PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 3 de julho de 2016

FRIEDRICH HÖLDERLIN E SEUS POEMAS DA ERA PRÉ-ROMÂNTICA – PARTE III

“Hölderlin apontava como caminho de unidade nacional o despertar intelectual e material da Alemanha”

Em “Canto do alemão”, repetindo conceitualmente o que foi feito em alguns pontos explicitado no seu clássico Hiperíon, Hölderlin critica a Alemanha de sua época por ainda não ter consciência nacional, por ainda não ter em sua grandeza despertado para um só destino. Nos estertores do século XVIII, que presenciara a revolução na França, a Alemanha ainda nem sonhava em unidade política, não passando de um monstro grotesco de aproximadamente 1800 territórios autônomos.
Por sua vez, Hölderlin apontava como caminho de unidade nacional o despertar intelectual e material da Alemanha, lembrado numa das estrofes do “Canto do alemão”: “Vi nas margens, em cidades nobres onde/As oficinas trabalham em silêncio/Florir o saber e o teu sol brando/Conduzir o artista à seriedade.” Aqui aparece a cidade pré-industrial, com o trabalho das oficinas, como anunciação de uma nova época vindoura que traria o saber para uma nação até então fragmentada. Em seu poema, no entanto, não prevalecem o chauvinismo militarista que viria a surgir na Alemanha unificada de Bismarck, mas um patriotismo de outra natureza: a grandeza que o poeta sonhava para a sua pátria era, ao contrário da unidade militar, a grandeza da paz, do saber, da fraternidade: “Terra do gênio mais alto, mais severo!/Terra do amor!”.
No poema “O arquipélago” já vemos o Hölderlin da fase das grandes elegias, tal poema que é o mais longo e mais sustentado de sua obra poética. Trata-se de uma peça de temática sobre a Grécia da Antiguidade, algo que é comum a vários poetas, o tema mítico, que hoje é apenas algo que se confunde com tiques de poetas perdidos nas ruas com seus livrinhos de bolso achando que são “novos Homeros”, poesia deslocada, para ser gentil, mas que por muito tempo agraciou a poesia do mundo.
O poema do arquipélago é um amplo sopro de épica, cujo destaque está nas estrofes consagradas à descrição da batalha de Salamina. O registro descritivo da épica, seu componente mítico por excelência, se junta aqui com os lamentos de elegia, na sensação clássica e comumente humana pelo que foi e já não é mais e com invocação de ode para saudar as glórias do passado e as promessas do futuro. As invocações do poema vão dirigidas ao arquipélago grego que lhe dá título, o Ancião ou Pai, testemunha da Idade de Ouro (aqui a ideia de origem, que anda ao lado da de perfeição), em cuja companhia vivem os Celestes.
O registro elegíaco serve a Hölderlin agora para evocar as sombras sagradas do passado numa libação fúnebre em que se manifesta a presença de fundo órfico, sua ida ao além e o conhecimento profundo que vem do mundo dos mortos, orfismo cujo título de iniciado Hölderlin se confere, e que também é irá se fundir com o dionisíaco, conforme se vê no poema “Pão e vinho”, também de caráter elegíaco, desta fase em que estava a poesia de Hölderlin, que pode ser considerada o clímax de sua poesia, antes do colapso que o colocaria nas trevas da loucura.
“Pão e vinho” foi escrito em 1801, e este é um dos poemas supremos de Hölderlin, o ponto no qual a mitologia grega, que hoje pode ser um tique funesto em alguns casos, para a poesia, ganha, naquela época da Alemanha, todo o sentido, pois Hölderlin sempre tematizara a Grécia diante da Alemanha, e não como um emulador canastrão de um Homero imaginário. Neste poema se alternam os pólos opostos, porém complementares, numa evocação indireta aqui a Heráclito, o filósofo do pólemos que vira harmonia, poema em que aparecem o dia e a noite, a lucidez e a embriaguez, a terra e o céu, o sofrimento e a alegria, numa série antinômica cuja conciliação se faz à luz do sentimento do divino, e tal divindade harmônica vai resultar exatamente na eclosão de toda uma dimensão latente da consciência, o alcance transcendente é um destes anelos das elegias míticas de Hölderlin, mas que sempre resultará na utopia da Alemanha nova.
Há, nesse empenho de conciliação, algo de órfico, na medida em que o orfismo representou, na religiosidade grega, a harmonização entre o apolíneo e o dionisíaco. Cabe lembrar que não há menção expressa ao orfismo na poesia de Hölderlin, os traços de orfismo que aparecem são certamente explicados pelas suas leituras gregas – Heráclito, Empédocles, Platão, Píndaro – onde eles estavam bem presentes. O título, por sua vez, explicita as duas espécies comungatórias do culto de Deméter-Dioniso.
E à “noite inspiradora” celebrada na segunda seção do poema estão ligados os motivos da embriaguez e da loucura de Dioniso, e o papel intermediário de Orfeu no conciliar a luz apolínea do intelecto, da ordem e da proporção, com a noite dionisíaca dos instintos, da loucura e da embriaguez. E no poema tal habilidade é transferida ao próprio Baco, quando diz deste que “concilia o dia e a noite”. O fulcro órfico de “Pão e vinho”, por sua vez, se estabelece principalmente no caráter soteriológico (salvacionista) da sua visão da proximidade e intersecção possível entre o humano e o divino, tendo seu momento de epifania na venturosa Grécia da Idade de Ouro, mais um clássico idílio da poesia em seu mito de origem, lugar onde se busca nada mais que a perfeição.
“Pão e vinho” vê o reinstaurador do divino entre os homens, este ponto em que há no mito de origem da idade de Ouro, na verdade, a conexão da Grécia antiga e arcaica com a Alemanha do futuro, o poeta Hölderlin vive o presente, mas sua poesia insiste em se comportar como visionária, apontando sempre para além, num resgate do divino no aquém, e há então a volta do mito como um religare (religião) do homem com o divino, e nisto com a poesia propondo a unidade da Alemanha vindoura.
Esse epíteto faz inclusive pensar na sucessão mítica de Zeus por Dioniso, anunciada nas escrituras órficas, como o advento de uma segunda e futura idade de ouro, assim como a primeira surgira também de uma sucessão do velho pelo novo: a de Cronos por Zeus. E, uma vez que Hölderlin já tinha diante de si o exemplo dado pela Revolução Francesa, quando o novo veio substituir-se dramaticamente ao velho, mais uma vez vem o ímpeto irresistível, que se torna anelo, na tentativa de estabelecer algum tipo de laço, por remoto que seja, entre a esperança no regresso dos deuses e a utopia política, horizonte de referência de Hiperíon, por exemplo, que é a obra representativa do nome Hölderlin.
E também neste poema e nesta trama do mito grego com a Alemanha unificada do futuro, por sinal, estaria possivelmente a nostalgia do ex-seminarista de Tubinga pela Parusia ou segundo advento: o pão e o vinho da transubstanciação que a liturgia cristã herdou da órfica fazem Cristo e Baco confluir na mesma figura messiânica do “filho do Altíssimo”. O resgate é utopia, aqui o mito de origem como perfeição da Idade de Ouro é a volta do divino como apontamento de realização de uma utopia futura, nada mais natural para um poeta, ainda mais quando se fala de fenômenos visionários.   

