PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XXIII


“Padre Cícero já é tido, há muito tempo, por santo por uma legião imensa de fiéis pelo Brasil”

Padre Cícero nasceu numa pequena cidade do Ceará, Crato, no ano de 1844. Aos doze anos de idade fez voto de castidade, já influenciado pela leitura de São Francisco de Sales. Em 1860, aos dezesseis anos, Cícero foi para Cajazeiras, na Paraíba, para estudar, mas ficou lá até 1962 somente, quando houve o falecimento de seu pai e ele teve que voltar para ajudar a sua mãe e suas duas irmãs solteiras, pois a morte de seu pai trouxe graves problemas financeiros para a sua família. E, em 1865, aos vinte e um anos, Cícero entrou no seminário de Fortaleza. Padre Cícero se ordenou em 1870, aos vinte e seis anos e voltou para Crato, procurando uma paróquia para liderar.
No final de 1871, no Natal, Padre Cícero conheceu o povoado de Juazeiro, gostou muito do local e retornou para lá alguns meses depois, já em 1872, para morar, e reza a lenda que ele foi impulsionado para isto depois de ter tido um sonho com Jesus e os doze apóstolos, quando uma multidão com pertences humildes invadiu o local e Jesus lhe disse : “E você, Padre Cícero, tome conta deles!”. Padre Cícero respondeu ao chamado, e dali para a frente faria a sua história em Juazeiro.
Juazeiro ainda era um pequeno lugarejo, mas Padre Cícero começou por lá um intenso trabalho pastoral, com reforma da capelinha que já havia no local, pregações, aconselhamentos, confissões e inúmeras visitas domiciliares, com este esforço foi ganhando a confiança e a admiração da população do local e se tornou a maior liderança da comunidade de Juazeiro.
Padre Cícero tinha uma moral rígida e logo reformou os costumes do local, acabando com as bebedeiras e a prostituição, e seu trabalho pastoral foi crescendo, recrutando mulheres solteiras e viúvas, organizando uma irmandade leiga, formada por beatas, que o ajudariam em seu trabalho pastoral. Num local em que dominavam a lei do punhal e do bacamarte, Padre Cícero conseguiu mudar esta cultura violenta e converter Juazeiro num lugar de devoção católica e de religiosidade popular.
Em 1889, no dia 1 de março, aconteceria o fato que mudaria a história de Padre Cícero e também de Juazeiro, que seria o milagre da hóstia, quando a beata Maria de Araújo recebeu a comunhão das mãos de Padre Cícero e a hóstia consagrada se transformou em sangue ao ir para a boca da beata. O fenômeno aconteceu outras vezes, e o povoado entendeu o milagre como uma manifestação de derramamento do sangue de Cristo. Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos ficaram fascinados e creram no dito milagre.  
Inicialmente, Padre Cícero foi com cuidado verificar do que se tratava tal fenômeno ou suposto milagre da hóstia e chamou dois médicos e um farmacêutico para dar um parecer, e eles disseram que não havia explicação científica para o caso. Tal afirmação de que não havia explicação pela ciência deste caso reforçou a ideia de que se tratava de um milagre, e a fé sobre o caso como uma manifestação do sangue de Cristo se expandiu, e começou uma verdadeira peregrinação de diversos locais do sertão nordestino em direção de Juazeiro para ver o tal milagre.
A repercussão do milagre, e sua consequente peregrinação massiva para Juazeiro, chamou a atenção do bispo de Fortaleza, que chamou o Padre Cícero para prestar esclarecimentos. E o bispo, em seguida, mandou que tais fatos fossem investigados oficialmente pela Igreja para uma posição definitiva sobre o caso, e uma comissão nomeada pelo bispo foi a Juazeiro estudar o caso da hóstia. A constatação da comissão, depois de ver o fenômeno como um todo, atestou de que se tratava de um milagre, de um fenômeno de origem divina, que entra no Vaticano na classificação conhecida como milagres eucarísticos.
