PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 16 de agosto de 2015

CASSAVETES COLOCOU A IMAGEM DA AMÉRICA NO GOSTO DA "VELHA EUROPA"

“Há em todo o cinema de Cassavetes uma excepcional liberdade da câmera e da montagem”

INTRODUÇÃO
   John Cassavetes é o que pode ser considerado um dos mitos do cinema moderno, impressionando a cinefilia europeia, foi um ator competente que se tornou diretor de filmes e colocou a imagem da América no gosto da velha Europa, Cassavetes era a ponte entre dois mundos, lutando constantemente contra a enorme máquina de dinheiro de Hollywood, mantendo uma proximidade entre vida e obra de maneira incomum.
   John Cassavetes tinha em si uma enorme cultura, era um admirador de Bergman e Kurosawa, e seu trajeto pelo cinema pode também ser entendido como um caminho para conciliar os pólos opostos do espetáculo e da escrita, representados respectivamente por Capra e Dreyer. Também era um homem do teatro, e muito de seu cinema deve muito à sua experiência dentro do teatro.

DA FORMAÇÃO TEATRAL A SHADOWS
   O caminho no teatro de Cassavetes foi importantíssimo, e já no cinema ele levou esta herança para ser o autor de Shadows e de Husbands, ou o intérprete de O Bebê de Rosemary e de Os Doze Condenados.
   Seu caminho prévio no teatro, entretanto, se deu num ambiente dominado pelo “Método”, herança de Stanislavski. Estudando na Academia Americana de Arte Dramática de Nova York, foi influenciado pelos ensinamentos do Actor`s Studio, e ao sair da escola em 1953, chegou a participar de algumas turnês teatrais e trabalhou um tempo na Broadway, mas acabou se voltando para a televisão e o cinema, fazendo direção de teatro somente nos anos 1980.
   Quanto a Shadows, filme emblemático de Cassavetes como diretor, podemos ver uma ideia do que se passava num texto publicado por Louis Marcorelles em Cahiers du cinema, quando do lançamento do filme na França (1961), tal que fazia uma analogia com Kazan e Visconti e suas relações ambivalentes com o Actor`s Studio: “De certa forma, Shadows prolonga os esforços de Lee Strasberg, de quem John Cassavetes foi aluno. Hoje em dia, não se ignoram mais os métodos, dever-se-ia dizer o método, preconizado pelo Actor´s Studio para se obter a identificação total do ator com o personagem que ele deve encarnar. (...) Elia Kazan, que foi abusivamente identificado com o Actor´s Studio, leva essa modelagem do ator aos limites da paródia; estamos aí bem próximos da hipnose, como, por exemplo, ocorreu com Carol Baker em Boneca de Carne. (...) A improvisação, em Kazan, nada tem a ver com a de Shadows; ela não passa de uma trucagem suplementar, para criar impacto. (...) Mesmo Visconti, apesar do que dizem, pouco tem a ver com Kazan. Nunca se tem a impressão de que este último visa a “explorar” seus intérpretes ou que força o realismo psicológico. Em Rocco e Seus Irmãos, por meio de um trabalho minucioso de roupagem e gestos, ele faz de um ator modesto como Renato Salvatori o extraordinário Simone, porém sem contorções, através de uma lenta recriação do interior, que supõe não a intoxicação do ator pelo seu papel, mas sua participação constante na elaboração progressiva do personagem, sua lenta impregnação física e moral pelo modelo definido de uma vez por todas em colaboração com o diretor. Desse ponto de vista, Shadows se aproximaria mais de Visconti do que de Kazan.”
   Ou seja, Shadows deve muito ao teatro, sobretudo no trabalho dos atores. Sem fazer a mimética de Visconti, o trabalho de Cassavetes coincide com ele na maneira de fazer os atores entrarem em contato com sua própria força, suscitando o desejo do ator no papel, numa associação direta do ator com a criação do personagem, num fim que será a confusão do espectador entre ator e personagem.
   O projeto de Shadows está ligado ao workshop teatral que John Cassavetes criou em Nova York em 1956, trabalho que era inicialmente destinado a atores semiprofissionais, e que, então, se abriu para amadores vindos de toda parte. Cassavetes conta: “Tomamos a decisão de escancarar nossas portas e deixar entrar todos aqueles que assim o desejavam. E eles chegaram diretamente da rua, munidos apenas do desejo de serem atores; poucos tinham alguma experiência; nunca tinham feito figuração, ou, talvez mesmo, visto uma câmera.”
   Mas, a improvisação, que foi a base de Shadows, transformou algo que veio originalmente do teatro em um verdadeiro trabalho de cineasta. E o trabalho restante de Cassavetes no cinema, como ator ou diretor, se afasta de qualquer relação com o Actor´s Studio. Como ator, por exemplo, ele faz um verdadeiro trabalho de composição, longe das fronteiras psicologizantes do “Método”.

