardente como a tua vida
A tua vida que tu bebes como aguardente

Caminhas até Auteuil queres chegar a casa a pé
Dormir descansado entre os teus fetiches da Oceania e da Guiné
São Cristos com outras formas e de outras crenças
Os Cristos indefesos das obscuras esperanças

Adeus Adeus

Sol decapitado

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/24288/17/poema-zona-e-o-trajeto-do-mundo-moderno-e-nascente

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