CANTO DO ALEMÃO

Oh sagrado coração dos povos, pátria!
Tão paciente quanto a muda Terra-Mãe
E incompreendida, se bem os estrangeiros
Do teu seio tirem o melhor.

Ceifam o teu pensamento, teu espírito;
Gostam de colher-te o racimo, mas zombam
De ti, vide disforme que corres
Pelo chão, indecisa e bravia.

Terra de um gênio mais alto, mais severo!
Terra do amor! Sendo embora eu um dos teus,
Muita vez chorei de raiva ao ver-te,
Sempre tola, negar a própria alma.

Mas não podes me ocultar tantas belezas;
Muita vez, de pé no claro monte, do alto
Dos teus ares, contemplei o verde
Do teu vasto jardim e te vi.

Percorri os rios teus, pensando em ti,
Enquanto o tímido rouxinol cantava
Sobre o vime flexível e o sol
Pairava contra um fundo sombrio.

Vi nas margens, em cidades nobres onde
As oficinas trabalham em silêncio,
Florir o saber e o teu sol brando
Conduzir o artista à seriedade.

Conheces os filhos de Minerva? Há muito
A oliveira é-lhes favorita; conheces?
Ainda vive, ainda reina entre os homens,
A alma ateniense e cisma, embora

O jardim sagrado de Platão não mais
Viceje à beira do rio, e um homem pobre
Lavre entre cinzas de heróis, e chore,
Sobre uma coluna, a ave da noite.

Oh sacro bosque da Ática! Ele feriu-te
Também com seu raio terrível, e tão cedo?
E ascenderam ao Éter, libertos
Pelas chamas, os que te animavam?

Mas tal como a primavera, o gênio vaga
De um país a outro. E nós? De nossos jovens
Algum haverá que não esconda
Um anseio, um enigma no peito?

Graças às mulheres alemãs! Guardaram
A alma afável das imagens dos deuses
E sua serenidade expia
A desordem má de cada dia.

Mas onde poetas a quem concedesse
O Deus, como aos nossos antigos, piedade
E alegria, ou sábios, como os nossos,
Frios, indômitos, insubornáveis?

Saudações pois a ti, nobre pátria minha,
Com um novo nome, o fruto mais maduro
Do tempo! Tu, última e primeira
Das Musas, Urânia, eu te saúdo!

Mas calas e tardas, e concebes uma
Obra alegre, que dê nova imagem tua
Que, nascida como tu do amor,
Fosse tão virtuosa quanto o és.