TEATRO E CINEMA  
   Cassavetes tinha uma característica peculiar de instabilidade em seus trabalhos de teatro e cinema, pois tanto seu cinema como seu trabalho cênico, tratava-se de algo inclassificável. Seu trabalho não resgatava nem o teatro clássico americano, mais acadêmico, nem o off-Broadway, isto é, o teatro marginal e independente. E, no caso de todo o trabalho de Cassavetes, não faz muito sentido diferenciar teatro e cinema. Daí que o teatro de Cassavetes era um “teatro de cinema”, sua experiência como cineasta veio, então, alimentar sua experiência cênica, o que nos leva a uma das afirmações do texto de que Cassavetes veio do teatro e foi ao cinema. Ou seja, no fim das contas, foi o cinema de Cassavetes que deu uma direção ao seu teatro, num segundo momento.
   E uma das recorrências do trabalho cênico e de cinema de Cassavetes que é a improvisação, por exemplo, não pode ser levada ao pé da letra, não se trata de um método em sentido estrito, pois a improvisação atua como efeito de um estado, de um sentimento, de uma sensação.
   Cassavetes traça um caminho diverso, porém familiar, aos objetivos de Artaud em seu Théâtre et son double, este que, por sua vez, travava uma verdadeira guerra contra a enfeudação do teatro ao império da escrita, do texto autoral. Pois, em Cassavetes, então, não se encontra, em sua obra, nenhum sinal do teatro metafísico e alquímico, ou de uma ligação com os prestígios do Oriente.
   Quando Artaud escreve “quebrar a linguagem para tocar a vida é fazer ou desfazer o teatro”, ou ainda, quando Artaud diz: “em vez de retornar a textos considerados definitivos e sagrados, é preciso antes de mais nada romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única entre o gesto e o pensamento”, aqui Artaud está ao lado do que Cassavetes faz em seu filme Opening Night.
   E, é bom frisar, este caminho de Artaud, e de modo próprio em Cassavetes, tem o centro no ator, toda a modulação se encontra no gesto, e este é o ator trabalhando a sua enunciação não pela sacralidade do texto, mas pela preponderância física do ato teatral. A vida em Cassavetes é o ator ou atriz, o teatro e o cinema, improvisados nos caminhos da sensação, são ato, gesto, trabalho de atores mais do que de autores.
   Opening Night representa o ponto-limite da experiência de ator no cinema de Cassavetes, um ser que representa sempre com uma ou grande parte de sua energia vital.  É uma concepção que se afasta tanto do Actor´s Studio como do método Jouvet. Pois, no trabalho de Strasberg (Actor´s Studio), é o personagem que vem alimentar o ator. Quanto ao método Jouvet, este apela ao sentimento, mas que não passa de uma aptidão à abstração, uma maneira de ascese ou de meditação.
   Por sua vez, o tema de Opening Night é a confusão entre ser e parecer, o ator numa prova de risco absoluto. Trata-se de um espaço cênico de performance, levando os atores ao limite. Mas, Cassavetes é amplo, pois do teatro verista e naturalista de Opening Night, ele tem, em The Killing of a Chinese Bookie, por exemplo, algo diverso como um teatro de artifício que é nada mais que uma boate de strip-tease. E, por fim, Cassavetes sempre se caracterizou por uma teatralidade inseparável de um cotidiano, este como sua experiência única que se torna um dos motores mais ativos do seu cinema.

O MÉTODO DE CASSAVETES
   Os filmes de John Cassavetes são registros de um cineasta que usa um método de filmagem em ruptura com a indústria hollywoodiana. Sendo Shadows, então, um marco na história do cinema americano. Até no modo de financiamento, Shadows difere de modo particular do cinema hollywoodiano, sendo um filme iniciado com dinheiro do público. Shadows representa uma brecha no sistema, a hipótese de um cinema radicalmente independente, libertado dos constrangimentos puramente econômicos e dos códigos de narrativa em vigor, filmado com a câmera no ombro, em ruas e apartamentos pequenos, sem atores profissionais.
   E, um dos modos de entender Cassavetes melhor, é citar suas três grandes influências: a televisão, o neo-realismo italiano e o novo documentário americano. E, um dos principais eixos do método de Cassavetes é sobretudo  a cumplicidade ou até a identidade entre produtor e diretor, a recusa de uma submissão restritiva à técnica, colocada a serviço do filme e não o inverso,  a proximidade e privilégio do ator, a mistura de improviso e texto em função de uma narrativa livre de códigos e clichês, para enfim, realizar uma montagem concebida como um work in progress, em processo.
   Vendo filmes como Husbands e Minnie and Moskowitz, tem-se a impressão de que Cassavetes filmou algo que não existia antes de aparecer na tela, pois seu cinema representa a perfeita antítese da story-board. Cassavetes pertence a uma classe de filmadores que inventam o seu espaço-tempo no momento da filmagem, em oposição a cineastas como Lang ou Hitchcock, que subordinam um espaço já preestabelecido à sua vontade de mestria. O instante fundamental do cinema de Cassavetes é, portanto, o da filmagem. O risco é grande, para técnicos e atores, tudo num espaço de atmosferas, longe de filmagens dramatizadas, em que palavras como “Ação” ou “corte” perdem importância, e então a técnica jamais se torna um fetiche no cinema de Cassavetes.
   A direção deste cineasta privilegia sempre a busca do ambiente ou do ritmo da cena, e a câmera é essencialmente livre em Cassavetes, e sempre privilegiando o ator mais que o próprio diretor. Há em todo o cinema de Cassavetes uma excepcional liberdade da câmera e da montagem, e uma parte do movimento é definida pelo gesto dos atores, completando-se num movimento interno que Cassavetes procura apreender por todos os meios, incluindo também o gestual da câmera e na montagem, e tudo isso associado, implicando um pensamento, uma percepção global e específica de todo o espaço-tempo. É bom notar que a câmera de Cassavetes raramente é fixa, buscando febrilmente os rostos, os corpos. Corresponde, como no action-painting de Pollock, à constituição de um espaço do tocar mais do que do ver, a visão é subordinada ao tato.

