PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 14 de maio de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE III

“o livro da Natureza é escrito em linguagem matemática”

O LIVRO DA NATUREZA EM GALILEU

Galileu tem como a metáfora mais famosa de sua obra a de que o livro da Natureza é escrito em linguagem matemática, e é usando tal metáfora, que é o próprio método da nova filosofia, que é aqui realizada nada mais do que a inauguração da ciência moderna. Nas palavras de Galileu, temos: “A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode entender se antes não se aprende a compreender a língua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível para os homens entender suas palavras; sem eles é rodar em vão por um labirinto escuro.” (Saggiatore, 6).
Tal forma de ver o livro da Natureza tem antecedentes em filósofos da Idade Média, e também envolve figuras como Nicolas de Cues, Montaigne, e também era usada por contemporâneos de Galileu como Francis Bacon e Tommaso Campanella. Já na Istoria e dimostrazioni intorno alle macchie solari (1613), ou seja, dez anos antes do Saggiatore, Galileu opunha a leitura direta (livro do mundo) à indireta (livros de Aristóteles). E a inovação de Galileu foi a de que ele tinha atenção à metáfora livro-mundo como um alfabeto especial, ou seja, Galileu tinha sua observação voltada à natureza no sentido de determinar os caracteres nos quais esta está escrita. 
Para Galileu, portanto, a matemática e sobretudo a geometria são este alfabeto que decifram os elementos naturais e do universo, e Galileu então não fala ainda das elipses de Kepler, mas sim, fazendo a sua análise combinatória, parte das formas mais simples. E aqui temos o combate de Galileu contra o cânone do modelo ptolomaico, mas ainda numa ideia clássica de proporção e perfeição, numa relação do alfabeto novo da ciência moderna ao estudar o livro da natureza com uma ideia de nobreza das formas, como melhores que as formas naturais empíricas, acidentadas etc.
Segundo Calvino: “É sobretudo a propósito das irregularidades da Lua que a questão é discutida: Enquanto partidário da geometria, Galileu deveria apoiar a causa da superioridade das formas geométricas, mas enquanto observador da natureza ele recusa a ideia de uma perfeição abstrata e opõe a imagem da Lua “montanhosa, áspera e desigual”, à pureza dos céus da cosmologia aristotélico-ptolomaica.”
A verdadeira oposição se situa, entretanto, entre imobilidade e mobilidade, e é contra uma imagem de imobilidade da natureza que Galileu luta para derrubá-la. E é no alfabeto geométrico ou no modelo matemático da natureza que Galileu demonstrará, decompondo seus elementos até aos mínimos possíveis, a prova e a representação de todas as formas do movimento e da mudança, derrubando o modelo dividido da física aristotélica, de uma oposição entre céus imutáveis e elementos terrestres, dos mundos supralunar e sublunar.
Seguindo tal ruptura, temos o texto de Calvino, que cita o diálogo de Galileu, por fim: “A dimensão filosófica desta operação está bem ilustrada por esta fala do Dialogo entre o ptolomaico Simplicio e Salvati, porta-voz do autor, em que retorna o tema da “nobreza”: “Simp.: Este modo de filosofar tende à subversão de toda a filosofia natural e a desordenar e arruinar o céu, a Terra e todo o universo. Mas acredito que os fundamentos dos peripatéticos sejam tais que não há perigo de que com a ruína eles possam construir novas ciências. Salv.: Não se preocupe com o céu nem com a Terra, nem tema sua subversão, como tampouco da filosofia; porque, quanto ao céu, é vão que temam aquilo que vocês mesmos consideram inalterável e impassível; quanto à Terra, tratamos de nobilitá-la e aperfeiçoá-la, enquanto procuramos fazê-la semelhante aos corpos celestes e de certo modo colocá-la quase no céu, de onde os seus filósofos a expulsaram.”