Contudo, o bispo, influenciado por clérigos céticos, que refutavam a ideia de milagre em Juazeiro, nomeou uma nova comissão, e desta vez, ao chegar a comissão em Juazeiro, o fenômeno não se repetiu, e a conclusão, desta vez, foi de que não havia milagre. O Padre Cícero, o povoado de Juazeiro e os padres que acreditavam no milagre protestaram, e o bispo entendeu tal movimento como uma desobediência a ele, que enviou um relatório à Santa Sé, e esta confirmou a negativa do milagre dada pelo bispo, os padres tiveram que se retratar, e Padre Cícero foi suspenso da ordem e acusado de manipular a fé. Tal pena foi combatida pelo resto da vida de Padre Cícero, mas este morreu sem a sua revogação.
Padre Cícero foi proibido de celebrar missas e acabou entrando para a política, já na luta da emancipação de Juazeiro, que aconteceu em 22 de julho de 1911, e o Padre Cícero foi nomeado o prefeito do novo município, chegando a ser nomeado, posteriormente, como Vice-Governador do Ceará, mas sem chegar a ocupar o cargo. Padre Cícero, depois de ter sido proibido de celebrar, dentre alguns ritos católicos, também os de batismos, aceitou apadrinhar várias crianças, quando surgiu o epíteto de Padrinho Padre Cícero, que teve uma corruptela popular, virando Padim Pade Ciço.
Padre Cícero passou a se tornar a figura mais importante da História de Juazeiro, e seu maior benfeitor, e a cidade se tornou, depois de toda a atividade política e do trabalho pastoral realizado por Padre Cícero, como o local mais importante do interior do Ceará, pois o município cresceu e se incrementou com o tempo, e sobretudo depois da passagem célebre do Padre Cícero por lá. Ele faleceu em 1934, aos 90 anos, e depois disso, Juazeiro só prosperou, e a devoção a Padre Cícero só aumentou entre os sertanejos do Nordeste, e até hoje, no Dia de Finados, uma multidão de romeiros peregrina para Juazeiro para visitar o seu túmulo, na Capela do Socorro.
Idolatrado por cerca de 2,5 milhões de romeiros, que peregrinam todos os anos para Juazeiro, Padre Cícero foi por muito tempo um maldito renegado pela Igreja Católica, mas, mesmo banido pelo clero católico, ele ganhou vulto no imaginário popular e coletivo, e virou uma espécie de mártir, só sendo reabilitado pela Igreja Católica recentemente. Padre Cícero viveu entre os mundos do misticismo sertanejo, um universo mágico povoado por mulas-sem-cabeça, lobisomens e almas penadas, de santos padroeiros que recebiam devoções festivas pela população, além da profusão de profetas populares do apocalipse, que volta e meia apareciam no sertão nordestino, e o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da doutrina do seminário, que é o mundo oficial da ascese católica.
Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar se debruçou sobre a vasta documentação sobre Padre Cícero, tanto no Vaticano como no Brasil, coordenada pelo bispo de Crato, com Fernando Panico, e o relatório final foi entregue em maio de 2006 à Santa Sé, junto com este relatório, 11 volumes de transcrições das centenas de certas trocadas entre as principais personagens da história da vida do padre, e um outro volume com cerca de 150 mil assinaturas de populares a favor da reabilitação do Padre Cícero, e junto com tais assinaturas se somava um abaixo-assinado com o nome de 253 bispos brasileiros a favor da causa. E como soma final uma carta de dom Fernando ao papa, também com o fito da reabilitação de Padre Cícero pela Igreja Católica.
Em 2015, o perdão da Igreja se tornou 100 % oficial, e o bispo Dom Fernando Panico declarou a sua reabilitação em 13 de dezembro, que foi o passo para a sua beatificação, e a autorização do culto público a seu nome. E devido aos inúmeros milagres e graças alcançados por romeiros que dizem terem sido possíveis por intercessão do Padre Cícero, o caso pode evoluir para a sua canonização, processo este que, por exemplo, no caso do primeiro santo nascido no Brasil, o Frei Galvão, demorou vários anos. Contudo, mesmo ainda não canonizado pela Igreja Católica, Padre Cícero já é tido, há muito tempo, por santo por uma legião imensa de fiéis pelo Brasil, e já é uma das figuras mais biografadas do mundo, sendo estudado academicamente no Brasil e no Exterior.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.





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