CINEMA E PINTURA
   Por sua vez, existem duas grandes maneiras de ser pintor no cinema. Uma, bem artificial, consiste em reter imagens da pintura, e reproduzi-las fielmente na película. É o método de um Cocteau, assim como dos maneiristas como Carax, mas é também o método de Pasolini ou de Tarkovski. A outra maneira é encarar a pintura numa relação interna ao cinema, isto é, na atitude do cineasta ao filmar, no próprio gesto estético. É o método de Pialat ou de Antonioni, de Bresson ou do próprio Cassavetes.
   Há no ambiente dos filmes de Cassavetes algo de introdução ao gestual e ao imundo, destituindo a obra de seu estatuto de puro ícone. O antagonismo entre abstração geométrica (Mondrian) e abstração lírica (Pollock) corresponde a uma oposição jamais declarada entre Cassavetes aos adeptos do maneirismo. Os filmes mais pessoais de Cassavetes, por sua vez, não provocam no espectador um devaneio ou uma referência a um estado poético no sentido usual. Ao contrário, são grandes ondas de percepção violenta, sensações de abismo, que tocam o corpo antes do espírito.

O ÁLCOOL COMO FERMENTO
   Contemporâneo da aventura psicodélica, o cinema de Cassavetes está ligado às grandes experiências literárias de grande liberação, como nas obras de Malcolm Lowry ou da beat generation. Mas havia uma diferença entre os beats e Cassavetes. Os primeiros eram mais adeptos da maconha e do LSD, e Cassavetes tinha muito como temática o álcool. Há uma diferença fundamental de sensibilidade entre as drogas psicodélicas e o álcool, pois as primeiras, vegetais ou químicas, afetam o espírito, desenvolvem a imaginação, levam o indivíduo a um estado de sonho desperto, destacado do real, um mundo que flutua e plana. E o álcool, ao contrário, tem para Cassavetes algo de terreno, ligado ao chão e ao corpo, num desregramento dos sentidos oposto ao do visionário rimbaudiano.
   Esta visão do álcool de Cassavetes é bem diferente, por exemplo, da de Malcolm Lowry, pois neste o álcool já aparece na experiência de um alcoólatra, ou seja, captando seus efeitos alucinatórios e deformantes, próximo de um delirium tremens permanente. Neste ponto, Cassavetes se identifica com romancistas como Chandler e Hammett, para quem beber é o caminho mais curto para se atingir a lucidez essencial, aonde aparecem personagens parecidos com o do romance noir, em que estes são profundamente lúcidos mesmo na mais aguda embriaguez.

CONCLUSÃO
   Cassavetes, em seu cinema, por fim, é um dos corajosos diretores que fizeram da independência criativa e artística um pilar do próprio trabalho. Este teatrólogo e cineasta fazia algo que nascia tanto da experiência coletiva com seus técnicos e atores, como dos movimentos de sua intuição, numa câmera livre de tomadas intensas e corpos embriagados respirando defronte à ação da filmagem. Cassavetes é tão ousado como a geração de cineastas americanos da década de 1970, e foi algo sui generis, no entanto, neste cenário de batalha entre indústria hollywoodiana, dos grandes estúdios, e a liberdade tão cara aos criadores de mundos que são os artistas mais tenazes na sua vontade de voz própria, e Cassavetes foi um desses, filmou com liberdade tudo o que quis.
   Cassavetes é o cineasta que rompeu com Hollywood numa operação de engajamento e persistência que o levou a fazer atos heroicos como Shadows, e levar à frente uma filmografia e obra de independência, e que hoje é influência sobre uma pequena parte das mentes criativas do cinema, apesar do predomínio já decadente dos blockbusters de franquias febris que se multiplicam como coelhos nas melhores salas de cinema do mundo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/24303/17/cassavetes-colocou-a-imagem-da-america-no-gosto-da-velha-europa


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