PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 5 de março de 2014

O EFEITO DE MUTARELLI

"A loucura de Júnior é um efeito sem causa."

   Lourenço Mutarelli, escritor e quadrinista, é um autor bastante original de romances. Já fiz uma resenha dele aqui na coluna, a respeito de seu livro O Cheiro do Ralo, que virou filme. Agora, vou falar de outro livro dele, bem interessante, publicado em 2008, A arte de produzir efeito sem causa. Este romance trata de uma estória de loucura de seu protagonista, Júnior, que, em seu trajeto, revela os possíveis nexos de sentido que um surto psicótico pode ter encerrados na sua aparência de caos.
   Júnior, depois de se separar da mulher e de pedir demissão do emprego, vai morar no apartamento do pai. Lá encontra, além do pai, uma moça, de nome Bruna, que alugava um dos quartos, tendo Júnior que dormir no sofá da sala. Ele está com 43 anos, e sem muita perspectiva, algo que vai se agravar com o desenrolar do romance. Ele passa a dormir muito, o pai o repreende. E, em meio a este enredo niilista de um homem que está no desengano, começam a chegar pacotes sem remetente para Júnior, com indicações estranhas, tipos de enigmas que, com o passar dos dias, se tornam uma obsessão para Júnior.
   O primeiro sedex que Júnior recebe, vem com, dentre outras coisas, um recorte de jornal com um fato ocorrido na Cidade do México, o texto está em inglês. Ele tenta decifrar o que está escrito, Ele pede ajuda a Bruna, e ela manda o texto para uma amiga fluente no inglês. Depois, Júnior vai à estante do pai e pega umas bebidas, aonde vislumbra um revólver Taurus calibre 38. O álcool paraguaio parece ter atingido a sua glândula pineal em cheio, ele tenta beijar Bruna na boca, encarna uma ideia psicótica de uma suposta missão. Era como se, numa queda do Véu de Ísis, ele houvesse acessado todos os livros de ocultismo e auto-ajuda, vendo, diante de seu terceiro olho recém-aberto, todos os arquivos do Akasha. (Akasha: na psiquiatria, é o espaço sutil da memória da humanidade, onde ficam armazenados todos os conhecimentos e ações humanas, é o inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung). Júnior, então, entra em convulsão, enquanto alcança as respostas de todos os mistérios do universo.
   Júnior, logo depois deste acesso ao Akasha, passa a especular desvairadamente, começa um surto. Ele tem uma história, seu irmão está preso, sua mãe, já morta, gostava de ocultismo e de civilizações antigas. O irmão tem uma obsessão por uma cabeça dele que foi ofertada pela mãe, em Aparecida, e culpa a mãe por sua desgraça, pois teve a sua alma entregue aos demônios pela mãe. Seu irmão, Pedro, crê piamente que só vai melhorar quando tiver esta cabeça de volta.
   Chega mais um pacote sem remetente para Júnior, agora com mais enigmas. Dentre os objetos, um DVD, é Naked Lunch, Bruna reconhece o filme, sabe ser de um livro de um autor beat, vai à internet e lembra seu nome, William Burroughs. Bruna, depois, descobre, pela amiga, que o recorte de jornal do primeiro sedex se refere ao assassinato acidental da esposa de Burroughs pelo próprio.
   Júnior perde, aos poucos, o vínculo com o tempo social. Recebe mais um pacote. Lê trechos da agenda de Bruna, começa a rabiscar a agenda e, num surto típico, começa a ligar os pontos, num tipo de geometria, cruza linhas, forma gráficos, começa uma decifração frenética das mensagens dos pacotes, é um delírio, se distancia do cotidiano e do concreto, acha que a charada foi feita especialmente para ele, é uma obsessão. Encontra Bruna, ele está em surto.
   William Burroughs dizia que a palavra é um vírus e como tal deve ser combatida. Júnior desconhece esta teoria, nunca leu Burroughs. Júnior faz diagramas, um alfabeto distribuído de forma sequencial. A cada nova folha, sua geometria se torna mais hermética. Júnior está numa espécie de transe. Bruna mostra ao pai de Júnior sua agenda toda rabiscada de diagramas, ele diz que foi o filho, que já tinha rabiscado também todos os papéis que encontrava pela frente.
   Júnior está no abstrato, passa a se comunicar com a mãe telepaticamente. Júnior e seu pai vão ao presídio em que Pedro está preso. Júnior cai na mesma obsessão do irmão, cisma que sua cabeça foi ofertada à Abominação. As criaturas que a sua mãe cultuava. O Espírito Medonho.
   O pai de Júnior o leva ao neurologista. Lá, Júnior entra mais uma vez em convulsão, e acorda em uma maca de hospital. O médico pede exames, diz que pode ser neurocisticercose, mas precisa dos exames. Neurocisticercose que é uma infecção do sistema nervoso central por larva Taenia solium.
   Júnior escreve de forma frenética e compulsiva. Bruna nota que chegou mais um pacote. Três CDs, postais com figuras mitológicas, uma moeda antiga e uma vela vermelha. Bruna acha o nexo disso, pois, no anúncio que embrulhava a vela, este é da firma Burroughs. O que se liga ao escritor William Burroughs. Há outra folha, é uma invocação de demônios. O pai de Júnior resolve jogar aquilo tudo no lixo. Júnior, enquanto isso, escancara os olhos, vê cores e luzes em padrões geométricos. Os padrões se alternam como num caleidoscópio. Extasiado, entra novamente em convulsão.
   Bruna vai aos sebos de livros atrás das obras de William Burroughs, ela lê Burroughs obsessivamente, compila as informações em um caderno.  Neste ponto, Júnior continua a sua trama, Bruna se envolve com a história de Júnior, ao período atual dele de surtos, o pai não entende muito como ajudar e não sabe o que vai acontecer. E fica a tese do título: A arte de produzir efeito sem causa.
   Pois, se tudo indica que foi neurocisticercose, não há certeza, o romance não apresenta o resultado dos exames. E, se são os pacotes que levaram Júnior ao seu surto, também não se pode garantir como a causa de seu surto. Como também não temos certeza de que isso seja uma praga da cabeça ofertada à Abominação pela mãe. O que resulta na conclusão que o título do romance oferta de bandeja: efeito sem causa. A loucura de Júnior é um efeito sem causa. Nada, não foi verme na cabeça e nem coisa do demônio, muito menos a trama dos pacotes, a loucura de Júnior é um efeito, não veio de lugar nenhum, só surgiu. A coisa está posta em si mesma. A trama da origem fica por conta do próprio surto, que repetidas vezes pode ser um drama da causa primeira, um teatro da origem que nunca se sabe ao certo, e o efeito é a loucura, uma lógica gramatical e geométrica que engole a si mesma, efeito puro, sem causa nenhuma.

Obs: O livro A arte de produzir efeito sem causa ganhou uma versão no cinema que ainda está em cartaz. O filme ganhou o título de Quando eu era vivo, com  o ator Marat Descartes como o protagonista que veio do livro, Sandy Leah (sim, a cantora) como a moça que alugava o quarto, e Antônio Fagundes na figura do pai do protagonista. O filme muda aspectos do romance de Mutarelli, mas mantém seu sentido e as relações entre os personagens, acentuando um grau mais maligno para o final. Filme muito recomendado para quem ainda não viu. Assim como o livro de Mutarelli, que é também mais uma boa sacada do escritor.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:  http://seculodiario.com.br/exibir.php?id=15667&secao=14
 

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