PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 26 de março de 2013

PIEDADE DIVINA

  A casa que pega fogo, entra pelo pátio, como sinal da vida em chama que nos derrota. As lutas por que passei não foram todas ainda, as que mais terei que lutar, as que mais terei que desafiar.
   As cores selvagens que buscam toda a nota fria dos símbolos, o estro fundamental que grita na vaga aberta dos mares de sonho, as asas que dissolvem o meu poema como soluço da febre matinal, como o sol que nunca se porá diante da luz divina!
   Eu, com os ares mais sombrios de minha juventude que se foi, não sei que cartas eu deveria ter escrito antes de morrer, mas tenho certo em todas as horas de morrer que não morri, pois do vento que enobrece a chuva, não sei que sonhos ficaram ao mar, de tanto sonhar com a nau primeira do poema inaugural.
   A luta maior que se trava no abismo é a vida entrando em toda poesia que não se resolve no abismo, a poesia voa em tanta clara nuvem, de tanto calar e tanto mais gritar, de tanto o sonho como o pesadelo, eu que não sei a hora mais forte de minha morte, como não sei a hora certa de minha vida.
   Gira o mundo como nervo espasmódico, como espasmo se derrama a prosa que não se vê, a máquina tonteia de tanto amor e ódio, as asas que não sonhei se abriram num véu de Ísis na praia de diamantes, como na História se sorri sem saber bem do quê.
   As praias que nunca cheguei a conhecer, praias desertas do vinho que foge quando penso em partir ao nada, e no nada desnudar-se como fugitivo da nau que nunca virá, ficam na vida que nunca foi mais que lamento e fogo, lamento e fogo que são rios em festa da dor mais profunda.
   Dilata a pupila no nervo mais fundo de meu corpo, com as sonhadas vezes que tinha na aurora do vil metal, como obséquio que não nos dá a pedra gelada da Filosofia, estando o dia como a noite, totalmente perdidos na flor da verdade, e as almas em limbo na marcha ao Hades, eu que as salvei dos lumes de Caronte, eu que peguei pesadelos na relva da perdição e naufraguei com os meus delírios irrisórios. A vida de sonho que não tem fim, a vida mortal que é eterna.
   No real dia do reinado tive o mais belo denodo, fastígio do martirológio da guerra, e as tropas fugiam da anarquia como covardes fogem do fogo, como doentes fogem da poesia! A luta mais furiosa se travou quando o poema acordou e disse seu poder, quando o tempo bravo da hora maldita matou o karma como um cadáver pálido do medo.
   Eu lembro do caos da anarquia, eu vou ao sinal da espada como guerra atômica por cada teor do desastre. Eu vi em meus olhos a flor do fogo que foi o dia do suspiro da feliz canção, nada mais importava naquele drama de queda e vigor.
   Veste-se vetusta sombra na paisagem que fulgura no arrebol, flor de tudo em vaso branco como no quarto do poeta onde se vê o seu fantasma, com todas as liberdades de um monturo de versos que se perdem no raio bruto do tempo.
   Fervura de William Blake, pintura do caos desfigurado, vinha volvendo a carne em cada desejo de virtude, manta sagrada que cobre a santidade na mais perfeita harmonia dos mares de sal em nuvem de terror. As virtudes do poema se perdem no azul escuro da liberdade fatal, as belezas são santas figuras no santuário da erva do diabo, as manchas da biografia são hematomas na alma da canção vitoriosa.
   Na calmaria de meu sonho azul escuro eu vi cada matilha no meio da mata onde morava um velho eremita, descia nas águas de fonte pura, e desaparecia como fumaça nas litanias que ali se celebrava. O velho era a minh`alma em outra era, e eu via como canto de rouxinol a flor de Brahma nascer no pé de Arjuna, na mais pacífica das orações do coração, as nuvens desciam ao coração da floresta e a magia branca do levitador urdia a esperança em tonalidade de música venerável, mais que o sangue, ali se derramava o cântico da aurora filosofal.
   Na cidade, ao longe, se ouvia o ruído mesmerizado que bufava como acorde dissonante, era a mancha das danças macabras na vingança noturna que delirava em absurdos como num teatro de vampiros decadentes, o sangue da virtude lhes era caro, e o preço pago pelo pecado era acre. Nossa campanha chegava ao alvo, loas dançavam no inferno das lembranças, o corpo intacto se condoía de doença e febre, a juventude em sangue vertido buscava uma paz e um sentido, o corpo lutando com a alma em dor de fundo prazer, um sonho mais que lindo no mar da esmeralda que sorria como no tempo dos pães ázimos de um deserto do Egito, a levedura não gerada, e o terrível pecado em labor de ressurreição, a liberdade massacrada com o veneno letal da danação.
   O resto é História, o absurdo levita com a hora do sangue vertido como sinfonia na calada da noite, a madrugada viceja na verdade de seus lemas, o corpo viaja em pele marcada de cicatrizes, mais violeta em seu peito, mais vermelho em seus olhos, mais dança em seu chão, toda a verdade gritada nos veios do tempo, todo o sonho no instante da visão. Um só vinho na flor de poesia que mora na alma arrebatada de um delírio eterno, o mar e a vingança, a tempestade e o silêncio, nada mais importa, nada mais fica, senão a paz de uma montanha no fim da existência.

26/03/2013 Libertação
(Gustavo Bastos) 

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