Onde estão teu Delos, tua Olímpia, a festa
Suprema em que nos encontremos todos?
Como, Imortal, adivinharia
Teu filho o que há tanto lhe preparas?

O ARQUIPÉLAGO

Retornam a ti as gruas? E os barcos, buscam novamente
Seu curso em tuas costas? E as brisas, sopram elas
A paz das tuas águas? E, atraído lá do fundo,
O golfinho aquece o dorso à luz nascente?
É tempo de florir na Jônia? Na primavera, sempre,
Quando o coração dos vivos se renova e o amor primeiro
Acorda nos homens as lembranças da Idade de Ouro,
É que eu venho a ti e em teu silêncio saúdo-te, Ancião!

Tu vives sempre, Potestade, e como outrora dormes
À sombra dos teus montes; com braços juvenis estreitas
Ainda a tua terra encantadora e tuas filhas, Pai!
Tuas ilhas florescentes, nenhuma delas se perdeu.
Creta aí está, e Salamina verdeja no ocaso dos loureiros;
Com raios à volta, eleva Delos, na hora do nascente,
Sua cabeça inspirada, e eis Tinos, Quios
Abarrotadas de frutos púrpura, e os outeiros bêbados
A verter o licor de Chipre, e de Caularia correm,
Como antes, regatos de prata até tuas antigas águas, Pai.
Ainda vivem todas, mães de heróis, as ilhas,
De ano em ano florindo, e quando às vezes, desde o chão
Do abismo,

Também os Celestes – as serenas forças das alturas,
Que da plenitude do poder trazem até a cabeça
Dos homens sensíveis o dia risonho, o doce langor
E os prenúncios -, eles também, os antigos companheiros,
Moram contigo como outrora, e amiúde, no crepúsculo,
Quando dos montes da Ásia chega o sacro luar,
As estrelas encontram-se nas tuas vagas
E resplandeces então de brilho celestial; enquanto
Elas gravitam, tuas águas se mudam, e ressoa
No teu peito o canto noturno dos irmãos lá do alto.
Quando o que tudo transfigura, o sol dos dias,
Miraculoso filho do Oriente, surge enfim
E todos os viventes num sonho dourado encetam
O que a cada manhã o poeta lhes apronta,
A ti, deus em luto, eles enviam sortilégio mais ridente
E sua luz amistosa não é ela própria tão bela
Quanto a coroa, sinal de amor que sempre, como outrora,
Ele entrelaça, recordando-te, aos grisalhos anéis do teu cabelo.
E não te envolve o Éter? E não regressam dele
As nuvens tuas mensageiras que te trazem o raio,
Dádiva dos deuses? Tu as mandas então correr as terras
Para que, na praia em fogo, os bosques ébrios de tormenta
Contigo ondulem e marulhem; para que, filho sem rumo
Chamado pelo pai, o Meandro de mil córregos
Fuja dos extravios, e o Caístro, da planície,
Acorra a ti em júbilo e, primo nato, o Ancião
Que por tanto tempo se guardou, o Nilo majestático
Vindo de monte longínquo, avance agora vitorioso,
Num fragor de armas te abrindo os braços anelantes.

Porém te sentes só; na noite muda, apenas o penhasco
Te ouve o lamento, e amiúde a alada nuvem,
Com raiva dos mortais, foge de ti rumando para o céu.
Pois já não vivem contigo os nobres favoritos,
Os que te honravam, os que com belos templos e cidades
Coroavam antes tuas praias; os sacros elementos,
Heróis em busca de coroa, estão sempre à procura,
No coração dos homens sensíveis, da glória que lhes falta.

(obs: o poema é longo, portanto, esta é a parte inicial para apreciação)

PÃO E VINHO
(a Heinze)

1
Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada,
E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.
Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa,
E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas
No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,
De coisas feitas à mão, jaz tranquilo o operoso mercado.
Mas sons de música soam longe, nos jardins, por onde
Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário
A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes
Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.
Numa surda alegria, replicam sinos ao crepúsculo,
E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.
Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque,
E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua
Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,
Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.
Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,
Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.

2
Maravilhosa é a graça da Altíssima, e ninguém sabe
Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.
Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.
Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque
Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;
Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.
Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra
E busca por gosto, mais que por necessidade, o sono;
O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.
Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos
Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,
Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.
Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,
Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,
Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos
A palavra transbordante que, como os enamorados,
Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa
E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.

3
Em vão calamos o coração no peito, o sentimento
Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem
Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?
O fogo divino também nos incita, dia e noite,
A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar
Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!
Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto
Da meia-noite, existe sempre uma medida comum
Para todos, mas há para cada um um bem particular.
A buscá-lo vai cada um e chega até onde consegue.
Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se
Repentinamente dos poetas na noite sagrada.
Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé
Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.
Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,
À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde
Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos:
De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.

(obs: o poema é longo, portanto, esta é a parte inicial para apreciação)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29445/17/friedrich-holderlin-e-seus-poemas-da-era-pre-romantica-parte-iii





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