CYRANO NA LUA

Na época em que Galileu entrava em conflito contra o Santo Ofício, havia um de seus partidários parisienses que se levantava para propor um novo e sugestivo modelo de sistema heliocêntrico: o universo é feito como uma cebola, e seu centro contém um pequeno Sol “deste pequeno mundo, que aquece e nutre o sal vegetativo de toda a massa”.
E aqui podemos passar aos infinitos mundos de Giordano Bruno; e se vê que todos esses corpos celestes “que se veem ou não se veem, suspensos no azul do universo, não passam da espuma dos sóis que se depuram. Como poderiam subsistir esses grandes fogos, se não fossem alimentados por alguma matéria que os nutre?”. E aqui temos a descrição na qual podemos já fazer um paralelo com a explicação atual da condensação dos planetas da nebulosa primordial e das massas estelares que se contraem e se expandem.
E tal imaginoso cosmógrafo é Savinien de Cyrano (1619-55), mais conhecido como Cyrano de Bergerac, como um verdadeiro precursor da ficção científica, numa cosmografia em que a personagem mistura os conhecimentos científicos surgidos na época com elementos das tradições mágicas renascentistas, e que nele revelam uma imaginação poética de um sentimento cósmico que vai evocar em suas elucubrações o atomismo lucreciano, numa ideia de unidade de todas as coisas, e que aqui reúne os quatro elementos de Empédocles como uma única realidade de átomos que estão ou rarefeitos numa hora ou densos num outro momento, numa espécie de ciência epicuriana. 
A inventividade de Cyrano é exemplificada nos sistemas para ir à Lua, e Calvino nos diz: “o patriarca Enoch amarra sob as axilas dois vasos cheios de fumaça de um sacrifício que deve subir ao céu; o profeta Elias realizou a mesma viagem instalando-se numa pequena embarcação de ferro e lançando para o ar uma bola imantada; quanto a ele, Cyrano, tendo untado com unguento à base de miolo de boi as amassaduras resultantes das tentativas precedentes, sentiu-se erguido na direção do satélite, porque a Lua costuma sugar o miolo dos animais.”
E neste contexto de Cyrano a Lua abrigava o Paraíso, com a personagem principal Cyrano caindo exatamente sobre a Árvore da Vida, e a serpente aqui, depois do pecado original, sendo agora o intestino humano, e que é a explicação dada pelo profeta Elias a Cyrano, e que também nos narra o fato da serpente ser também “aquela que sai do ventre do homem e se lança para a mulher a fim de espirrar seu veneno nela, provocando um inchaço que dura nove meses.” Mas Elias fica bravo com as brincadeiras de Cyrano e o expulsa do Éden, o que aqui é mais um reflexo desta obra ambígua por seu caráter jocoso em que verdade e mentira se tornam relativas ou impossíveis de serem distinguidas.
Cyrano, depois de ser expulso do Éden, vai visitar as cidades da Lua, tendo como guia o “demônio de Sócrates”, e que, segundo Calvino, demônio do qual “Plutarco falou num pequeno livro seu.” E ainda seguindo Calvino, temos que: “Qualidade intelectual e qualidade poética convergem em Cyrano e fazem dele um escritor extraordinário, no Seiscentos francês e em termos absolutos. Intelectualmente é um “libertino”, um polemista envolvido na confusão que está mandando para os ares a velha concepção do mundo: é partidário do sensualismo de Gassendi e da astronomia de Copérnico, mas é nutrido sobretudo pela “filosofia natural” do Quinhentos italiano: Cardano, Bruno, Campanella.”
Aqui Cyrano se revela como um escritor barroco, sinuoso, virtuose, lugar no qual não é mais o da correção das ideias que são colocadas à frente, mas sim de um divertimento e liberdades em que a troça revela a riqueza das ideias diversas sem uma unidade conceitual ou de realidade, tudo num jogo em que a personagem conhece bem seus elementos e por isso mesmo pode brincar com tudo, tendo propriedade intelectual sobre seus objetos.
E ainda segundo Calvino: “Poderíamos dizer que a viagem à Lua de Cyrano antecipa em algumas situações as viagens de Gulliver: na Lua como em Brobdignag o visitante se encontra no meio de seres humanos muito maiores que ele e que o exibem como um animalzinho. Assim como a sequência de desventuras e de encontros com personagens de sabedoria paradoxal antecipa as peripécias do Candide voltairiano.”
Contudo, o sucesso literário de Cyrano ocorreu mais tardiamente, com o livro sendo póstumo, e também mutilado pela censura, vindo a lume em seu conteúdo original já no século XX. No entanto, temos uma redescoberta de Cyrano na era romântica, como nos diz Calvino: “Charles Nodier primeiro e depois sobretudo Théophile Gautier haviam, baseando-se numa tradição anedótica dispersa, desenhado a personagem do poeta-espadachim e zombeteiro que depois o habilíssimo Rostand transformou no herói do bem-sucedido drama em versos.”  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/34072/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicosij




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