PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

FLANELINHA E A RUA DO CAOS

“Zé Antônio começou contando de sua relação com Zé Pelintra”

Estava trabalhando num documentário novo, sobre guardadores de carros em eventos no Rio de Janeiro. Já tinha feito alguns trabalhos online durante a pandemia de pintura virtual, um novo hobby que adquiri por não poder fazer pautas em locais que gostava, como antes da Covid-19. Depois que tomei três doses de vacina, resolvi retomar o meu trabalho de documentarista eventual, e logo me deparei também com uma pauta para o meu jornal.

Um dos guardadores de carro que conheci já tinha uns sessenta e seis anos e tinha caído naquela depois de ter perdido seu emprego em uma empresa prestadora de serviços para a construção civil. Ele era um dos responsáveis pela limpeza e conversava muito com um mestre de obras que, depois de beber muita cachaça, tinha morrido de infarto, e um mês depois, a empresa deste agora guardador de carros o demitiu.

Seu nome era José Antônio Costa Ribeiro dos Reis, era também um ritmista de um grupo de samba, e parecia um homem meio louco, que gostava de cachaça e cigarro, e de ouvir muito Cartola e Nelson do Cavaquinho, este último, como um tipo de mestre dele, tanto na música como nas bebedeiras. Ele também falou que seu pai tinha conhecido Ismael Silva etc.

Os papos sobre Noel Rosa renderam muito também e ele me contou que tinha uma máfia que comandava aqueles guardadores de carros e que ele não podia falar nada. Resolvi que iria ouvir um pouco de sua vida pregressa, e pedi autorização para produzir este material para a minha pauta jornalística, e que ele, Zé Antônio, seria um dos personagens principais deste meu novo documentário, que eu pensava em chamar “Flanelinha e a rua do caos”.

Já tinha gravado alguns takes, tinha algumas dezenas, poderia descartar dois terços deste material e aproveitar um outro terço que já dava um bom bocado. Lá tinha o marmiteiro, e também o chefe daqueles guardadores, que falou, falou, mas não entrou em detalhes das ilegalidades que rolavam por ali, e eu também não me arrisquei a perguntar. Conversei longamente com dois guardadores, um menino novo de nome Jonas, e um senhor de nome Timóteo, este que era muito amigo do Zé Antônio.

Por sua vez, Zé Antônio começou contando de sua relação com Zé Pelintra e de como suas tours pela Lapa tinham a marca da influência desta entidade. Suas idas ao terreiro de Dona Noca, no Morro da Providência, dava um pano bom de histórias, como de seus trabalhos com pólvora e explosões, e que serviam para ele ganhar a proteção da esquerda matreira, que levantava e derrubava gente como eles achavam melhor. 

No caso dele, depois de ter perdido o seu emprego na construção civil, ele ficou seis meses sem trabalho, fazendo um bico de entrega de marmita, e foi quando ele conheceu o Timóteo, que o levou com ele para trabalhar guardando carros em eventos. Ele diz que foi Zé Pelintra que apresentou o Timóteo, só que sua mulher, Ruth, dizia que era coisa da cabeça dele, ela era meio cética e porra louca, e levava tudo na piada.

No caso da Lapa, ele fazia disputas de pif paf e de bilhar, de vez em quando se embrenhava numa roda de Capoeira Angola e conhecia uns malandros que faziam jogos de mesa para enganar incautos, um desses malandros era sobrinho dele, Fabinho, e ele disse que o Fabinho já tinha escapado de duas tocaias, e que seu Zé Pelintra tinha dado conta de três de seus carrascos, dois tinham morrido de acidente automobilístico e um de overdose de cocaína.

A disputa de bilhar tinha o Doca, que uns chamavam na brincadeira de Rui Chapéu, e que ganhava uns bons trocados em apostas, enquanto o Zé Antônio, de vez em quando, dobrava o que tinha ganhado guardando carros, e depois ganhava mais uns agrados no pif paf e recebia almoço de marmita pago pelo Fabinho quando rolava uma bolada tomada dos otários da rua. O Doca conhecia também o Timóteo e não trabalhava, fazia jogos para tomar dinheiro na rua, e era mais esperto até que o Fabinho, que tinha aprendido com ele, mas não tudo.

Sobre o próprio Zé Antônio, ele disse ter conhecido Ruth numa roda de samba, e o pai dela foi que começou a beber com ele primeiro, gostou dele e a Ruth apareceu e aconteceu a mesma coisa, foi tudo muito rápido, e ele foi estranhar depois é que a Ruth não perdia viagem e nem um chiste, era dá pá virada, e ele agora já tava acostumado com aquela zoeira, pois era toda hora, o Zé Antônio dizia que tinha um erê brincalhão que ficava pendurado nela e falando bobagem o tempo todo. Dele, fiquei sabendo que trabalhou de pescador quando jovem, e que tinha aprendido com Iemanjá o marulho e o ritmo dos cardumes.

Me parecia meio louca a descrição dele sobre Ruth, era uma relação incomum, e seu filho Ricardinho era que nem a mãe, um pândego de mão cheia, e que agora pensava em estudar teatro e ganhar dinheiro com stand-up comedy. De resto, depois que saiu da pesca, tentou a sorte como vendedor, garçom, ajudante de pedreiro, frentista, músico de rua e motorista de madame, já atuou como cambono do Exú Caveira, e foi quando esta sua história com o Zé Pelintra começou. Depois de ficar como motorista de madame, aprendeu um pouquinho de inglês, mas depois perdeu o emprego e foi parar na tal empresa prestadora de serviços para a construção civil.

Hoje em dia, Ruth continua com o seu trabalho de babá, o que fez a vida toda, desde os quinze anos, e acompanha Zé Antônio nas bebedeiras e nos jogos de bilhar. Seu melhor amigo hoje em dia é o Timóteo, e o Jonas, que conhece seu sobrinho Fabinho, não se mete em malandragem, vai para a igreja Assembleia de Deus para orar e ouvir a palavra, e junta tudo o que tem com o seu trabalho de guardador de carros. Não se mete em confusão. Fabinho é brigão, puxa faca e joga capoeira, por isso já foi tocaiado, até agora escapando.

Terminei a minha conversa com Zé Antônio, este take ficou bom, e entraria sem cortes para a fita master do meu documentário. Depois, de noite, fomos eu, ele e o Timóteo, para beber na Lapa, conversar e jogar bilhar, não foi novidade que eu levei uma surra na mesa verde daqueles alunos de Rui Chapéu. Mas, tudo bem, tinha um aipim frito com carne seca e cebola que compensou tudo no fim. 

Guilherme Thompson, cronista e outsider.

 

Guilherme Thompson é um cronista outsider, documentarista eventual, jornalista autodidata, nascido em 01/01/1974 na cidade do Rio de Janeiro, ganha a vida em jornais diversos, trabalha por demanda própria, vive nas ruas caçando pauta, meio como um antropólogo intuitivo, estuda literatura e filosofia por conta própria, gosta de se vestir com camisas de bandas de rock clássico.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor. 

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/flanelinha-e-a-rua-do-caos

Nenhum comentário:

Postar um comentário